Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 14 de março de 2007
Guiné 63/74 - P1592: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (7): João Bonifácio / Paulo Raposo / J.L. Vacas de Carvalho
Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé e da esquerda para a direita, o Raul Albino, o Francisco Silva e o Medeiros Ferreira, aspirantes milicianos. O João Bonifácio, que pertenceu à CCAÇ 2402, evoca aqui o exemplo do Medeiros Ferreira que, como é publicamente sabido, não compareceu ao embarque, para a Guiné. Ele é, das nossas figuras públicas, talvez o mais conhecido dos desertores da guerra colonial (1). Na foto, o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Mário Soares (I Governo Constitucional, 1976/78) aparece assinalado com um círculo a vermelho .
Foto: © Raul Albino (2006). Direitos reservados.
1. Mensagem do João Bonifácio:
Olá, Amigo LuÍs;
A minha opinião, e em resposta ao nosso amigo Torcato (2), é apenas aquilo que penso à distância de 7 mil kms. A Guerra do Ultramar já passou e a verdade é que apenas nós, os que por lá andamos, compreende a verdade. Compreendo a frustração do nosso amigo Torcato, e também eu desejava que isto não se tivesse passado, mas do mesmo modo também não podemos fazer nada. Afinal, o Ex-Alferes Miliciano Medeiros, hoje Dr. Medeiros Ferreira, uma figura conhecida na política socialista, também não compareceu ao embarque em Julho de 1968, como parte integrante da CCAÇ 2402, a que eu próprio pertencia.
Pessoalmente, acho que cada um de nós tem o direito a demonstrar o seu ponto de vista, mesmo que negativo. Depois do 25 de Abril, penso que todos os que foram obrigados pelo antigo regime de Salazar e Marcelo Caetano, a refugiar-se em certos países da Europa, puderam todos, ou quase todos, regressar a Portugal e restabelecer as suas vidas junto aos seus familiares.
Por isso, penso que este tema, por muito complicado que seja, deverá ser discutido abertamente por todos os que sintam ter as suas ideias quanto aos chamados desertores. Hoje, e depois de ler neste blogue que o Amigo Luís em tão boa hora iniciou, ter lido das dificuldades de tantos militares, que por pouco não foram apanhados à mão e até fugiram para o mato, para não falar do abandono total por parte dos chefes da guerra em abandonar estes nossos irmãos, até já fiz a pergunta se eu não deveria ter feito o mesmo.
Esta foi a Guerra da mentira, e sinto-me envergonhado de que o Governo actual do Eng Sócrates não tenha dado resposta ao e-mail que lhes enviei, para o Gabinete do Primeiro Ministro, em que solicitei que, pelo menos, reconhecesse este erro grave e publicamente pedisse, em nome do Governo da altura, as desculpas a todos os ex-combatentes e seus familiares, pela afronta de uma guerra sem justificação e um fim sem negociações.
Afinal, meu amigo Torcato, quem estará mais em pecado? Um Governo de arrogantes ou uma meia dúzia que apenas demonstraram a sua revolta em não participar nesta guerra, refugiando-se no estrangeiro ? (...).
Um grande Abraço a todos os que lerem esta minha resposta. E, como vivemos em Liberdade e Democracia, e há 33 anos que vivo no Canada, parece que sei o significado da pura igualdade de pensamentos.
Fiquem todos bem.
João Gomes Bonifácio
Ex-Fur Mil do SAM
CCAÇ 2402/ BCAÇ 2851
Có, Mansabá, Olossato
1968/70
2. Comentário do Paulo Raposo:
Caro Luís: Um bom dia para ti e todos os teus. Podes passar este mail ao Bonifácio?
Meu caro Bonifácio, eu era da CCAÇ 2405, ou seja, fomos juntos no Uíge para a Guiné.
Vivemos em Sociedade, e ela tem regras. Se o bombeiro não apaga fogos, se o médico não executa a cura, se o lixo não é apanhado, mesmo que discorde do chefe então estamos a viver na selva. Na Guiné um rapaz que queria ser homem, tinha de dar provas.
Quem fugiu, foi por medo, conveniência, comodismo, etc. Uma coisa é certa, por política é que não foi. Esta de, à ultima da hora, vir dizer que se era antifacista, não cola. Se havia assim tantos, então no tempo da outra senhora onde andavam? Andavam a mamar à custa do regime e, para se branquearem, viraram resistentes para aranjarem novos tachos. Cambada de oportunistas.
Atenção, não me compete criticar ninguém, mas galos e perús não são todos uns. Bem me custou o embarque, fugir era mais fácil.
Quanto à legitimidade da guerra, a história é outra. Se a nossa não era legítima então, que andam os americanos a fazer no Iraque, os ingleses em Gibraltar, os franceses nas Iguanas, os russos na Mongólia, etc., etc.
O Alentejo e o Algarve também foram conquistados e povoados, então em que ficamos ? África era pertença de todos nós, agora vai ser dos chineses. E por cá somos invadidos por espanhois. Então, no fim tínhamos razão.
Onde está a nossa auto-estima?
Um abraço amigo
Paulo Raposo
Ex-Alf Mil CCA 2405 / BCAÇ 2852
Mansoa, Galomaro, Dulombi (1968/70)
Herdade da Ameira
Montemor-O-Novo
3. Comentário de J.L. Vacas de Carvalho
Carissímos:Tenho lido (e confesso, não muito interessado) os pontos discutidos: Membros honorários e desertores.
Sobre o 1º : O blogue é um local onde se trocam ideias, situações vividas, memórias, encontro de amizades, etc, etc. Os que por lá ficaram ou como se costumava dizer, lerparam, podemos, melhor, devemos, lembrá-los e honrá-los. Lamentamos sempre as suas ausência e somos solidários com as suas famílias. Infelizmente não estão entre nós. Não contribuem para as nossas conversas. Nem sei, como alguns que por aqui já passaram, se gostariam de pertencer à nossa família. Quando muito, e quando algum de nós partir desta para melhor ou pior (quanto mais tarde, melhor, falo por mim) podemos sim, considerá-lo Tertuliano Honorário ad eternum.
2º Ponto: Uma parte da minha consciência diz que não devemos fazer juízos de valor sobre as causas que levaram um português a desertar. Pode ter sido por razões familiares, razões de consciência ou por outras razões que não me compete a mim julgar ou criticar.Outra parte de mim diz-me que eles simplesmente fugiram, tiveram medo, acobardaram-se. Ponto final. Admiti-los no nosso blogue é uma traição a quem lá esteve e que por quem lá morreu. No entanto o nosso Presidente no seu mais alto critério assim o decidirá.
Abraços
Zé Luís
Ex-Alf Mil
Pel Rec Daimler 2206
Bambadinca (1969/71)
Lisboa
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira
(2) Vd. post de 13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo
terça-feira, 13 de março de 2007
Guiné 63/74 - P1591: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (6): Pedro Lauret
Caros Camaradas e Companheiros,
O problema dos desertores tem sido colocado recorrentemente na nossa tertúlia e, de forma quase unânime, a opção pela deserção tem sido condenada (1).
Nas observações que se seguem vou colocar num mesmo saco os desertores e os refractários. Sei bem que juridicamente constituem actos diferenciados e com punições distintas, no entanto no âmbito da nossa discussão penso não constituir diferença ética assinalável a não apresentação para o cumprimento do serviço militar e o acto de deixar ilegalmente o mesmo serviço militar após a incorporação. Excluo desta simplificação os desertores em teatro de operações que passam para o inimigo, situação, essa sim, de contornos claramente diferentes e que não são abrangidos pelas observações que abaixo me permito fazer.
Em primeiro lugar gostaria de afirmar que considero que o problema é complexo e que os motivos para a deserção são muito variados:
(i) Nalguns casos podem inserir-se numa lógica de medo e cobardia;
(ii) Noutros inserem-se em opções egoístas de reconstrução de vida noutros países, fugindo à guerra, normalmente com recursos financeiros de suporte apreciáveis, e fazendo-se passar, oportunisticamente, por opositores à guerra e lutadores políticos.
Claro que critico estas opções.
Analisemos agora alguns enquadramentos da nossa realidade nas décadas de 60 e 70.
Portugal nos anos 50 e 60 crescera e desenvolvera a sua indústria num modelo baseado em mão-de-obra barata e pouco qualificada, numa lógica de substituição de importações e não desenvolvendo uma estratégia exportadora.
A Europa, por seu turno, encontrava-se em pleno período de ouro de desenvolvimento necessitando de importar mão-de-obra.
A guerra vai impor um orçamento com 40% da despesa dedicada à defesa e com a necessidade de aquisições múltiplas ao estrangeiro. Havia que encontrar mecanismos de entrada de divisas para equilibrar a balança comercial. A emigração surge como solução.
Gravura (belísssima, de resto, dentro da estética do Estado Novo... ) do famoso Livro da Terceira Classe, Ed. Domingos Barreira, 4ª Ed., 1958, por onde todos estudámos e aprendemos a amar a Pátria. Era, no entanto, um manual profundamente ideológico... servindo o propósito de um Estado, sem legitimidade democrática, de educar o povo, do berço à tumba....
Foto: Luís Graça ( 2007).
O Estado Novo desenvolve uma política de difícil equilíbrio entre a necessidade de ter jovens disponíveis para o serviço militar por 4 anos, e a necessidade de exportar mão-de-obra.
Este equilíbrio vai ocasionar que 18% de mancebos faltem à incorporação, um número que no seu total oscila entre os 150 000 e 200 000.
Muitos destes jovens, do interior, em situações de extrema pobreza, acabam por ser, directa ou indirectamente aliciados para emigrarem com o beneplácito das autoridades.
Meditemos: como foi possível, num estado policial um tão elevado número de emigrantes clandestinos?
Coloco à nossa tertúlia a seguinte questão: serão estes nossos compatriotas merecedores da nossa critica e julgamento? Por mim, decididamente não.
Podemos ainda colocar o problema da deserção noutro nível. A legitimidade da guerra e a legitimidade do poder.
O problema da legitimidade do poder é um problema filosófico antigo e difícil. Não pretendo aqui teorizar sobre a matéria, até porque não é área da minha especialidade, o que não me impede de não ter dúvidas em qualificar o Estado Novo como um poder ilegítimo. Emergiu de um golpe de estado e nunca desencadeou mecanismos da sua própria legitimação. Assim se manteve durante quase cinco décadas. Para mim este é um facto evidente.
O outro problema que se coloca é o da legitimidade da guerra. Todos fomos para a guerra em nome de uma nação pluriterritorial e pluricontinental. Um povo único, do Minho a Timor, como nos ensinaram desde os bancos da escola. Esta construção é falsa e não me vou alongar na sua demonstração. Penso que basta analisar o Acto Colonial de 1933 e a sua evolução (1950-1961) para nos apercebermos da mentira e da hipocrisia que aquela formulação significava.
Por outro lado o direito internacional, através da carta das Nações Unidas reconhecia desde 1945 o direito dos povos a se autodeterminarem.
Por estes motivos para mim a guerra colonial era ilegítima e injusta, pelo que era legítima a deserção.
Quando em 1971 embarco para a Guiné já era para mim clara esta visão. Decidi ir, pois considerei que servia melhor o meu País indo que desertando.
Este é um pequeno contributo numa matéria difícil. Se a tertúlia considerar, útil poderei voltar ao tema.
Com um abraço amigo
Pedro Lauret
__________
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha
Guiné 63/74 - P1590: O sacrifício dos oficiais do quadro permanente (Pedro Lauret)
Era uma um homem afável e civilizado no trato, como poucos, não tendo nada a ver com a imagem (negativa) que eu tinha dos oficiais do QP que eu havia conhecido até então, na Metrópole. Com os seus 37 anos, e três comissões no Ultramar (Índia, Moçambique e Guiné), foi tão explorado pelo comando do Sector L1 (no tempo do BCAÇ 2852 e do BART 2917) como os seus milicianos e os seus soldados, da Metrópole ou do TO da Guiné.
Caros companheiros e camaradas,
Sobre a proposta do João Tunes (2) também não me parece ter muito sentido.
Ainda voltarei a escrever sobre refratários e desertores, mas hoje quero fazer um comentário sobre uma frase do David Guimarães (3) quando se referia a militares que faziam quatro comissões numa mesma colónia, apontando que a sua motivação seria apenas ganhar dinheiro.
Em minha opinião é uma afirmação perigosa, pela generalização.
Qualquer oficial saído da Academia Militar em 1961 , ou nos anos imediatamente seguintes, fizeram 4 comissões na mesma colónia ou em várias.
A vida dos meus camaradas do Exército foi de enorme esforço e sacrifício. Quem fez 4 comissões tem pelo menos um ida como subalterno e duas como capitão, eventualmente uma última como major. A vida de um oficial do QP eram dois anos em comissão, um ano no continente.
Como é sabido, o número de oficiais que entravam na Academia Militar começou a diminuir a partir de 1961. A Guerra nos três teatros de operações aumentou sempre em área operacional e em consequente número de efectivos, pelo que foi exigido um esforço muito grande aos oficiais dos QP, que a partir de certa altura já eram insuficientes, pelo que começaram a ser formadas capitães milicianos, como todos sabemos.
A tese de que havia guerra porque os oficiais dos QP a fomentavam para ganhar mais, e que praticamente a vitoória militar estava garantida, foi posta a circular pela propaganda do Estado Novo tendo tido acolhimentos diversos, nomeadamente nos colonos em Angola e Moçambique.
Não quero dizer o nosso companheiro David Guimarães tenha querido aderir a esta tese, mas considero que alguma generalização pode ser perigosa. Não quero dizer que não tenham existido casos como os que são referidos, não foram no entanto a regra, foram a execepção. A Guerra Colonial, como qualquer guerra, deu oportunidades de ganhar dinheiro a muita gente, alguns de forma legítima, outros ilegitima.
Das centenas de oficiais que fizeram várias comissões permitam-me que vos evoque dois de duas gerações: Carlos Fabião, uma comissão em Angola e, penso, quatro na Guiné; e Salgueiro Maia, que em 1974 tinha 28 anos, com uma comissão nos Comandos em Moçambique e outra na Guiné.
Caro David, estas palavras destinam-se apenas a que este tema seja abordado com alguma profundidade adicional.
Um abraço
Pedro Lauret
Capitão de Mar e Guerra, na reforma,
antigo imediato do NRP Orion, Guiné (1971/73)
2. Resposta do David Guimarães:
Nessa matéria, Pedro, peço desculpa... Efectivamente pode haver um perigo de generalização que não era a minha intenção... Perigoso, sim, quando dito alto numa caserna - muito mais quando se tratam de amigos...
Talvez que nem sempre sejamos felizes nos ditos e aí teremos que estar calados somente, ou então encobrir aqueles que o fizeram, omitindo também com receio de ferir os não culpados... Emotivamente falei... Sim, em caso conhecido. Não o deveria ter feito e, sendo certo o que penso e vi, mal é efectivamente qualquer generalização. Por aí peço desculpa... Foram palavras do entusiasmo e o sangue português que me fez falar... Desculpa então, se puderes...
Sei do esforço que todos fizemos quadros e milicianos - isso não ponho dúvidas....
Um abraço, David Guimarães
3. Comentário do Pedro Lauret:
Caro David Guimarães,
Calculei que tivesse sido o entusiasmo das palavras que provocaram o disparar daquela frase que, como todos muito bem sabemos, tem fundo de verdade. O problema único é a generalização.
Voltarei em breve ao problema das deserções e não só … ao problema dos refractários. Posso deixar este dado para a tertúlia, nos 13 anos de guerra a percentagem de refractários foi de aproximadamente de 18%, ou seja, faltaram às incorporações 18% dos mancebos convocados, não é de forma alguma um número residual.
Um grande abraço
Pedro Lauret
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1313: Estórias cabralianas (14): Missirá: o apanhado do alferes que deitou fogo ao quartel (Jorge Cabral)
(2) Vd. post de 3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
(3) Vd. post de 13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha
Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha
Li com bastante apreço este comentário de João Tunes (1) que emotivamente fala de um facto... Isso, sim, e em jeito de comentário parece-me bem. Aliás o que ele escreve, está correctíssimo e decerto que nos inclinamos sobre exemplos como esse... Mas a nível da proposta feita pelo Tunes, partilho exactamente da opinião do Vinhal - e concordo com a sua opinião pela negativa (2)...
João: O António Pinto, está no Blogue por ti e por quem o conheceu, mas que mereça estar é outra coisa... Não pelos princípios já aqui falados anteriormente - e com os quais estamos de acordo - mas pela injustiça que poderíamos eventualmente cometer para com outros que se baldaram à guerra e apareceram como heróis e alguns (heróis mesmo o foram) e outros que foram para a guerra e até foram mauzinhos...
Sabemos que nessa altura havia três hipóteses: (i) de alta voz dizer não vou - e ia ou ia preso; (ii) outra era fugir e tentar não ser apanhado; (iii) e a outra, que foi a da maioria, era ir mesmo e enfim ter sorte... (digo ter sorte porque no fim quem saiu das balas limpo, teve mesmo sorte)...
Agora havia uma subdivisão daqueles que fugiam, em duas classes: os que fugiam por convicções políticas; e os outros que fugiam porque a guerra era morte e havia medo... Não fomos nós os heróis que fomos para a guerra, não, mas decerto fomos porque muitos de nós não conseguimos fugir e outros tivemos medo das cadeias e represálias, sendo que outros foram por convicção de estarem certos e que efectivamente iam defender a Pátria...
Ainda havia outra classe que ia voluntariamente e os objectivos eram bem definidos: ganhar dinheiro. Infelizmente... Não é por acaso que se faziam quatro comissões na mesma colónia....
Entendo-te, João, mas quantos de nós não gostariam de ter amigos nossos e ex-combatentes - como tu queres colocar o Pinto - aqui junto de nós? Ai, João, vamos deixar estar tudo como está... Honrar, sim ... E se politizamos a situação, porque isso acontece, então alto, estragamos o belo que estamos a fazer... Apesar de sermos muito amigos na caserna...
Mais não sei dizer porque não necessito no momento - é a minha opinião...
Um abraço.
David Guimarães
Ex-Fur Mil At Artilharia Minas e Arm
CART 2716 / BART 2917
Xitole (Bambadinca)1970/72
Porto e Espinho
2. Mensagem do António Rosinh:
A rainha da Inglaterra viu um neto ir para a guerra do Iraque. Mesmo que seja um acto simbólico ainda é mais significativo.
Luis, espero que desistas de pedir um referendo.
António Rosinha
Ex-Fur Mil (Angola, 1961) / Ex-topógrafo da TECNIL (Guiné-Bissau, 1979/84)
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
(2) Vd. posts anteriores:
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves
Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo
Caros Tertulianos
Luís Graça: Este Blogue Luís Graça & Camaradas tem um título e normas de conduta. Dele, fazem parte pessoas que com isso se identificam. Trazer á colacção temas como o da inclusão de desertores, não é correcto ou incorrecto, não é fracturante ou não. É perca de tempo. Tem certamente lugar e merece mesmo ser discutido, noutros espaços.
O valor que mais prezo é a Liberdade. É utópico pensarmos que somos seres livres. Há sempre condicionantes que vão limitar essa nossa liberdade. Mas, se a queremos para nós, então respeitemos a liberdade dos outros. Pratico-o!
Isso não me diz, salvo melhor opinião, que inclua ou, pessoalmente, pertença a grupo de pessoas com as quais não me identifico. Entrar em explicações é, como já disse, perca de tempo. Não pretendo ser mais explícito. Respeito todos nas suas opiniões e tomadas de posição ou opções políticas, religiosas, sexuais, ou outras… Exijo que, para comigo, tenham o mesmo comportamento.
Por isso ponto final em determinados assuntos. Por respeito a todos os que comigo lá estiveram. Por respeito aos que não voltaram. Por respeito a todos – mulheres e homens – que no Ultramar, Colónias ou o que entenderem chamar – deram o melhor de si e perderam os melhores anos das suas vidas. Independentemente das suas convicções… mas sempre, ontem e hoje, em solidariedade para com os seus camaradas… até ao limite ou seja, a arriscar a própria vida. Muitos perderam-na na ajuda ao camarada…
Que perca de tempo neste final de tarde. Sejamos livres nalgumas coisas… neste caso o pertencer ou não a um determinado grupo! O aceitar ou não determinadas inclusões, mesmo respeitando a tomada de posição ou opção. A maioria decide. Eu já o fiz!
Forte, mas mesmo forte, abraço para ti do
Fá Mandinga e Mansambo (Bambadinca)
Fundão
2. Comentário do Mário Bravo:
Caríssimo Luís Graça:
Estou perfeitamente de acordo com o Torcato Mendonça. Não quero menosprezar as razões de alguns, que decidiram e com o seu direito próprio, tomar outro rumo que não o daqueles que foram para as colónias, numa guerra que era descabida ( ?!).
Sim, mas com limites. Esses, os que não estiveram no teatro de guerra, que se limitem à sua posição de anti-regime e ponto final neste tipo de observação, de conteúdo duvidoso, em termos de sacrifício pessoal e familiar. É que morreram alguns camaradas, na dita guerra colonial.
Mário Bravo Ex-Alf Mil Médico, CCAÇ 6 (Bedanda, 1971/72)
Porto
__________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post anteriores:
3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro
Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro
Estimados amigos e camaradas,
Une-nos um laço honroso, mais forte do que o aço da metralha com que o IN tentou mandar-nos desta para melhor.
Na nossa Tertúlia, no nosso Blogue, cabem todos aqueles que, tendo integrado as Forças Armadas, se bateram em nome de Portugal. Como diz o João Tunes, de livre e expontânea vontade ou absolutamente a contra-gosto.
Conquistámos o direito indeclinável ao título de ex-combatentes. No nosso espaço cabem também os filhos, os cônjuges e os amigos dos ex-combatentes. Nesta casa que é nossa, reservemos um lugar especial para o inimigo de ontem, que nunca o foi do povo português. E que com igual dignidade se bateu pelo direito a uma Pátria.
Já não me parece legítimo, por respeito à própria carta de princípios que enforma a linha editorial do Blogue, que a nossa porta se possa abrir a desertores, fujões e traidores. No dia em que um qualquer poeta alegre viesse a fazer parte desta família, eu seria forçado a pedir a minha desvinculação.
Mantenhas para todos,
Vitor Junqueira
Ex-Alf Mil CCAÇ 2753 (Os Barões)
Bironque, K3, Mansabá (Ago 1970/ Jul 1972)
Pombal
2. Comentário do Sousa de Castro:
Caros ex-combatentes e camaradas da Guiné:
Sendo certo que muitos de nós não concordava com a guerra nas ex-colónias, por convicções politicas, havia muitos outros, por falta de informação - se calhar a maioria -, que foi para a guerra com ideia de ir cumprir o dever para com a Pátria, que era necessário o sacrifício de todos em defender aquilo que achávamos ser justo.
Não aceito que uma pessoa politicamente informada deserte para o outro lado, porque aí estava um dos nossos com arma na mão para nos abater na primeira oportunidade. Para mim a palavra desertor não faz parte do meu vocabulário. Como é que me sentiria hoje a olhar para os vários monumentos que existem por todo o País e lendo o nome daqueles que caíram em defesa daquilo que acreditavam ?! Não faz sentido.
Sousa de Castro
Ex-1º Cabo TRMS Radio
CART 3494 / BART 3873
Xime e Mansambo (Bambadinca)(Jan 72 / Abr 74)
Viana do Castelo
________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post anteriores:
3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos
Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos
Caros ex-Camaradas da Guiné e Amigos Tertulianos,
Nem sempre o silêncio representa acordo e muito menos uma voz tonitroante significa razão ou peso adicional na média ponderada do resultado final.
Muito recentemente manifestei a minha clara opinião sobre o significado da palavra desertor (2), com a ideia subjacente de não voltar a desejar participar, mesmo calado, num debate que envolva um étimo desse tão negativo quilate emocional.
Exigem-mo, em consciência, o meu próprio percurso pessoal partilhado com mulher e filhos. Adicionalmente, a lembrança de um pai que eu e mais dois irmãos já não tivemos ocasião de abraçar no regresso e de uma mãe que para lá disponibilizou simultaneamente 3 filhos, reforça atitude e solidifica o conceito. Um na Marinha, eu próprio, outro no Exército, meu irmão e médico do Batalhão 1933, ambos simultaneamente na Guiné e ainda uma irmã, em Angola, por via de ter casado com um oficial da FAP. Participação tripartida nas Forças Armadas, a que apenas escapou, na razia e casualmente, um quarto irmão mais novo.
Não terá sido uma heroína a minha Mãe, mas prestigiou o exemplo de muitos milhares de Mães, Mulheres, Noivas, Namoradas, Madrinhas, Amigas ou mesmo simples Conhecidas que, num amargurado silêncio pela conivência imposta, ainda recorreram a insuspeitas reservas de coragem para manterem a regularidade dos aerogramas, das cartas, do contacto possível, transmitindo alegria e coragem onde já não havia muito de ambas para partilhar.
Ainda, em jeito de conclusão, permitam-me acrescentar à lista o meu sogro, coronel do quadro do exército, reformado, oriundo do Colégio Militar, que ao longo do percurso militar que escolheu foi premiado com prisão na Índia em 1961 - esteve em frente de um pelotão de fuzilamento -, duas comissões de serviço como comandante de companhias em Angola (ferido em combate) e Moçambique (mais tarde). Posteriormente, para fechar e já como major, adjunto no EM de um dos sectores na Guiné nos anos 70 de onde foi evacuado com úlcera gástrica. Notável foi o simples regresso e apenas uma úlcera. Aparentemente, claro. Sossobrou a pessoa, fechada para a vida que nós ainda vamos conseguindo viver.
Não me recordo de alguém me ter falado em emigrar, fugir, dar o salto, em português muito claro, desertar, nem ser aconselhado a tal por algum familiar ou amigo.
Tenho a firme ideia de que não conseguiria conviver hoje com essa ideia e de ter de passar a evitar o memorial junto à Torre de Belém que visito com frequência mas nunca como culto. Antes sim, num misto de Homenagem e Paz, de consciência tranquila.
Quando solicitei ao Luis Graça a minha admissão num blogue de ex-combatentes da Guiné, com este nome, foi exactamente isso que fiz.
Se o deixar de ser, deixará de ter sentido a minha permanência no blogue, ainda que com a salvaguarda da admiração e respeito que ganhei por alguns camaradas que aqui já tive o prazer de conhecer.
Um abraço para todos,
Manuel Lema Santos
ex-1º tenente da reserva naval (1965-1972)
ex-Imediato no NRP Orion (Guiné, 1966/68)
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de:
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves
(2) Vd. post de 12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1518: Questões politicamente (in)correctas (24): Um desertor é sempre um desertor em qualquer parte do mundo (Lema Santos)
Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves
Caro Luís, caro João Tunes e Camaradas:
Pelos seus escritos e pelo modo como expõe os seu pontos de vista, sou admirador do nosso camarada João Tunes.
É, portanto, pelo respeito e frontalidade que ele me merece, que venho dar a minha opinião negativa, sobre considerar, a título póstumo, membro da nossa tertúlia o Fuzileiro António Pinto.
Passo a apresentar as minhas razões:
(i) Já em tempos se chegou à conclusão que incluir alguém como membro honorário do nosso blogue, que por estar morto, não pode exprimir a sua concordância, estava fora de discussão. Caso do Embaixador Álvaro Guerra proposto pelo nosso camarada Beja Santos (2).
(ii) Parece-me, neste caso, estarmos em presença de uma acção que premeia uma posição política. Política não se faz nem se discute no nosso blogue. Assim me disseram.
(iii) Este é um blogue de antigos combatentes (3), que o foram desde a mobilização até à desmobilização ou morte em combate, não cabendo nele pessoas que por convicção política, objecção de consciência e outros motivos, o não foram. Aceitamos no nosso seio amigos da Guiné, familiares dos nossos camaradas já falecidos e outras pessoas que com o seu contributo possam engrandecer o fabuloso conteúdo histórico do nosso blogue.
À consideração dos demais companheiros.
Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732/CTIG 1970/72
Mansabá
SPM1388
Leça da Palmeira
2. Comentário do Joaquim Mexia Alves:
Caros Camaradas da Guiné:
Faço minhas as palavras do Carlos Vinhal, que vão na linha do que escrevi quando do assunto do Embaixador Alvaro Guerra.
Abraço amigo do
Joaquim Mexia Alves
Ex-Alf Mil Op Esp
CART 3492 / Pel Caç Nat 52 /CCAÇ 15
Xitole / Bambadinca / Mansoa (1971/73)
Termas de Monte Real - Leiria
________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
(...) O camarada, fuzileiro naval e alentejano, António Pinto desertou para o PAIGC por convicção política de repulsa para com a guerra colonial. Entendeu prosseguir a sua aversão pelo fascismo e pelo colonialismo, integrando a luta armada contra a ditadura portuguesa nas fileiras da LUAR, liderada por Palma Inácio. Tendo entrado clandestinamente em Portugal, foi preso pela PIDE, sendo prisioneiro na Prisão de Caxias quando do 25 de Abril. Libertado, integrou-se na revolução e foi segurança do General Vasco Gonçalves. Após o 25 de Novembro de 1975, temendo voltar à prisão, foi viver para a Holanda, onde ganhou a vida como cobrador dos transportes colectivos. Faleceu há 4 anos (...).
"Pela minha parte, eu que fiz uma guerra por obrigação mas absoluta e resolutamente contrariado, não atirando pedras a quem fez a guerra com afinco e convicção nem a quem escolheu outros caminhos, incluindo a sua recusa, e porque o meu modelo de vida e de valores são do meu foro e unipessoais, que servem muito bem a minha consciência mas não estão à venda para consumo alheio nem lhe permitindo uso prosélito, proponho que a nossa generosidade camarada promova, a título póstumo, o fuzileiro naval António Pinto a membro da nossa tertúlia" (...).
Comentário de L. G.:
"Não sou dono do blogue. Gostaria que os membros da nossa tertúlia se pronunciassem sobre esta proposta do camarada João Tunes, a quem saúdo. Trinta e três anos depois do fim da guerra colonial/guerra do Ultramar, não há mais tabus. De qualquer modo, não escondo que esta é uma questão fracturante . Por muito generosos que sejam, haverá sempre camaradas nossos, que vestiram a farda do exército português e fizeram a guerra, com ou sem convicção, que têm dificuldades em olhar de frente os seus ex-camaradas desertores...
"Era bom que discutíssemos aqui a proposta do João Tunes de promover a membro da nossa tertúlia, a título póstumo, o ex-fuzileiro naval António Pinto. O João tem a qualidade, rara neste país, de ser um homem que dá a cara pelas suas convicções.
"Acrescento, a título de curiosidade, que um dos três fuzileiros navais aqui mencionados, o Alfaiate, acabou por colaborar com o comandante Alpoim Galvão na Op Mar Verde (invasão de Conacri, em 22 de Novembro de 1970). Acompanhou a força invasora e o seu conhecimento da prisão do PAIGC, em Conacri, foi decisivo para o sucesso da libertação dos prisioneiros portugueses" (...).
(2) Vd. post de 28 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)
(3) Vd. post de 12 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1363: Questões politicamente (in)correctas (13): Combatentes e desertores não cabem no mesmo saco (Amaral Bernardo)
segunda-feira, 12 de março de 2007
Guiné 63/74 - P1584: Um choro no mato e as (des)venturas de um futuro comando em Bissorã (João Parreira)
Guiné > Região do Oio > Bissorã > 1965 > CART 703 > João Parreira, um cavaleiro à maneira, embora fosse de artilharia e tivesse mais tarde trocada a dama pelos comandos...
Fotos: © João S. Parreira (2007). Direitos reservados.
Texto enviado em 22 de Fevereiro de 2007, pelo João S.Parreira (ex-furriel miliciano comando, Brá, 1965/66)(1).
Caro Luís Graça,
Nos primeiros dias de Janeiro de 1965 estava em Bissorã (2) e, sem que o previsse ou tivesse pedido, recebi uma carta do Subdirector da delegação do Ministério das Finanças junto do Ministério onde ingressei com 19 anos (aqui abro um parêntesis para dizer que fiquei espantado pois puseram-me a trabalhar numa sala com cinco solteironas de meia-idade) e que tinha sido meu explicador, com a indicação de que deveria entrar em contacto com a esposa do Governador Schultz.
Nunca o fiz por não saber bem o que iria escrever. No mês seguinte, alguém de Lisboa, não me recordo quem, disse-me para entrar em contacto com o Major Semedo de Albuquerque que se encontrava no Quartel-General.
Quando saí de Bissorã, fui informado pelo meu Comandante de Companhia, o Capitão Amaro Rodrigues Garcia, que quando chegasse a Brá iria frequentar o curso [de comandos] e por isso foi com surpresa que durante a entrevista com o Major comando António Dias Machado Correia Dinis, Comandante do C.I.C., este me esclareceu que o mesmo só se iria realizar dentro de alguns meses, não sabia ainda quando, mas que ia ser aceite e que, como tal, deveria regressar na próxima coluna para Bissorã, a fim de resolver a minha situação e apressar o meu regresso com vista a recompletar um Grupo que se encontrava reduzido a 12 elementos, e com a mesma finalidade outro furriel e alguns praças de outras Companhias chegariam também dentro de pouco tempo.
Um breve passagem por Bissau
Durante a minha breve estadia [,em Bissau], além de ir dormir a Brá pouco tempo passei no aquartelamento pois andei atarefado a tratar de assuntos e de compras que vários camaradas me encarregaram de fazer, não deixando todavia de gozar os prazeres que a cidade me podia oferecer, indo à UDIB ver uns filmes, observando os seus edifícios, passeando ao longo do Rio, ficando várias horas nos cafés, e, claro, bebendo umas cervejas na então famosa esplanada do Bento.
Aproveitei também a minha estadia em Bissau para ir bater à porta de casa do Major Albuquerque, tendo conhecido a sua esposa que se encontrava presente na altura. Foram de uma simpatia extrema, tendo-me ele pedido o meu SPM. Quando me despedi, disse-me que se precisasse de alguma coisa que lhe ligasse.
Nunca mais o vi ou falei com ele, mas quando acabei a comissão sem levar nenhuma porrada e com a caderneta limpa, não exclui a hipótese, quem sabe, se nos bastidores ele não terá deixado uma palavra a meu favor.
Para o nosso transporte para Bissau e regresso estava assegurado um serviço de viaturas militares, Unimog ou Mercedes que com horários determinados e partindo do Q.G. e da Amura faziam trajectos diários para Brá.
Partidas da Amura: 12h30, 13h30, 18h00, 19h00.
Partidas do Q.G.: 13h15, 14h30, 19h20, 20h15, 22h00.
Caso se perdesse o transporte ou o regresso fosse mais tarde, havia sempre a possibilidade de nos darem uma boleia de jipe.
Quando regressei de uma dessas ausências disseram-me que o Alferes comando Maurício
Saraiva, que era o comandante do Grupo Fantasmas a que iria pertencer tinha andado à minha procura pelo que fui imediatamente falar com ele.
Coronel comando Saraiva, antigo comandante do Grupo de Comandos Fantasmas.
Foto: Associação de Comandos (com a devida vénia ...)
O Coronel comando Maurício Leonel de Sousa Saraiva faleceu em 16 de Março de 2002. Durante a vigência do Grupo com a patente de alferes , foi agraciado em 1964 com a medalha de Valor Militar e como tenente em 1965 também com Valor Militar.
Chegou o Domingo, dia de regresso, e ao subir para uma das camionetas da coluna encontrei o Alf Adalberto dos Santos Seco (Cmdt Pel Acomp da Companhia) que me apresentou o Fur Fernando Pereira Gomes que vinha sentado a seu lado e que iria ser o meu substituto.
Por não me interessar, nunca soube quem activou o processo de transferência, mas
creio que para os meios militares mais rápido não podia ser.
Regresso a Bissorã
Chegámos [, a Bissorã,]às 14h00 e ficámos a saber que a Companhia estava há vários dias no Olossato onde tinha montado novamente estacionamento com a finalidade de levantar abatizes na estrada Olossato-Farim, e que só deveria regressar a Bissorã na quarta-feira.
Conforme as instruções recebidas de não ficar muito tempo em Bissorã, e apressar o
meu regresso a Brá, fui da parte da tarde do dia seguinte falar com o Encarregado da Secretaria, o 1º Sgto Maurício Martins Clemente, sobre a alimentação, tendo ele feito as contas e dito que, como eu recebia mensalmente para alimentação 827$00, ia dar-me 216$00 referente a 8 dias.
Terça-feira, ainda com o Capitão Amaro Garcia e a Companhia fora - era como se fosse
dia santo no aquartelamento –, para matar o tempo entreti-me a arranjar matéria para tirar fotografias e assim durante o dia pedi ao Nelson Borges (vaguemestre)
que andava também por ali vagueando para mas tirar, e numa delas apanhou-me de lado,
e sem eu ter dado por isso, a olhar para uma bajuda. O Nelson é hoje professor de arqueologia e história na Universidade de Coimbra.
Guiné > Região do Oio > Bissorã > 1965 > O Parreira e as bajudas
Fotos: © João S.Parreira (2007). Direitos reservados.
Depois de almoço, como estava cansado (!), fui deitar-me, tendo sido acordado pela Danfa que foi ao meu quarto buscar roupa, tendo lhe eu pedido, ainda sem lhe dizer que ia sair de Bissorã, para ma devolver antes do dia estabelecido.
A seguir ao jantar e sem qualquer motivo aparente comecei a sentir-me inconfortável
e irritado pelo que, para espairecer e acalmar, resolvi sair do Aquartelamento e comecei a andar pela estrada absorvido com vários pensamentos supérfluos que me estavam a acalmar, pensamentos esses que de repente derivaram para o apreensivo e que se centraram no que iria ser o meu destino e a minha nova vida em Brá, quando no silêncio da noite, ouvi ténues vozes que me pareciam serem cantos ou lamentos que vinham do mato. Parei, e só naquela altura realizei que sem ter dado por isso já me encontrava muito afastado do Aquartelamento.
Convidado inesperado num choro balanta
Entre regressar ou avançar para o local onde tinha ouvido as vozes, optei por continuar a andar mais algum tempo na estrada para pensar na situação. Tendo avaliado os prós e os contras cheguei à conclusão que se por ali houvesse alguns elementos IN por certo me teriam já raptado ou morto, já que não me podia defender mesmo que tivesse tempo para reagir, pois ia desarmado.
Se isso acontecesse ninguém teria conhecimento e seria mais um militar cujo paradeiro ficaria por desvendar. Com um “que se lixe” inicial, e movido pela curiosidade, resolvi saber o que se passava pelo que saí então da estrada e embrenhei-me no mato e aí, agora com um seja o que Deus quizer, dirigi-me na direcção de onde tinha ouvido as vozes.
A certa altura vejo um africano já perto de mim, pois tinha vindo ao meu encontro pelo que deduzi que devem ter dado pela minha presença quer na estrada quer já no mato. Sem me fazer qualquer pergunta disse-me que estavam num Choro, que eu não fazia nenhuma ideia do que era, e apontou para um ponto do mato.
Acompanhei-o em silêncio, e depois de algum tempo deparei-me com muitos africanos ao relento, alguns sentados em semicirculo, junto a umas palhotas que eu desconhecia que ali existissem. Felizmente que me receberam bem pois ele levou-me à presença do homem grande que se encontrava sentado e, depois de trocarem umas breves palavras no dialecto local, percebi pela deferência com que o tratavam que devia estar a presidir à cerimónia fúnebre.
Depois de ouvir o que o jovem africano lhe tinha dito, o ancião estendou o braço e apontou para o seu lado esquerdo, que eu tomei como se fosse para me sentar a seu lado se não estivesse ocupado, e de facto assim foi pois mandou saír o africano que ali estava.
Apesar de ser o único branco no meio de muitos africanos de ambos os sexos, todos eles meus desconhecidos, em nenhuma altura me senti mal ou ameaçado. Passado algum tempo vieram trazer ao homem grande uma malga enorme cheia de líquido.
Sem beber, e sem me dizer o que era, entregou-ma e disse para ser o primeiro a beber uma vez que, segundo disse, eu era o convidado. Ora fosse o que fosse que estivesse na malga eu não podia recusar pois para além de estar a ser observado, seria uma ofensa.
Quando pus à malga à boca e toquei ao de leve com a língua no seu conteúdo, não sem certo receio, fiquei a saber que era vinho de cajú. Assim, e como gostava bastante daquela bebida, estava a satisfazer-me, pois pensava que era só para mim, quando ainda com ela na boca ele estendeu os braços e eu então entreguei-a, pelo que bebeu um trago, tendo-a depois passado ao próximo e assim sucessivamente.
Estando com os sentidos mais concentrados no circuito que a malga ia percorrer, do que observar o que se passava ao meu redor, não pude deixar de reparar que todos eles tiveram a malga na boca muito menos tempo do que eu, pelo que cheguei à conclusão que sem ter dado por isso tinha abusado.
Como pensei que também seria uma ofensa levantar-me e sair dali, e como de vez em quando vinham trazer mais vinho de cajú, por lá fiquei muitas horas, tendo regressado ao aquartelamento já de madrugada, pelo que deitei-me e dormi lindamente.
Uma última operação, à base de Biambe
Só acordei com o barulho resultante do regresso da Companhia que, como o previsto,
tinha chegado naquela quarta-feira.
Segundo consta no relatório, durante esta curta estadia o aquartelamento no Olossato
foi atacado com Morteiro, LGF e armas automáticas. Ao amanhecer foi batido o local e encontraram 1 GM-F1, 3 carregadores, 3 embalagens de morteiro, vários cartuchos e munições
A CART 730 e o Gr Comb da CART 566 que trabalharam em conjunto no levantamento das
32 abatizes que encontraram durante o tempo de estadia, foram uma vez flagelados
e depois emboscados durante 38 minutos, tendo sofrido 5 feridos, e noutra sofreram
uma emboscada durante uma hora que originaram às NT 1 morto e 4 feridos.
Nessa mesma quarta-feira aguardei que o pessoal voltasse à calma e normalidade do aquartelamento e pelas 16,30h fui falar com o Capitão Garcia e disse-lhe que o Major Dinis me tinha dito para regressar a Brá na primeira coluna, e informei-o que o meu substituto já tinha chegado pelo que lhe perguntei se já podia entregar o material de guerra e aquartelamento ao Gomes tendo ele dito para o fazer na quinta-feira, uma vez que no dia seguinte sexta-feira estava prevista uma coluna para Bissau.
Assim no dia seguinte vi-me livre daquele material, e por se encontrarem em falta tive que comprar lençóis e fronhas.
A Binto, conforme lhe tinha pedido, foi certinha a entregar-me a roupa, tendo-lhe eu pago os 60$00 e dito que ia sair de Bissorã.
Foto: João S.Parreira (2006). Direitos reservados.
Aqui aproveito para mencionar que, numa das visitas que fiz à Binto, ela contou-me sobre o Fanado dos homens (nome para circuncisão) em que, após este acto, os homens andam pelo menos uma semana a baixar os olhos quando passam por mulheres.
Preparei-me para ir na coluna, mas das duas uma, ou ela saiu mais cedo do que o previsto ou eu atrasei-me alguns minutos porque quando me ia dirigir para o local da concentração, já ela se via ao longe.
Passou-se Sábado, e no Domingo o Capitão, apesar de eu já ter ter um substituto, achou que devia fazer parte da operação desse dia, assim tive que ir pedir ao Gomes que me devolvesse a G3 e o restante material.
Desde modo, e apesar de estar com um pé fora e outro dentro, o ter perdido a coluna fez com que levasse com a operação à Base de Biambe, em que se capturou pela primeira
vez material, tendo a Companhia, devido à minha ausência, que esperar várias horas
para poder regressar.
Até breve.
João Parreira
__________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post anteriores do (ou referentes ao) João Parreira:
3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros
6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLI: O 'puto' Parreira, do grupo de comandos Apaches (1965/66)
20 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLIII: Com a CART 730 em Bissorã e Olossato (1965) (João Parreira)
13 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXIII: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)
23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
(2) Vd. post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros
(...) "Algumas semanas em Bolama com a minha Companhia, a [CART] 730, cerca de um mês no K-3 e ainda em Bissorã, com nomadizações e operações com algumas peripécias, apesar de tudo achei que não foram maus. O pior veio depois.
"Em 6 de Janeiro 1965, cerca das 03H00, numa operação em Catancó (Olossato), fui ferido com estilhaços de granada, bem assim como três outros camaradas, entre eles um praça e o meu Comandante de Pelotão que devido à gravidade tiveram que ser evacuados.
"Na presença do Capitão, que tinha ficado com 3 pelotões em Cancongo a aguardar o nosso regresso, atribui-lhe as culpas, pois antes tinha discordado com a ordem que nos tinha dado, mas não quis ver a imprudência e puxou pelos galões.
"Assim, rodeado por labaredas às quais fui alheio, decidi que devia sair da Companhia e, sem olhar a possíveis consequências, comuniquei-lhe de imediato que ia tomar as devidas providências para ir para Brá, para os Comandos.
"Tinha já tomado conhecimento que em 28 de Novembro de 1964 no regresso de uma operação uma viatura do Grupo Fantasmas tinha sofrido o rebentamento de uma engenho explosivo na estrada de Madina do Boé – Contabane, perto do pontão do Rio Gogibe, tendo-se incendiado, o que originou a morte de oito Comandos, entre eles o Furriel Artur Pereira Pires (a quem fui substituir) e dois feridos graves.
"Tal como era a minha intenção, e com a devida autorização segui em Fevereiro para Brá, onde me apresentei ao respectivo Comandante, Major Inf Cmd António Dias Machado Correia Dinis que me comunicou que ia ser desde logo integrado no Grupo Fantasmas, que se encontrava reduzido, e nele participei em todas as operações até à sua extinção.
"No mesmo Grupo fui ferido em mais duas operações, uma em 20 de Abril [de 1965], cerca da 01h00 após o regresso de uma operação na zona de Incassol. O Grupo encontrava-se estacionado junto à CCAV 703 que se encontrava a guardar o perímetro, quando repentinamente fomos atacados. Deste ataque a Companhia sofreu oito feridos (três deles graves) e os Comandos quatro feridos sem gravidade.
"Noutra operação, a 6 de Maio, efectuada a um acampamento situado na mata a SW de Catungo (Cacine), em que foi capturado grande quantidade de material de guerra e sanitário, o Grupo (reduzido a 22 homens) teve 10 feridos, entre eles o Capitão de Artilharia Nuno José Varela Rubim que mais tarde ficou a comandar a Companhia de Comandos.
"Em virtude de ter sido ferido com alguma gravidade fui evacuado de heli para o Hospital Militar em Bissau, bem assim como um grande amigo e camarada, o Furriel Joaquim Carlos Ferreira Morais, que, infelizmente, faleceu a meu lado e do qual ouvi a última palavra. Como era amparo de mãe, e não tinha meios financeiros, teve que ser feita uma subscrição a fim de se angariar fundos para que o corpo pudesse regressar a Portugal.
"Com a extinção do meu Grupo, que estava reduzido a pouco mais do que meia dúzia de homens fui integrado num dos dois restantes, os Camaleões, os quais também acabaram por desaparecer, tal como o outro, os Panteras, devido a muitos dos seus elementos terem terminado a comissão e estarem a aguardar o embarque.
"Deste modo deixaram de existir os três primeiros Grupos de Comandos formados no 1º Curso e tornou-se necessário criar o 2º. Curso, no qual participei. Tendo terminado o Curso deslocou-se a Brá o Governador da Guiné, o Comandante-Chefe General Arnaldo Schultz, a fim de, em cerimónia oficial, nos colocar no peito os respectivos crachás. Na mesma altura foram-nos entregues os restantes distintivos. Fui integrado então num dos quatro novos Grupos, os Apaches.
"Com o regresso a Portugal do Capitão Rubim, em Fevereiro 1966, ficou a Comandar a Companhia de Comandos o Capitão de Artilharia José Eduardo Martinho Garcia Leandro, que até à data estava a comandar a Companhia 640, estacionada em Sangonhã.
"Em Março de 1966 deu-se ainda início ao 3º. Curso, destinado a completar os Grupos existentes que já se encontravam desfalcados. Para este Curso apresentaram-se um 2º Sargento, um Furriel e 18 praças. Fiquei nos Apaches também até à sua extinção, uma vez que chegaram a Brá, em 30 de Junho de 1966, os primeiros Comandos formados em Portugal, comandados pelo Capitão de Infantaria Comando Álvaro Manuel Alves Cardoso.
"Apesar de todas as vicissitudes por que passei, em 19 de Agosto de 1966, pisei finalmente o solo da nossa Pátria. Muitas vezes dou por mim a pensar se teria valido a pena o sacrifício e o sangue derramado, e se não teria sido melhor ter aceite a oferta e ter ficado na Secretaria, em Lisboa.
"João Parreira (ex-Furriel Miliciano Comando) (Sassoeiros-Carcavelos) (...)
domingo, 11 de março de 2007
Guiné 63/74 - P1583: A verdade sobre a batalha de Bissau, entre fuzileiros e paraquedistas (José Ribeiro, BCP/CCP 122, 1967/68)
Guiné > Bissalanca > BCP 12 > CCP 122 > O soldado paraquedista José Ribeiro. Pela escrita, vejo que é nortenho, possivelmente natural do Porto. E deve viver actualmente na Suiça, a avaliar pelo seu endereço de e-mail: zeporto@bluewin.ch. Bluewin é um dos mais conhecidos fornecedores de acesso à Internet, a operar na Suiíça.
Fotos: © José Ribeiro (2007). Direitos reservados.
1. Mensagem enviado pelo José Ribeiro, ex-paraquedista (BCP 12, Guiné 1967/68):
Camarada e amigo Graça: aqui envio a cópia do documento que lhe falava no email anterior! Se o meu Amigo o entender publicar, tem toda a liberdade, o qual me faria imenso prazer.
José Ribeiro
Referência ao texto onde se publicam extractos de VICENTE, Carmo - Gadamael: memórias da guerra colonial. 2ª ed. Lisboa: Caso. 1985. pp. 25-30 (1).
Caros camaradas: Reservando os direitos do autor Vicente do Carmo, vou tentar também ajudar um pouquinho pois que há coisas que estão um pouco deturpadas, e creio que o meu amigo e companheiro desta batalha não me levará a mal.
Colega da mesma recruta, do curso de Pára-quedismo e curso de combate, partimos no mesmo dia para a Guiné, combatemos juntos, não por muito tempo pois ele [ o Vicente do Carmo,] voltou, passado uns meses para Tancos, onde o vim encontrar, à minha chegada, com o posto de 2° sargento, salvo erro. Tudo isto no espaço de dois anos entre o assentarmos praça e a minha chegada, a 23 de Maio de 1968.
Conta como comissão de serviço esta pequena passagem pela Guiné para amealhar uma 3ª comissão! Eu gostaria que a estadia em África fosse contada por meses e não por comissões ! Neste caso teríamos camaradas do Exército que estiveram igual tempo ou quase, em uma comissão que neste caso contou três!!!
O nosso relacionamento era o normal entre camaradas nos bons e maus momentos. Também gostaria de precisar que o Camarada Vicente já tinha irmãos 1° Sargentos nas Tropas Pára-quedistas.
Para me referir ao livro, aqui, bom, só tenho as minhas memórias (de quem só fez uma comissão na Guiné que eram precisamente 18 meses).
Amizades com os fuzos ?
Jamais do nosso tempo na Guiné fomos amigos dos Fuzos , inclusive só um Fuzo e sempre o mesmo ia ao nosso Batalhão. Amizades em Bissau concerteza que existiria, pois entre todos nós teríamos colegas da escola, vizinhos ou amigos e era tudo. Não tínhamos amizades tradicionais com tropas de outros ramos , até porque no Ano de 1966 tivemos também uma grande batalha na estrada entre Bissau e o nosso Batalhão, com os Comandos
Conhecidos arruaceiros como o famigerado Oitenta (3)... O 1° Cabo 80 não era arruaceiro, era um Pára-quedista e um bravo combatente.
Chicotes e cinturões
Este meu colega de guerra [, o Vicente do Carmmo,] nunca sentiu o que representa a boina verde para um Pára-quedista! Farras monumentais com os fuzos!? Concerteza que a guerra do Vicente era uma outra!
Concerteza que para se escrever um livro se tem que inventar, por estas razões temos que não olhar para os cambridges e direitos de não sei de quem para repor a verdade. É verdade que o cinturão nos era imposto, fazia parte da farda de saída que era a amarela, não era autorizado sairmos de camuflado.
Quanto aos chicotes, não eramos da cavalaria por esta razão poderia inventar outra mas como homens que éramos tinhamos sempre connosco o de nascença.
Quanto às correntes de bicicleta, não existia uma bicicleta naquele tempo na Guiné, esta nem tem cabidela, é escrever por escrever! Cabos de aço ? Cabe na cabeça de alguém irmos passear com cabos de aço em Bissau ???? E onde os ir procurar?
Quanto aos braços engessados, mais à frente explicarei!
Arruaceiros ? Eles eram os melhores de todos nós!
E quanto aos arruaceiros, valha-nos Deus que ele concidera os nossos bravos como o 80, o Latas , o Ribeiro , o Setúbal , o Almada , o 3 e tantos outros como arruaceiros !... Saberá o Vicente que estes eram aqueles que em quem mais confiavamos na guerra ?
Eram estes mesmos e não sei porquê os que utilizavam a MG em combate, eu nunca fui um arruaceiro mas também nunca virei a cara à luta, talvez tivese dado muita porrada mas também apanhei muita, até talvez tivesee apanhado mais que aquilo que dei , mas como diz o outro nunca fiz papel de cobarde e nisto tenho honra. Se fui um arruaceiro que me desculpem todos os boinas verdes mas foi para honrar as tropas Pára-quedistas.
A UDIB (boinas negras) contra o ASA Clube (boinas verdes)
Neste dia, sábado, faziamos 6 meses da nossa chegada á Guiné e como tinham vindo os manda-mais da marinha fazer queixa ao nosso comandante porque Páras tinha dado porrada nos marinheiros, o nosso comandante com todo o Batalhão reunido passou-nos um violento sabão e dos grandes, como manda a lei!
Para terminar o seu discurso o nosso Comandante disse algo do génereo: "Que já tinha ouvido em qualquer parte, talvez dos meus Pais, enquanto me vierem fazer queixa de vós, porque fosteis ao focinho aos outros tudo vai que vai, mas o dia que eu tenha o desgosto de ir eu mesmo pedir satisfações aos outros, aí ides apanhar uma porrada que não mais saireis da tropa"... Isto dito mais ou menos nestas palavras. E de manhã, não à noite e foi o nosso comandante, estando eu de serviço ao Batalhão !
Depois da malta destroçar , vejo a virem, da enfermaria um, colegas com os braços engessados - três, seis, dez - e aí eu perguntei o que se tinha passado... Rapidamente cheguei á conclusão que qualquer coisa não estava a bater bem. De tarde fui para Bissau com o meu cinturão porque era obrigado, e creio que quase todo o batalhão tinha metido dispença de formatura para a noite. Estas foram as nossas armas .
Uma manga verde, lançada ao acaso: o rastilho de uma tragédia
Uma manga verde foi o que o Vicente apanhou na cabeça, de certeza ! Como se fosse preciso tamanho disparate para todos nós começarmos à porrada! Se ela estava programada !!!
Por pudor, não contarei aqui o que me sucedeu mas, como costumo dizer, dei mas tambem apanhei. Muito ou pouco ? Não conta para a história, o mais que posso é lamentar o que se passou, que não se deveria ter passado. Mas crianças como nós éramos, nos nossos 18 aninhos - pois era a média de idade que tinhamos nós, os Pára-quedistas -, quem poderá nos atirar a pedra? Ou nos tratar de arruaceiros ? Quem? Os outros eram melhores ? Para a porrada, pelos vistos, não!
Uma batalha campal: fuzileiros armados de G-3 a granadas de mão
A verdade é que, tendo os marinheiros o quartel ali a uns metros do local, válidos,inválidos, feridos e aqueles em boa saúde, fugiram para o seu quartel e, como não poderia deixar de ser, ao entrarem aqueles valorosos soldados todos partidos e com o peso da derrota gerou-se o pânico !
E com os nervos à flor da pele alguém teve a infeliz ideia de dar ordem para que saisse o piquete da guarda. Se não tivessem saído estes, tinha tudo ficado por ali sem mais histórias como das outras vezes.
Escusado será dizer que alguns destes fusos foram desarmados por nós, não tendo nós mesmos feito uso destas armas, como nos tinham ensinado na instrução. Mantivemos a nossa dignidade e controle sobre a situação, de outra maneira estavamos hoje aqui a falar não de feridos e dois mortos mas de uma catástrofe nacional. E este parágrafo deve de ser muito bem estudado por todos os intervenientes!
Como resultado desta operação, fomos a companhia de caçadores paraquedistas 122 para um lugar célebre, onde anos depois foram mortos 3 Majores, o Bachil em tendas de campanha, durante um mês a fazer operações. A CCP 121 foi para um outro local.
Fuzos, a Campanhia ou outro nome que eles tinham, foram todos para Moçambique por terem sido dados como culpados (creio eu )! E para se evitarem outros confrontos.
Outros factos a corrigir
Queria também repor aqui umas verdades, caso do Comandante Civil e Militar o General Arnold Schulz voltou para Portugal em fins de Maio de 1968, neste caso um ano depois deste triste acontecimento que foi no dia 3/6/1967...
O Oitenta também não era enfermeiro nem nunca o foi!! E a seguir a este episódio o 80 terminou a comissão obrigatória e por conseguinte voltou para Portugal!
Obrigado pela atenção e saudações a todos os militares em especial os que se bateram em Africa, sem distinções de fardamentos.
José Ribeiro
Ex-paraquedista da CCP 122 (Guiné, 1967/68)
Comentário de L.G.
Obrigado, José, pelo teu contributo para esclarecer a verdade sobre a tristemente famosa Batalha de Bissau. Eu não conheço o Vicente do Carmo, nem ele sequer é membro da nossa tertúlia. Mas, se ele nos ler, naturalmente que também está no direito de te responder.
Em relação ao teu texto, gostaria de esclarecer a questão das datas: tu dizes que "este triste acontecimento" ocorreu em 3 de Junho de 1967, um ano antes da substituição do Schultz por Spínola. O Vicente do Carmo, no seu livro Gadamael, situa a batalha de Bissau em Janeiro de 1968.
Como sabes, aqui não nos interessa a polémica pela polémica, mas a verdade dos factos. Todos estamos a lutar contra a degenerescência dos nossos neurónios e o esquecimento (social) a que os outros portugueses nos votaram. Por isso, o teu depoimento é muito importante. Tu estiveste lá, na porrada, nas ruas de Bissau, não ouviste contar em segunda ou terceira mão (2)... Por outro lado, é bom lembrar que estes acontecimentos não eram isolados, que se repetiram em Bissau e aconteceram noutros sítios, com maior ou menor freqência e gravidade (3)... E, já agora, temos de evitar cair no erro do maniqueísmo, a divisão do mundo em bons e maus...
Espero que voltes a escrever-nos. E diz-me se queres passar a figurar na lista dos membros da nossa tertúlia. Só me falta uma foto tua, actual. Comfirma também o teu oposto e a tua unidade. Diz-me também quando chegaste à Guiné. Boa sorte, para ti.
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 11 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1515: Antologia (58): A batalha de Bissau em Janeiro de 1968: boinas verdes contra boinas negras... Saldo: 2 mortos (Carmo Vicente)
(2) Vd. outros posts:
13 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1522: Bissau em estado de sítio por causa dos graves incidentes entre paraquedistas e fuzileiros em Janeiro de 1968 (Álvaro Mendonça)
10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)
(3) Vd. 10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1579: Buba: Graves incidentes entre camaradas, comandos e fuzileiros, em 19 de Abril de 1969 (Zé Teixeira)
Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Quartel > Foto 04 > "Foto tirada de cima do depósito da água do quartel [Julho de 1967]. Vista parcial da parte nova do quartel. A parada com o cepo (raiz) do Poilão, à esquerda as casernas nº 1 e nº 2, ao centro o edifício do comando, por detrás deste as camaratas de sargentos e depois destas as novas messes ainda em construção, tal como a camarata de oficiais à direita. O telhado vermelho era a messe e bar de sargentos".
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS do BART 1913 (Catió 1967/69).
Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Quartel > Foto 03 > "Foto tirada de cima do depósito da água do quartel [Julho de 1967]. Vista parcial da zona antiga do quartel, o primeiro edifício eram quartos, o do meio era o dos quartos do 7,5 e ao fundo a Central Eléctrica Geradora Civil do lado de lá da rua das Palmeiras que ligava à estrada de Priame. Era também a zona da capela/escola, posto de socorros/enfermaria, arrecadação de material de guerra, arrecadação de material de sapadores, oficina de rádio, etc".
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS do BART 1913 (Catió 1967/69)> Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Vila > Foto 50 > "Lagoa com nenúfares à esquerda na estrada de Catió/Priame".
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS do BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Vila > Foto 49 > "Os poilões na tabanca de Sua".
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS do BART 1913 (Catió 1967/69) > Foto 36 > "Militares [?] na esplanada do Bar Catió, em fundo a casa do Sr. José Saad e as lojas deste".
Fotos: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados.
Magníficas fotos e legendas de Vítor Condeço (ex- Fur Mil Mecânico de Armamento Victor Condeço, CCS do BART 1913, Catió 1967/69) (1). Vive actualmente no Entroncamento. E mandou-me um CD com uma selecção de fotos digitalizadas, com a seguinte nota de apreço e camaradagem que muito agradeço, em nome de todos nõs, amigos e camaradas da Guiné:
Caro Luís,
Na selecção que fiz, tive por objectivo principal mostrar locais de Catió e redondezas, não as pessoas que inevitavelmente também ali aparecem. As que eu ainda consigo lembrar cito os nomes, as outras que não nomeio que me perdoem, mas já passou muito tempo.
São muitas fotografias eu sei, representam apenas cerca de 10% das que actualmente estão no meu álbum que digitalizei dos próprios negativos que ainda possuo, salvo uma ou outra de que só existe mesmo a foto. Utiliza as que entenderes, como e onde te aprouver se vires nelas algum interesse.
Algumas das fotos da Vila e do Quartel, quando comparadas com as do Albano Costa (2) ver-se-á que retratam os mesmos locais, embora com as devidas diferenças de 33 anos.
Amigo, por hoje não te tomo mais tempo. Um abraço, Victor Condeço.
IX Parte das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (3) . Subtítulos do editor do blogue.
2.13/2.14. Catió, no dia a dia
Os dias que se seguiam a uma operação (1), até ao máximo de três semanas, eram, quase de repouso. Davam para saborear o fascínio africano de Catió.
A omnipresença dos militares, de caqui amarelado, a vaguearem, aparentemente descontraídos, era a única nota dissonante naquelas paragens, envoltas em perfeita harmonia natural. A força pujante da natureza vestia a vileca de Catió de um manto permanente de verdura imensa:
- As árvores, verdadeiramente dinossáuricas, no arcaboiço dos troncos descomunais, no porte de altura imensa, a desafiar as nuvens, no entrelaçado dos ramos musculosos, onde saltavam e conviviam, em uníssono à-vontade, famílias de macacos e bandos de aves gigantes, coloridas; se escondiam, terríveis, os ofídeos esverdeados, de mordedura imperdoável;
- O chão avermelhado, onde sobressaíam os rendilhados caprichosos feitos das nervuras de terra, esculpidas magistralmente, pelas enxurradas da última época de chuvas, cobria-se, por toda a parte, de uma manta de folhas e de mangas amarelecidas, caídas, aos montes, daquele dossel colossal.
Por ele, corriam, tresmalhados, à solta, bandos de pretitos encaracolados, de olhos redondos, vivos e doces, atrás dos arcos, de rodas de bicicleta; cirandavam mães pretas, de pele luzidia ao sol, com os filhitos, gorduchos e tranquilos, bem refastelados às cavalitas, num pano de cores, preso à cintura e açafates a esbordar de frangos, vermelhuscos ou de frutos da tabanca.
Velhos negros, agarrados a um pau, da sua altura, de corpo nú e olhar mortiço, coberto por um simples pano a caír-lhes, em largas pregas, passeavam-se, por ali, cambaleantes, pelo último trago de cachaça de coco…
De vez em quando, outros negros, de idade madura, altos e esguios, óculos escuros, barretes altos, vermelhos ou brancos, com vestes largas e elegantes, a caírem, majestosas, até aos pés, nús e espalmados no chão, ou montados em velhas bicicletas inglesas, muito limpas, seguiam, vaidosos, debaixo de um largo guarda-sol, até ao largo da Administração, no cumprimento das muitas normas do seu apertado estatuto colonial, ou, simplesmente, se dirigiam ao grande armazém comercial, onde nada faltava, ou ao alfaiate que lhes preparava o último fato, feito de encomenda e por medida.
A mais bela Procissão de Ramos da minha vida
Na pequena igreja branca, simpática, de linhas modernas, bem situada na zona central, tal como a escola primária, agora entregue aos cuidados do capelão militar, via-se o habitual formigar de crianças, vivaças, de todas as idades, saltitantes e entregues aos mesmos jogos da minha catequese, não muito distante.
A sineta não parava de dançar, em cada dia, puxada pelo atilho que descia desde o alto sobrelevado da frontaria da igreja, ora para a catequese, ora para a missa. Nunca vi uma procissão dos ramos, tão rica, de grandes ramos de palmeiras, nas mãozitas negras da pequenada, tão viva e vibrante como naquela, das duas páscoas, lá vividas…
Nas esplanadas dos dois únicos bares da terra - o Tombali e o do Zé Siriano – estendidas, por baixo do frondoso arvoredo tropical, não faltava a cerveja fresca, o marisco baratíssimo e abundante e tudo o mais que pode regalar o calor das tardes de verão tropical.
Muitas vezes, se acendia uma fogueira para assar um açafate de ostras perfumadas que uma preta nos vendia por 12$50!... Era o five oclock’ ostra, tão saboroso, com molho de manteiga e limão, o momento mais alto da rapaziada, a par das noitadas, luarentas, sem fim, a ver a dança escaldante das bajudas, no terreiro das tabancas, ao som frenético de tambores e assobios.
De vez em quando, um passeio, a pé, pelas tabancas em redor, sabia bem. Mas, cuidado. Sem, nunca esquecer a pistola Walter…
Os ofícios: o tecelão e o ferreiro
A figura do tecelão e do ferreiro são inesquecíveis… Ao longo de 50 ou mais metros do caminho, ao sair da tabanca, sentado no chão, ali estava, impecavelmente improvisada, a oficina do tecelão.
Era um fula ou um mandinga, via-se pelas vestes brancas, de muçulmano; magro e muito ágil; rosto, anguloso, expressivo nada bolachudo, como eram os balantas. Cor, de um preto afogueado…
As linhas, aos milhares e de todas as cores, iam rodar lá longe no tronco de pau bem polido, bem ordenadinhas e vinham ter ao pente largo da geringonça, muito simples, de madeira, postada diante das pernas do artista.
Só o essencial de um sofisticado tear ali se encontrava, bem funcional. Os movimentos ritmados da mão direita, agarrada a um pau, faziam girar, em vaivém certinho, a bobine de linhas, bem abastecida, desde aquelas fiadas compridas que vinham de longe…
O tecido, por verdadeiro milagre, ia aparecendo, harmonioso e firme, na cor e no entrelaçado… ia, logo, enrolar-se ao rolo da recolha. Bonito, de cores vivas, muito bem combinadas!…
Vía-mo-los, depois, a gingar nos corpos das moças, pujantes e sensuais que, por ali, cirandavam, serenas e abundantes.
O ferreiro era outro artesão, característico. A oficina estava toda ali, estendida no chão do caminho, à frente dele:
Ele, também, é um típico fula ou mandinga; rosto, nobre e bem desenhado; sorriem-lhe os olhos, tanto como a boca onde reluz uma dentadura, natural, de respeito. As vestes são de panos brancos e largos, enlaçados nas pernas, como só eles sabem compor.
Uma fogueira de cavacos de que só eles conhecem o poder calórico. Um fole de pele, tosco feito pelas próprias mãos, injecta ao fogo ondas de gás roubado aos ares, como se fosse o mais puro oxigénio industrial.
Os pedaços de alumínio recolhidos nas lixeiras, são ali moldados no que ele muito bem quiser.
Do ferro das catanas velhas sai tudo o que lhe der na ideia. Com precisão. Às primeiras marteladas de outra catana velha, que lhe faz de martelão certeiro. Também, ali, é verdade o refrão: “Em casa de ferreiro…”
Toda a panóplia de bugigangas que se vêm à venda nos escaparates das lojas ou estendidas nos panos do mercado, e que nos regalam os olhos ocidentais, são feitos, ali ou, algures, noutra tabanca qualquer, do mesmo modo…
A sua simplicidade é encantadora. Parece não ter consciência do verdadeiro artista que é.
O homem grande
A seguir, vem a casa do homem grande. E era mesmo, em estatura e no porte, ao mesmo tempo, nobre e altivo, majestoso mas simples e cortês. Era um verdadeiro senhor, brotado da natureza; sem escolas ou figurinos.
Mal entrevia a nossa chegada, a partir da varanda fresca, típica, africana, onde quase sempre se encontrava expectante e disponível, da sua casa, implantada em lugar cimeiro, mais asseada que as outras, ali, vinha a receber-nos, prazenteiro, vestes brancas escorridas dos ombros, altos, cabeleira, robusta, totalmente branca e completa, só a cor preta desaparecera, logo vinha dar-nos as boas vindas.
Sabia quem éramos e, até, o nosso nome. Ele era a autoridade máxima da tabanca, competente para resolver todos os diferendos surgidos no clã de que era o chefe eleito. Era um homem íntegro, segundo os cânones da tribo, e também, segundo os nossos. Comprovava-o a aceitação pronta e total de qualquer pretensão que lhe fosse apresentada pelas autoridades administrativas ou militares.
Tudo o que quiséssemos saber, sobre os complexos costumes e normas indígenas, ali estava sempre à vista e ao dispor, em ricas horas de amena cavaqueira.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de:
3 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1335: Um mecânico de armamento para a nossa companhia (Victor Condeço, CCS/BART 1913, Catió)
21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)
(2) Vd. posts de:
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1505: Lembranças da Vila de Catió (1): Albano Costa / Mendes Gomes / Vitor Condeço
15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1528: Lembranças da Vila de Catió (2): Albano Costa / Vitor Condeço
(3) vd. posts anteriores desta série que está quase a chegar ao fim (Crónica de um Palmeirim de Catíó):
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo