sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3567: Humor de caserna (7): O Pastilhas e a bajuda (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Aquartelamento de Contuboel > Junho de 1969 > CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71) > Os 1ºs Cabos Cripto Gabriel da Silva Gonçalves (à esquerda) e José António Damas Murta (à direita), junto ao abrigo de transmissões. Em Junho e Julho de 1969, foi administrada aos futuros soldados (guineenses) da CCAÇ 12 a instrução de especialidade bem como a IAO (LG).

Fotos: © Gabriel Gonçalves (2008). Direitos reservados


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Natal de 1969 > Sargentos e furriéis da CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (1969/71) (quase todos) e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) (dois). O Fur Enf Martins, mais afectuosamente conhecido como o Bolha d'Água, está na segunda fila, de pé, assinalado com um círculo a vermelho (**).

Legenda: (i) Da esquerda para a direita, na 1ª fila: o Jaime Soares Santos (Fur Mil SAM, vulgo vagomestre); o António Eugénio da Silva Levezinho (Fur Mil At Inf); o António M. M. Branquinho (Fur Mil At Inf); o Humberto Simões dos Reis (Fur Mil Op Esp); o Joaquim A. M. Fernandes, Fur Mil At Inf; (ii) da esquerda para a direita, 2ª fila, de pé: 2º Sargento Inf José Martins Rosado Piça; o Fur Mil Armas Pesadas Inf Luís Manuel da Graça Henriques; um 2º sargento, de cujo nome não me lembro (CCS do BCAÇ 2852); o 1º Sargento Cav Fernando Aires Fragata; o Fur Mil Enfermeiro João Carreiro Martins; e um outro 1º sargento de cujo nome também já não me lembro, da CCS do BCAÇ 2852... Os restantes pertenciam à CCAÇ 12 (na altura ainda, CCAÇ 2590) (LG)


Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


1. Mensagem do Gabriel Goncalves, ex-1.º Cabo Cripto da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71, enviada em 28 de Novembro de 2008

A estória do Bolha d'Água, ou Furriel Pastilhas, como nós lhe chamávamos, aqui vai (***):

Lembro-me muito bem do Furriel Pastilhas, a última vez que o vi foi num encontro que se realizou na herdade do Vacas de Carvalho [, em Montemor-O-Novo], já lá vão uns anitos e tenho realmente uma estória dele, bastante divertida, daquelas que só se poderiam passar na Guiné, então lá vai:

Uma ocasião passava eu à porta da enfermaria, ouvi uma algazarra do caraças; era o Pastilhas, de seringa na mão direita e de algodão embebido em desinfectante na outra, a gritar para uma bajuda:
- Tira o pano, tira o pano...- e a bajuda gritava:
- Nega, nega!!!...

Como ela não tirava o pano para levar a injecção, o bom do Pastilhas com a mão esquerda desinfectou o pano no sítio certo e zás... espetou a agulha, dando-lhe assim a injecção.

Aproveito a oportunidade para enviar uma foto, tirada em Contuboel, poucos dias após a nossa chegada, onde estou eu e o Murta, os criptos da CCAÇ 2590, à porta do abrigo das transmissões.

Um abraço

GG

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Arcanjo São Gabriel, por te lembrares desta história (divertida) passada com o querido Fur Mil Enf Martins, o nosso querido Pastilhas (talvez mais conhecido por Bolha d'Água e a quem fazíamos mil e uma patifarias) (**)... Ele foi um extraordinário enfermeiro ao serviço da população de Bambadinca. Se queres que te diga, ele é que merecia uma estátua. Ainda hije recordo as filas de dezenas e dezenas de civis (homens, mulheres e crianças, incluindo gente do PAIGC de Nhabijões, Mero, Santa Helena, Madina...), a aguardar mezinho à prota da tabancado Pastilha... Em contrapartida, nunca o conseguimos demover a dar um passeio connosco à Ponta do Inglês.... Não sei até se ele alguma vez saiu do arame farpado a não ser para voltar a casa.... Na enfermaria ele era, com os civis ou militares, competentíssimo e dedicado.

Volltei a vê-lo mais tarde, no início dos anos 90. Foi meu aluno, num curso de especialização em administração de serviços de enfermagem, na antiga Escola Superior de Enfermagem de Maria Fernanda Resende (hoje integrada na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa). Reformou-se como Enfermeiro-Chefe no Hospital Curry Cabral. Falei com ele há tempos: é o pai, justamente orgulhoso, de dois médicos... Gostaria de voltar a vê-lo e de abraçá-lo. LG.

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. últimpo poste do Gabriel Gonçalves > 30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3545: Memória dos lugares (14): Bambadinca, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, 1969/71 (Gabriel Gonçalves)

(**) Vd. poste de 13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1366: A galeria dos meus heróis (6): Por este rio acima, com o Bolha d'Água, o Furriel Enfermeiro Martins (Luís Graça)


(...) "Pobre Bolha d’Água, pobre Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, penso que ele foi o meu primeiro herói, ou melhor, o meu primeiro anti-herói: nunca o vi a pegar uma arma, duvido até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhou connosco em operações, mesmo nas grandes operações; recordo-o sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem...

"Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo.. Ele foi o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local...

"Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto e até perigosas: recordo-me de um dia - às tantas da noite, no regresso de uma emboscada - o termos acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da CCAÇ 12, já na parte final da comissão, a vestir no camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... Simulámos uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido um temível nome como Ponta Varela, Poindão ou Ponta do Inglês... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo...

"Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Martins teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico... No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas aos doentes africanos, de Bambadinca, Bambadincazinha e tabancas dos arredores... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...

"Voltei a encontrá-lo, muitos anos mais tarde - vinte anos depois - , numa situação algo insólita: era enfermeiro chefe no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e estava a agora a frequentar um curso de administração de serviços de enfermagem, na Escola Superior de Enfermagem Maria Resende. Os nossos papéis agora eram outros: ele, aluno; eu, professor...

"Sei que ele hoje está reformado... Voltei a encontrá-lo mais tarde e lembro-me de ele me ter falado, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, do seu filho, agora médico... Perdi-lhe depois o rasto, mas confesso que gostaria de voltar a encontrá-lo, em Lisboa, ou aqui na nossa tertúlia, para lhe dizer que ele agora faz parte da minha de galeria de heróis e também para lhe pedir desculpa de algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas que o terão magoado...

"A guerra é cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem - primata social, territorial e predador - tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade...

"O Martins teve o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança - sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O Martins era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses de Bambadinca: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque... Ora no tempo dele, no nosso tempo, nunca houve felizmente uma ataque directo ao aquartelamento de Bambadinca..

"Por outro lado, ele cometera em Contuboel (onde estivemos um mês e meio, no início da comissão) um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º Sargento Fragata, com quem de resto tinha mais afinidades... Os milicianos, sobretudo os operacionais, marcaram-no e às vezes faziam-lhe a vida negra...

"Meu caro Martins: neste Natal desejo-te longa vida e muita saúde, contrariando o provérbio popular que garante Muita saúde, pouca vida, que Deus não dá tudo... Se leres esta mensagem, contacta-me por favor... Há uma conversa que começámos no Niassa e que ficou por terminar" (...).



(***) Vd. último poste desta série > 18 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3476: Humor de caserna (6): Paiama, Paunca, Natal de 1970: o lapso do Caco Baldé (Rogério Ferreira)

Guiné 63/74 - P3566: Blogoterapia (80): Um elogio vindo da Bélgica (Soldado Carvalho / Santos Oliveira)

1. Em 1 de Dezembro de 2008, Anónimo deixou um este comentário no poste Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos O...:

Senhores

Quando cheguei ao Cachil este era o furriel que já lá estava com um pequeno grupo de homens e três morteiros.

Foi o furriel que punha sempre os soldados à sua frente, conversava, falava, jogava, aconselhava e fazia a vigilância da mata, por eles.

Pareciam todos felizes quando os novos por lá ficavam tristes e sozinhos. Muitos de nós acabaram no jogo da lerpa e na cerveja.

Este furriel também tinha sempre um conselho para nós. Poucas vezes o vi festejar ou a beber com os outros furriéis e alferes da minha Companhia.

Este era o furriel que depois de cada ataque vinha saber de posto em posto, como estávamos e dizia-nos que já tinha terminado tudo, que esta já se tinha passado e outras coisas. Tinha sempre uma palavra que nunca ouvimos dos nossos alferes ou furriéis.

Para mim é um grande homem como um pai, porque me ajudou e aos meus companheiros. É o furriel que não dava ordens. Explicava e ensinava e os soldados faziam tudo sem serem precisas ordens.

Este furriel, se quisesse alguém para o seguir numa patrulha para morrer, tinha sempre mais voluntários do que se fosse para um rancho melhorado. Quando se foi embora nunca mais nos sentimos seguros. Só éramos mais experientes.

Estou a morar na Bélgica, não tenho internete, mas há uns portugueses companheiros mais novos do trabalho que têm e vão deixando ver essas coisas da tropa do meu tempo.
Desejo que o senhor Oliveira seja muito feliz, porque também me fez feliz.
Soldado Carvalho


2. Luís Graça deixava também um comentário dirigido a Santos Oliveira, nestes termos:

Aqui está um depoimento de um antigo soldado teu que te vai encher de orgulho. Como português e como homem.
Luís


3. Por sua vez, o visado, camarada Santos Oliveira deixou, ainda neste dia o seguinte comentário no mesmo poste, dirigido a Luis Graça:

Conseguiste pôr-me a chorar.
Inseri este desabafo de muita saudade por quantos "passaram" ou por quem "passei".
Não era um Soldado do Pel Mort 912; presumo seja duma das CCaç que desfilaram pelo Cômo.
Nunca me senti tão pequenino.
Abraços
Santos Oliveira


4. Outro comentário de Santos Oliveira, este dirigido ao ex-Soldado Carvalho

Camarada Carvalho
Se tens vindo a ler as nossas Histórias, certamente já reparaste que todos nos tratamos por tu; portanto será desse modo que te escrevo. As Patentes (ou Postos) que tínhamos, aqui e agora, já não têm cabimento. Fomos Soldados, Cabos, Furriéis, Sargentos, Alferes ou Capitães, porque assim era. Mas agora apenas somos só Homens, Camaradas, Companheiros e Amigos.

Dos Homens ou da Pátria nunca recebi uma Honraria como a que acabas de me conceder. Foi o maior Louvor, a mais alta Medalha ou o mais sublime Colar que, embora aparentemente invisíveis, guardarei no meu peito. A comoção aperta-me o coração, porque acho que passei por tantos camaradas que não lembro mais, mas que a cada dia se vão revelando. Isso traz-me imenso orgulho, mas também alguma frustração por me sentir impotente e incapaz de corresponder ao que ainda vão esperando de mim.

Como dizes, Ordens não as dei como tal e não seria agora que as daria. Mas, dentro do que tão bem ajuizaste, percebes que gostaria de falar contigo frente a frente (nada me daria mais prazer), por telefone, por carta ou pela Internet. Se assim o entenderes podes consultar os Editores deste Blogue luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e ser-te-hão facultados todos os meus contactos.

Por mim, Amigo Carvalho, eu espero continuar por aqui mais uns tempos.
Para ti, por cá ou pela tua Bélgica de adopção, quero desejar-te as maiores venturas. Mais, pela época que se aproxima, votos que abranjam os teus familiares e teus solidários companheiros de trabalho, UM SANTO E FELIZ NATAL

Abraços, do
Santos Oliveira


Tite > Setembro de 1965 > Santos Oliveira

5. Comentário de CV:

Não pudemos deixar de publicar esta troca de comentários, cuja origem foi uma singela, mas sentida homenagem de um homem que não tem pejo em se assinar como Soldado Carvalho para se identificar. Trata-se de alguém que como tantos outros ex-combatentes, não tiveram outra alternativa que não a diáspora, para levarem uma vida mais confortável materialmente. Pelo modo como se dirige ao nosso camarada Santos Oliveira, denota uma sinceridade e uma humildade dignas de nota. Humildade no sentido de não ter vergonha de se expôr, e enobrecer alguém que ainda hoje é uma referência para ele.

Caro Santos Oliveira, aceita a minha inveja por não ter ninguém a quem tenha deixado a minha marca, naquele ambiente tensão, medos, incertezas, onde o espírito de camaradagem e solidariedade eram tão importantes, especialmente para quem, tendo uma patente inferior, era digno de respeito, como ser humano que era. Temos a certeza que honraste a farda e as divisas que trazias nos ombros.

Subscrevo a tua afirmação. Nenhum Louvor ou Condecoração vale tanto como este elogio vindo da Bélgica, de alguém que passados tantos anos, ficou contente por saber de ti.

Ao Soldado Carvalho, nosso velho camarada de armas, votos de muita saúde e uma boa vida na Bélgica. Que o afastamento da Pátria lhe tenha sido favorável, já que ela o não soube compensar.
____________

Notas de CV:

Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66

(*) Vd. poste de 30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3525: Blogoterapia (72): Gabriel, Cruz de Guerra na Guiné, coveiro na freguesia...(V. Briote)

Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)


Duas das ilustrações de Ofélia Marques que enriquecem o livro de Fernanda de Castro (1900-1994), Mariazinha em África (Lisboa: Ed. Empresa Literária Fulminense, 1925).


Imagens: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados

Fernanda de Castro e a Guiné
por Beja Santos

Leopoldo Amado, nosso confrade, chamou a atenção num importante ensaio intitulado “A literatura Colonial Guineense” (Revista ICALP, vol. 20 e 21, Julho - Outubro de 1990) (*) para o legado de Fernanda de Castro na literatura colonial que se afirmou na primeira metade do séc. XX.

Em 1870, a presença portuguesa na Guiné aparecia moralizada pela sentença arbitral do Presidente Ulisses Grant, considerando-se a data como marco histórico para a autonomização da Guiné face a Cabo Verde. Iniciava-se um período de relativa prosperidade, com a intensificação de trocas comerciais, Bolama enche-se de uma classe administrativa e comerciantes, os negociantes estrangeiros cirandam entre Bissau e Bolama, entre Bolama e Buba, entre Bissau e Cacheu. Aparecem publicações, uma pequena elite manifesta-se como gente “civilizada face” aos “indígenas”.

É dentro deste processo de colonização, aculturação e pacificação que desponta a literatura local. Leopoldo Amado destaca o papel de Fernanda de Castro que viveu na sua juventude em Bolama e que escreveu um best seller que encantou várias gerações: “Mariazinha em África” que surgiu em 1925, a que se seguiram outras obras que tem a Guiné como palco: “O Veneno do Sol” (1928), “Aventuras de Mariazinha em África” (1929); “Exílio” (1952) e “África Raiz” (1966) (**).

Fernanda de Castro é a mulher de António Ferro [1895-1956], é uma escritora modernista, terá tido uma infância feliz na Guiné, todos estes livros acabam por ser memórias e confidências desse tempo. Leopoldo Amado destaca Fernanda de Castro nas sucessivas edições de “Mariazinha em África” foi adoçando a visão colonialista do negro, aliviando cargas de preconceitos, se bem que mantendo o entusiasmo dos seus relatos que seguramente apaixonaram leitores de várias idades sobre um exótico praticamente desconhecido ou ignorado.

“Mariazinha em África” é apresentado como um romance infantil. Estou a seguir uma edição da Ática, 1959, com ilustrações belíssimas de uma grande artista do modernismo, Ofélia Marques, uma ilustradora que se impôs no panorama nacional ao lado do seu marido, Bernardo Marques [1898-1962], este dotado de um risco de grande talento, um visionário do desenho, um mestre de aguarela.

Mariazinha, a mãe e o irmão mais novo vão se encontrar com o pai, capitão do porto de Bolama, é uma fascinante viagem de barco, passaram ao largo da Madeira, avistaram as Canárias, Mariazinha viu os peixes voadores, estiveram em São Vicente e partiram para Bissau e daqui para Bolama. É uma criança que se fascina com aquele admirável mundo novo, onde há tubarões, crocodilos, quando Mariazinha chega a Bolama tem à sua espera um lindo quarto pintado de azul, uma cama de metal amarelo, uma secretária com um tinteiro, livros de aventuras, um dicionário Larousse ilustrado.

O pai apresenta os criados que falam numa língua incompreensível, uma algaraviada: Lanhano é o criado de mesa, tem uma risca muito bem feita na carapinha, Adolfo que não percebe nada e que diz sempre si, sinhô, o jardineiro Undôko que tem uma dentuça feroz mas que não é capaz de fazer mal a uma mosca, há o príncipe Mamadi que veio aprender português lá em casa e entreter o Afonso e por último o cozinheiro Vicente que ás vezes faz belos petiscos.

A Guiné de Fernanda de Castro é um pouco à imagem das ilustrações de Ofélia Marques: é um mundo tirado da Europa, onde os indígenas estão abertos, regra geral, a aceitar uma civilização superior. Há florestas, passeios de canoa, festas de bajudas, Mariazinha conhece Ana Maria a filha do governador, falam de jagudis, experimentam o tornado, assistem a uma caçada no Oio, saciam a fome e a cede com cocos, vêm gazelas, ouvem falar de onças.

A vida das meninas é apresentada através de descobertas muito curiosas: a criação de um autêntico jardim zoológico, a chegada de um navio que exige a preparação rápida de uma refeição, é sempre a cultura ocidental – europeia a sobrepor-se à África inculta. Viajam até Buba, levam um gramofone que é oferecido ao príncipe Mamadi. Mariazinha pergunta e os outros respondem: fala-se dos Bijagós, há um pretendente que quer casar com Mariazinha, o pretinho Mamadi adoece cheio de febres, chegou a hora de regressar a Portugal, o pai adquiriu uma bela colecção de armas mandingas, o Vicente vai também, no cais todos os negros se despedem cheios de tristeza dos brancos que vão regressar a Portugal. Percebe-se o fascínio por esta trama, Mariazinha transmite a todos e a tudo uma alegria sincera, deslumbra-se com o exótico, transmite essa África exótica ao leitor, assim se veicula a mensagem colonizadora.

Quero só lembrar a todos que as obras completas de Fernanda de Castro foram editadas pelo Círculo de Leitores, em 2007. Quem quer conhecer os seus romances guineenses tem esta oportunidade.

A seguir a Fernanda de Castro veio o caso mais sério da literatura colonial guineense, Fausto Duarte, um mestiço que introduziu a temática da aculturação numa época em que a Guiné conhecia mudanças com o consulado de Sarmento Rodrigues que trouxe consigo Avelino Teixeira da Mota que irá ter um papel cultural incontornável.

A obra-prima de Fausto Duarte é “Auá”, um romance de 1934 que merece ser relembrado. Iremos aqui falar de “Auá”, é o grande romance guineense da guerra colonial (***).

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Notas de L.G.:

(*) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões:

Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.

(**) Vd. poste de 7 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2248: Blogpoesia (6): África Raiz, de Fernanda de Castro

(**) Recensão bibliográfica, por Beja Santos, a inserir brevemente no nosso blogue.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3564: História de Vida (19): Meninos Soldados (Juvenal Amado)


1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (1), Ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 30 de Novembro de 2008, com um texto destinado à série História de Vida (2).

Mais um retrato dos tempos da guerra colonial, quando a ditadura mais se fazia sentir.

Assunto: Meninos Soldados

Caro Carlos

Depois da troca de correspondência havida entre nós dois e posteriormente com o Luis e conhecimento do Virgínio Briote sobre a anterior estória, cheguei à conclusão que relatar um pouco do que foram as lutas passadas dos senhores Loureiros, merecia uma segunda oportunidade.

Se entenderes que há interesse na estória, agradeço que me digas pois eu tenho alguma documentação eleitoral daquele tempo que poderá ser adicionada à estória.

O titulo é recuperado de um escrito do Torcato Mendonça, nome que é mencionado no decorrer da estória.

Um abraço
Juvenal Amado



Juvenal Afonso no dia de embarque para a Guiné, 18 de Dezembro de 1972

Juvenal com o amigo de Alcobaça, António, da Companhia de Transportes.

Aljustrel, Juvenal, Confraria e o periquito Lourenço, no Restaurante da Morte Lenta



2. MENINOS SOLDADOS
(Em memória dos senhores Loureiros, combatentes pela paz e liberdade)

O bairro Hipólito, em Alcobaça, serve de alojamento na sua grande maioria, a operários da Crisal e Raúl da Bernarda.

Tinha talvez uns 10 anos, morava mais os meus pais e irmãos provisoriamente na casa da minha tia, após termos ficado sem sitio para vivermos, por motivos que não interessam agora.

Filho de operário vidreiro, aí comecei a moldar o meu sentimento político.

Uma madrugada ouvi bater as portas de carro, mesmo debaixo da janela do quarto, onde dormia mais o meu irmão.

Em 1960 os carros eram raros e, que eu me lembre, no bairro não havia nenhum.
As visitas não eram para nós, mas sim para a casa ao lado.

Ouvi vozes graves, alguma turbulência, o choro de uma mulher, palavras nervosamente balbuciadas, várias pessoas entram no carro e este parte.

No dia a seguir apercebo-me, entre as meias palavras da minha tia e da minha mãe, que o senhor Loureiro tinha sido preso. Deixava a esposa e filhos num total desespero.

O senhor Loureiro era operário vidreiro na Crisal.

Era por demais reconhecido por toda a gente, que os vidreiros eram firmes opositores ao regime de Salazar. A Pide prendeu muitos militantes anti-salazaristas nessa altura e o senhor Loureiro foi um deles.

A partir daí passei a viver com o terror, de que viessem buscar o meu pai também, não que percebesse o porquê, mas na minha ingenuidade, pensei que prendessem todos os que fossem vidreiros.

Mais tarde também eu fui vidreiro e rapidamente fui apanhado pela contestação que grassava no nosso ambiente de trabalho.

Em 1969 fui aos primeiros comícios, onde os candidatos da oposição (*) discursavam, num ambiente carregado de ameaças por parte da polícia politica. Quando saíamos das sessões, trazíamos panfletos, que distribuíamos pelas povoações por onde passávamos.

Assim cheguei à idade do serviço militar e ai, sabendo o que devia fazer, faltou-me a coragem. Faltou-me a coragem para fugir, não ver mais os meus pais, irmãos, amigos e os locais nos quais eu tinha crescido. O medo do desconhecido e clandestino toldou-me os pensamentos.

Embora consciente da injustiça da guerra, fui mais um para engrossar a enorme legião de jovens, atirados para a mesma.

Fomos porventura os melhores soldados do Mundo, atendendo às condições em que éramos mal treinados, armados e enviados durante dois anos para combater soldados, que não cumpriam comissões de serviço, mas sim lutavam na sua terra e só acabavam o serviço militar quando morriam, ficavam feridos, ou no caso de vitória dos seus ideais.

Nós pelo o contrário sem razão e sem ideais, éramos carne para canhão. Na esmagadora maioria éramos milicianos.

Nós. os soldados, éramos em grande parte quase analfabetos, oriundos de zonas do nosso pais que competiam em atraso com as próprias colónias. Não tínhamos qualquer noção do nosso isolamento como País no crédito das Nações.

A Guiné foi em tempos apelidada pelos Ingleses, que estiveram na região de Bolama, (**) como cemitério de brancos. Devido ao seu clima foram-se embora. Só nós oriundos de um país atrasado aguentámos.


A chegada à Guiné

MENINOS SOLDADOS, retrato superiormente traçado pelo Torcato Mendonça, fomos recebidos ao largo de Bissau para nosso espanto e desconfiança pelos pilotos da barra porque eram negros.

Olhando para as águas barrentas pensava, que nada era como havía imaginado antes. O calor era insuportável às 11 horas da noite, quando amanhecesse não sei como seria.
Sufocava dentro do camuflado, novo em folha e por isso mesmo mais desconfortável. A sede que sentíamos, seria nossa companheira durante os 27 meses de comissão.

As horas foram passando até que amanhece, as Companhias desembarcam. Os pius pius e os periquito salta, salta, são as minhas memórias daqueles primeiros momentos. Os garotos faziam o gesto de quem nos degolava. Naquela atmosfera de festa para eles, era visível a nossa atrapalhação e receio, face ao nosso destino.

Eram camionetas civis, subimos para elas com as nossa malas e sacos. Chegamos ao Cumeré já noite, véspera de Natal.

As antiaéreas fizeram fogo de batimento de zona seriam talvez 22 horas pois o IN tinha atacado alguns destacamentos próximos.

Como não sabíamos para que lado estávamos virados, pensámos que estávamos a ser atacados. Foi o nosso primeiro cagaço se assim poderei chamar-lhe.

Conclusão

Também fizeram a guerra milhares de jovens que já naquele tempo estavam conscientemente contra o regime. Não deixaram de cumprir a sua obrigação de defender-se a si e aos seus camaradas. Nesses também houve coragem, abnegação, sofrimento suor e lágrimas. Choraram os nossos mortos e maldisseram o inimigo, mas não festejaram os seus mortos. Envelhecemos rapidamente.

Hoje estou divido entre a enorme honra de me encontrar no seio dos ex-combatentes, (consciente que não passei por metade do que muitos passaram), é muito o prazer que me trazem a maioria das recordações, mas também a certeza que combati numa guerra que nunca devia ter acontecido.

O senhor Loureiro passou pelas mais diversas torturas às mãos da Pide e esteve preso muito tempo. Quando foi solto vinha doente, desnutrido e pálido. Quando recuperou, retomou o seu lugar no seu local de trabalho. Reformou-se já depois do 25 de Abril de 1974, tinha começado a trabalhar com 5 anos no vidro, numa fábrica da Marinha Grande.

Vendia ainda há pouco tempo, junto ao Mosteiro de Alcobaça, miniaturas de vidro soprado para aumentar a pouca reforma. Não ganhou nada para ele e foi a pensar em nós todos que foi preso. Num combate desigual pela liberdade e igualdade, lutou com as únicas armas que tinha, a sua razão.

Não teve direito a medalhas, mas foi sempre com orgulho e humildade que ostentou a valentia dos que souberam dizer não.

Juvenal Amado

(*) Eram candidatos das forças Democráticas entre outros, os Drs. Vasco da Gama Fernandes e José Henriques Vareda. Também se candidatava pela primeira vez o jovem estudante Alberto Bernardes Costa, hoje Ministro da Justiça.
No comício o Dr. Vareda, a certa altura do seu discurso, apontou para as filas da frente e chamou assassinos aos esbirros que aí estavam. O Teatro José Lúcio da Silva, penso que já se chamava assim, quase vinha abaixo com a enorme ovação da sala, cheia até à porta.

(**) Bolama era o sítio para onde iam os nossos camaradas descansar nas férias. Eu nunca lá estive, mas diziam que era bom. Para os Ingleses não se lá aguentarem, como se aguentariam nas outras zonas?

Periquito vai no mato, olé lé lé lé
Que a velhice vai no Bissau, olari lo lé.


Juvenal Amado
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Notas de CV:

(1) Vd. último poste da série Estórias de Juvenal Amado de 2 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3162: Estórias do Juvenal Amado (15): Adeus, até ao meu regresso

(2) Vd. último poste da série de 25 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3518: História de vida (19): Evacuado duas vezes e meia...(Hugo Guerra)

Guiné 63/74 - P3563: Bibliografia de uma guerra (40): Venturas e Aventuras em África, de Cristina Malhão-Pereira (Beja Santos)

As Mulheres na Guerra




Um olhar feminino sobre a cratera do vulcão
por Beja Santos

A literatura sobre a guerra de África é predominantemente masculina, invoca-se a experiência, dela se desfia a memória, as mulheres eram pára-quedistas, estavam excepcionalmente nos hospitais. No entanto, ficaram-nos alguns relatos de mulheres que acompanharam os seus maridos nas comissões. Duas escritoras, Lídia Jorge (“A costa dos murmúrios”) e Wanda Ramos (“Percursos”) deixaram-nos relatos de grande densidade sobre o que viveram em Moçambique e Angola, respectivamente.

A LDG Alfange no Cumbijã. Foto de que não recordo o Autor, a quem peço desculpas. Com a devida vénia.


Mas na Guiné esteve a mulher de um oficial da Armada (Comandante José Manuel Malhão-Pereira), ao serviço da LDG Alfange, que nos deixou impressões pessoais da sua vida em 1969 e 1970 ("Venturas e Aventuras em África, Bissau, Guiné 1969 – 1970", por Cristina Malhão-Pereira, Civilização Editora, 2007).

Cristina é uma jovem esposa e mãe, tem 23 anos, fala de todas a dificuldades que viveu com muita simpatia, considera que a sua geração estava inicialmente muito mobilizada para a defesa do Ultramar, todas as classes participavam sem um queixume. Chega a Bissau, a grande preocupação era arranjar uma casa, lá se conseguiu, bem como dois jovens ajudantes africanos, isto enquanto o marido se ausentava frequentemente para missões de combate.

A casa alugada estava um nojo, com a ajuda da tropa tudo se arranjou, improvisaram-se móveis, levava-se uma vida pacata, quando havia possibilidade a Cristina acompanhava o marido nas caçadas nos arredores de Bissau. Superaram os problemas de saúde, deram umas escapadelas até aos Bijagós e mais tarde a Teixeira Pinto e a Cacine.

É um relato significativo para descrever Bissau e o estado de espírito da população branca e autóctone: os medos, os tiroteios perto e ao longe, a pancadaria entre soldados, a atmosfera das lojas, os encontros sociais, as longas incertezas e esperas quando a Alfange andava nos rios.

É um relato ligeiro, nostálgico, onde há memórias divertidas e tormentosas. Depois, o casal seguiu para Moçambique, onde permaneceu de 1971 a 1975.
__________

Notas de vb:

1. O Mário Beja Santos continua a "juntar todas as peças, todos os testemunhos. (...) agora ando a escrever as memórias de uma mulher fascinante, estou a sair do Gabu, em 1958, já houve as eleições do Delgado e do Tomás, em 1961 vai haver tiroteio em São Domingos. Tenho ainda trabalho para largos meses. Mas estarei sempre convosco. Do Mário Beja Santos".

2. Vd. último poste da série Bibliografia de uma Guerra

28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3536: Bibliografia de uma guerra (39): Nó Cego, de C. Vale Ferraz. (Cor Matos Gomes)

Guiné 63/74 - P3562: Banco do Afecto contra a Solidão (1): A última comissão do Coronel (Jorge Cabral)

1. Mensagem do Jorge Cabral: Hoje mando uma estória diferente.Nem triste nem alegre. Real sim. Convém lembrar que nem só do pão vive o Homem. Apetece-me fundar o Banco do Afecto contra a Solidão. Jorge Cabral 


2. Um Abraço para o Coronel na sua última Comissão por Jorge Cabral 


 O Coronel já passou os oitenta. Tremem-lhe muito as mãos e às vezes parece ausente. Visito-o, mas confunde-me. Refere Nampula e a mulher do Capitão... Que mulher! Nunca fui a Nampula... mas concordo. 

Aqui no Lar é bem tratado. Médico, enfermeira, dietista, hidromassagem, animação, cinema... Tem tudo, quase tudo... Pelo Natal, recebe muitas prendas, roupões, pijamas, pantufas, luvas... deixam na portaria ou mandam pelo correio. 

 Os filhos, os netos, os amigos, não o visitam. E convidá-lo nem pensar... Baba-se, entorna a sopa, não diz coisa com coisa... Fala-me de África e das suas quatro Comissões. À despedida, troca-me o nome. Desejo-lhe Felicidades. E sei, estou certo, que entendeu, o Grande Abraço que lhe dei. 

Jorge Cabral 
 __________ 

 Notas de vb: 

 1. Este belo texto do Jorge, na sua singeleza, fez-me recordar a visita que fiz este ano ao outrora famoso atleta olímpico, Cor Cavaleiro. Um homem grande, robusto, que, em 1965, em Farim, quase nos 50, fazia o pino na piscina antes de se mandar para a água e, que no intervalo das marchas que forçava para Canjambari, marchava para Bissau, para a Associação Comercial esfolar uns patos ao bridge. 

Ele, que era um Mestre, repousa agora, num Lar em Oeiras... Na altura em que o visitei escrevi para mim: 

Num dia de Março de 2008 localizei-o num lar das Forças Armadas, em Oeiras. Vivo, o Coronel Cavaleiro? Ó meu amigo, o Senhor Coronel está aqui para as curvas, respondeu-lhe do outro lado do fio, o bem disposto telefonista. Quer falar com ele? Aguente aí um pouco. Sou um ex-alferes do BCav 490, estive em Cuntima. Uma voz de senhora do outro lado, o meu marido deve estar no 1º piso, sentado a ler um livro numa mesa com as cartas, à espera que apareçam parceiros para o bridge. É sempre assim, no fim do almoço. 

 E no dia seguinte em Oeiras, no IASFA (Instituto Acção Social das Forças Armadas), ainda não eram 14 horas, lá estávamos nós, o Miranda e o Raimundo do Como (os dois da Op Tridente) e eu às voltas, a subirmos e descermos escadas, o senhor Coronel esteve agora aqui, procurem-no no 1º piso. Uma sala, numa mesa ao fundo, de costas para a janela (talvez para melhor ver as cartas e as caras dos parceiros), um senhor baixo, aspecto franzino, é ele. Nada que se parecesse com o Ten Coronel que eu conhecera em 1965.  Mas era mesmo ele, o Coronel F. Cavaleiro, mais baixo uns bons centímetros e mais leve do que naqueles tempos. Sorriso gentil nuns olhos marcados de manchas, ar débil, o Coronel de pé à frente de jovens de 60 e poucos. 

 Sou o Miranda, meu Coronel, o Como, Farim, Comandos. Eu sou o Raimundo, o tipo do foto-cine do Como, as imagens que o Joaquim Furtado passou na Televisão fui eu que as fiz. Briote, meu Coronel, trabalhei poucos meses consigo, estive em Cuntima, na CCav 489 do Cap Pato Anselmo. 

 Pois, vocês têm que falar mais alto, o dedo apontado para o ouvido direito. A Guiné, bom, a Guiné foi uma doença que se entranhou em nós, Cor Cavaleiro. 

Quarenta e tal anos depois voltámo-nos a descobrir uns aos outros, almoçamos uma vez por mês, falamos da vida que levámos naquelas terras. O Coronel, que naqueles anos media para aí um metro e oitenta e pesava seguramente mais de oitenta quilos, à frente de nós era o mais pequeno e mais magro. Estou com 60 e poucos quilos, eu que pesava 80 e tal, também estou com 91 anos, é altura de ter um pouco de cuidado. Leio, jogo bridge, ando um pouco a pé, olhem, ando aqui a ver os dias escorrer. Netos? Oito filhos, netos, bisnetos, não me perguntem quantos. Sim, vi na TV a Guerra do Furtado, só não entendi porque é que não transcreveu integralmente a carta, aliás muito pequena, que nós apanhámos a um mensageiro, aquela em que o Nino dizia que já não tinha nem gente nem população para aguentar a guerra no Como... 

Guiné 63/74 - P3561: No 25 de Abril eu estava em... (7) Bissau, ouvindo vivas a Spínola, pai do nosso povo (J. Casimiro Carvalho)

Guiné > Região de Tombali > Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > Março de 1973 > Envelope de carta enviada do SMP 2728, pelo ex-Fur Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho, que passou por vários aquartelamentos do sul e do nordeste da Guiné: de três deles, guarda memórias ainda muito vivas e que confiou ao papel: Guileje, Gadamael e Paúnca (*).

Guiné > Zona leste > Paúnca > Junho de 1974 > Primeiras manifestações de regozijo entre militares das NT e guerrilheiros do PAIGC, ainda antes do cessar-fogo oficial, celebrado entre as duas partes.

Guiné > Zona leste > Paúnca > Junho de 1974 > O J. Casimiro Carvalho abraça um guerrilheiro do PAIGC.

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


Depois das cartas do corredor da morte (de que saíram seis postes), publica-se mais umas tantas que o nosso ranger escreveu e enviou doutros sítios por onde passou, ainda no 2º semestre de 1973 e depois no 1º semestre de 1974... Ele estava de passagem em Bissau, quando aconteceu o 25 de Abril (**). Mas foi em Paúnca que conheceu (e confraternizou com) os seus antigos inimigos...



Carta, Cumbijã, 16/3/74

Querida mãe:

(…) Mandem-me sem falta marcadores, marca EDDING 2000, 2 pretos e uma de cada cor até perfazer 10. OK? Obrigado.

(…) Já estou bom da perna, agora ando a fazer um serviço para o capitão, pois sou o único graduado que está apto para fazê-lo (fazer mapas para mandar para o Quartel General, por causa do meu jeito para o desenho). Já fui bastante elogiado pela Directora do M. N. Feminino, pois fiz desenhos em cartazes de boas vindas e levou-os para publicar numa revista. (…)


Carta, Cumbijã, 20/3/74

(…) Hoje já bebi umas 13 ou 14 cervejas, fiz uma coluna e amanhã outra, já ando estourado.

Daqui a uns 15 ou 20 dias devo ir para outro destacamento chamado Nhala, é sempre a aviar, pareço um nómada. Um beijo.

[Segue-s eum croquis, em que o nosso camarada assinala as seguintes posições: Aldeia Formosa batalhão – sede)/ Buba / Nhala / Mampatá / Colibuía / Cumbijã]

Carta, Nhala, 10/4/74

Paizinho:

Como deve ter notado, mais uma vez mudei de destacamento. Agora estou em Nhala, temporariamente. E até que não é mau, música estereofónica, de um aparelho de alta fidelidade, bons quartos, casas de banho com retretes (bacias), comida boa, bajudas, etc.. E isto em pleno mato.

Mas, é claro que tudo se paga e eu vim para aqui para fazer contra-penetrações, emboscadas e protecção à estrada… Bem, um padeiro faz pão, um tipógrafo imprime e um soldado anda com a namorada na mão e anda no mato!!


Carta, Bissau, 30/4/74

Querida mãezinha:

(…) Isto aqui anda a ‘ferver’. Os africanos andam aos montes na cidade e partem montras e há porrada. Acabou a DGS e eles andam loucos de alegria, só querem é apanhar ex-membros da extinta DGS., que estão a ser evacuados da Província.

Andam com cartazes deste génerio:

Abaixo a repressão
Abaixo a DGS
Viva Spínola, pai do nosso povo
Liberdade ao nosso povo, etc


Andam às centenas. Tropas às centenas (armadas até aos dentes) patrulham a cidade dia e noite, até dormem nas ruas com ração de combate. Parece Belfast. À noite não me atrevo a ir à cidade. É por isso que estou a escrever-lhe senão levava mais uns dias.(…)




Carta, Nova Lamego, 8/5/74

Queridos pais:

Cá estou a caminho do meu novo destino que, segundo dizem, é um local sem ataques nenhuns. Até dizem: 'Vais passar umas férias'.

Para já vim de avião até N. Lamego, que é uma cidade mais ou menos relativamente perto de Bafatá, que é a segunda melhor cidade da Guiné. E aqui tem a melhor pista de aviação (a segunda melhor) da Guiné.

O meu destino é Paúnca, situado a 50 km daqui, e para onde seguirei de coluna auto.

[Desenho do NordAtlas, avião em que viajei]

Como disse, vou para um Grupo de Combate duma companhia de pretos, durante uns 5 meses, até acabar a comissão. Ando muito optimista pois sou um dos VELHINHOS cá da Guiné e aqui sou o mais VELHO (18 meses e tal)...

'Isto é que é viajar e conhecer mundo', há-de pensar o pai, mas aqui é um calor, pior que em Bissau, e andamos sempre sujeitos. Bom, até à próxima um beijo. (...)

[No verso da carta, tipo PS ]

Chequei aqui e fui para o Bar. Logo a seguir explode um recipiente com petróleo e um soldado vem a correr a arder, parecia um archote, quase que me queimava. Acontece cada uma


Carta (dactilografada), Paunca, 14/5/1974

Maninha:

(…) Hoje passou-se uma episódio engraçado comigo (‘engraçado’, agora, claro). Vou contar-te:

Fomos fazer uma escolta a uns trabalhadores e quando chegámos ao destino fui um bocado à caça para passar o tempo. Andei por lá umas duas horas e, de repente, ouço umas rajadas de espingarda automática. A minha reacção foi logo dar uma cambalhota em frente e esconder-me atrás de uma árvore. Depois dei uma rajada para chamar a atenção dos meus homens, mas como não obtivesse resposta, comecei a chamar o soldado africano que tinha vindo comigo. Ele respondeu e eu perguntei-lhe quem é que tinha dado a rajada.
- Talvez foi alfere – disse ele e eu segui para onde estava o alferes e o resto da malta. E, realmente, fora o alferes, por brincadeira, que tinha dado a rajada. Foi uma risota, mas na altura não achei graça nenhuma.

A comida aqui não é nada má, o que só em si representa muito, não achas, queridota ? Só falta aqui electricidade durante o dia e ventoínhas (…)


Aerograma, Paunca, 20/5/74

[Remetente: José Carvalho, Fur Mil, CCAÇ 11, 'Os Lacraus']
[Croquis com as seguintes posições: Nova Lamego / Pirada / Paúnca]

Mamãe:

(...) Acabou a Polícia de Choque também ?

Ontem estive de Sargento de Piquete e fui guardar um recinto onde havia batuque. Olha, é bonito, os fulas a lutar género luta greco-romana, eles muito fortes e ao som da batucada, até vibrei.

Não tenho feito nada, é só dormir, não saí nenhuma vez para o mato pois aqui agora é raro e isso só por si vale muito. É menor o perigo que corremos (...)




Aerograma, Paúnca, 20/5/74

Paizinho:

(...) Vou pô-lo ao corrente, mais ou menos, do que se passa por aqui:

Há 8 dias fomos informados que daí em diante não podíamos fazer fogo de armas pesadas, a não ser em caso de ataque ao quartel. No mato, mesmo que encontremos um Grupo IN, só abrimos fogo se eles abrirem, e neste caso [devemos] tentar acabar com o tiroteiro, logo que possível.

A aviação não bombardeia. Quando foi formado o Governo Provsório, o presidente do Senegal, Senghor, enviou o seu avião pessoal a Lisboa para ir buscar o representante da Junta [de Salvação Nacional], e tentar um acordo prévio de cessar-fogo, do qual ficou assente [o seguinte]:

O PAIGC anulou todas as opreações de grande vulto (como a de Guileje) que estavam planeadas para o fim da época seca, ou seja, 'agora'... Portugal, por sua vez, compromoteu-se a não abrir fogo sobre guerrilheiros do PAIGC, prioritariamente... Portanto temos praticamente um cessar-fogo não oficial, que será oficializado em Londres no dia 25, entre Aristides Pereira e Portugal.

Isto está a correr pelo melhor, não acha ? Nós andamos todos contentes, se bem que isto a mim não me vai beneficiar, quanto ao fim da comissão que se avizinha.

Salário mínimo: 6000$00! Essa era boa!

Da BBC,Londres: ouvimos que um dos presos da DGS viu um agente a obrigar um preso a comer vidros partidos, entre outras torturas, antes de lhe tirar os olhos... E arrancavam unhas, etc., etc.

Nunca deixe de apostar no 75. É com o 23857. (...)


Guiné > Zona Leste > Paúnca > CCAÇ 11, os Lacraus > Junho de 1974 > O ex-Fur Mil Op Esp Casimiro Carvalho no meio de dois dos seus soldados fulas. O cessar-fogo, a confraternização dos tugas com os seus antigos inimigos e a incerteza quanto ao destino dos militares guineenses ao serviço das NT estarão na origem da sublevação dos Lacraus em data que não sabemos precisar, possivelmente em Junho ou Julho de 1974. Não há registo epistelográfico deste grave incidente, em que os soldados africanos da CCAÇ 11 se amotinaram contra os seus oficiais e sargentos...

Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


Documento dactilografado, Paunca, 7 de Junho de 1974

Informação,

Ontem, tropas brancas entraram num destacamento armado, de inimigos, começando por travar um diálogo amistoso que só contribuía para a tão desejada paz. Daí se concluiu que o PAIGC, como nós, só deseja a paz, e ficou combinado que, hoje, tropas africanas integradas nas nossas fileiras iriam também travar diálogos com elementos inimigos para melhor se entenderem e saberem as aspirações de cada um.

Hoje, portanto, 30 elementos da nossa tropa dirigiram-se a esse destacamento dentro do nosso território, mas perto da fronteira, onde encontraram uma colossal emboscada armada pelo PAIGC. Os nossos deixaram as armas nas viaturas como prova de confiança, e dirigiram-se ao inimigo ao qual apertaram as mãos e iniciaram acaloradas trocas de impressões e troca de algumas peças de fardamentos e foram obsequiados pelo pseudo inimigo com algumas latas de ração de combate com o emblema do PAIGC e galhardetes e emblemas do Partido.

Em toda a história mundial parece que é a primeira vez que se dá um golpe de Estado neste género (na Metrópole) e antes mesmo de um cessar fogo oficial, dois inimigos armados juntos no campo de batalha a confraternizar, como aconteceu nestes últimos dias.

Pessoalmente digo que ando até emocionado com estes momentos tão importantes na vida da minha Nação e para um futuro melhor da Juventude Portuguesa que tombou e tombaria no campo da honra em defesa de um ideal fascista, que felizmente, devido a um punhado de valentes idealistas, foi derrubado e desestruturado completamente, com a integral ajuda e apoio do grande povo português. “O POVO É QUEM MAIS ORDENA…”.

Amanhã está prevista a visita aqui, a Paunca, de elementos do PAIGC (armados), o que significará mais uma etapa a favor da paz e do conhecimento dos ideais de ambas as partes. Sinto-me em grande euforia por ver chegar o momento tão desejado por todos os jovens portugueses que aqui lutaram, que aqui perderam a vida e que aqui viram morrer companheiros de luta e das horas de ócio… “Quantas lágrimas derramadas aqui e além mar”, mas o fim aproxima-se

Amanhã, segundo está previsto, virão os nossos inimigos e eu irei vê-los e… talvez, quem sabe ?, abraçá-los, por que eles melhor do que eu lutaram por um ideal, por um chão que era deles, e sobretudo eram soldados como eu, uns obrigados outros por idealismo

[Assinado]
UM MILITAR COM ESPERANÇA

Carta, SPM 5668, Paunca, s/d (carimbo ilegível) [8/6/1974]

Olá, mãezinha:

(….) Hoje veio aqui um grupo do PAIGC em 2 viaturas russas, armados até aos dentes e mais uma vez houve troca de saudações e cumprimentos, já nem se fala em Guerra! Que coisa!...

Passo os meus dias na cama, donde me levanto às 11 horas ou meio dia, e quando me levanto antes é para ir até ao café comer um bife com mostarda, pão e uma cerveja (19$00) que sabe pela vida HUM! HUM!...

(…) Já não faltam 25, nem 24, nem 23, nem 22, nem 21, nem 20, já só faltam 19, DEZANOVE!!! É muita ridagem (?) para um homem só. Mas um Ranger aguenta firme, com coragem e decisão, pois não é no fim que se desanima, não é ? 15,28 valores não se conseguem a dormir.

Os doces souberam-me pela vida e os chocolatinhos também. Jarama Nani, muito obrigado em língua fula.

Quando eu for embora só quero uma feijoada de chispe até cair para o lado e na outra refeição um frango assado só para mim. Ah! Leão, que vais matar saudades da vida caeira.

Vou ensinar-lhe algumas frases em fula:

No Pinda - Bom dia
No Nhaluda - Boa tarde
No Kirda - Boa noite
Fanko - Calou, cala-te
Tenko - Quieto
Mussa - Dói
À Nani ? - Entendido ?
Parte - Dá
Jaur - De nada
Anko à Babá - És um burro
Jango - Amanhã
Fabjango - Depois de amanhã
Anki - Ontem


IV [Parte]

Ouvi dizer por alto que a minha companhia avai embora em fins de Setembro, mas não sei ao certo e também ouvi dizer que vamos sair daqui de Paúnca dentro do mês de Agosto, para outro local que até pode ser Bissau, mas a minha situação é só de aguardar notícias.

Agora estamos num país estrangeiro - República da Guiné-Bissau - reconhecido por 80 países e agora pelo nosso também. Andamos todos contenets com esta situação e que queremos agora é ir embora. Os africanos já entregaram o material de guerra todo, que está a ser encaixotado para seguir para Bissau e a seguir vamos nós! Que melhor fim de comissão podia esperar ? (...)


Carta, Paúcna, 10/6/74

Querida mãezinha, começo já por falar naquilo que me enche a cabeça e o coração.

Outro dia forças nossas foram a um acampamento inimigo, dentro do nosso território, mas pertíssimo da fronteira. De ambos os lados não se abriu fogo e cumprimentaram-se e trcaram-se impressões. Entretanto, ficou assente que no dia seguinte iriam lá também elementos africanos ao nosso serviço para se encontrarem, inimigo com inimigo, trocando tiros por cumprimentos e palavras de amziade... Chegaram a trocar, até, peças de fardamento e foram obsequiados com emblemas do PAIGC.

Regressaram com o propósito de receberem alguns elementos inimigos, dentro do nosso quartel e no dia seguinte cá compareceu o comissário d PAIGC com mais 8 soldados armados, os quais, depois de algums palavras com população e militares, almoçaram connosco em grande confraternização.

Depois de tantos anos de luta até parece impossível, mas é verdade, já não há inimigos, mas sim amigos para a conquista da paz, a tão desejada paz.

Eu que os odiava, abracei-os, antevendo que, se todos farem gratos como eu, o meu irmão e milhares como ele virão a beneficiar. Esperamos entretanto que as conversações acabem para sabermos o resultado. Mesmo sem o cessar-fogo já não se ouvem tiros, penso que em nenhuma guerra se viu isto, inimigos de há dois dias a almoçar na mesma mesa e a rir.

Oh! Mãe, como eu desejava este momento!!!

Acerca de eu ter tido ou não problemas aqui, pode estar descansada que corre tudo às mil maravilhas (...).

Tenho um cinturão de guerrilhero do POIGC, um cantil e um saco de campanha, são recordações do princípio do fim da guerra. E tirei umas dezenas de fotografias deste tão histórico momento. Até há um pormenor importante, esses guerrilheiros e o comandante deles falaram do desejo de paz à população, debaixo da bandeira portuguesa. Depois eu mando as fotos (...).

Carta, Paúnca, 30/6/74

[Destinatária: Ana]

Olááááá!...Já não recebia correio seu há já muito tempo, lembra-se quando eu dizia 'Gosto mais da Ana que dos meus pais' ? Bem, isso já passou, mas só agora dou o valor (...).

Já vai para os 7 meses que saí daí e quse que não dei fé do tempo passar, pois basta não haver guerra que as preocupações acabam (...).

Tenho um macaquinho sagui e o sacana é espero que se farta! Eu às vezes compro rebuçados (drops) e ponho em cima da mesinha de cabeceira (...).

Agora é só tomar banho à chuva, é uma alegria, nem que sejam 4 da manhã, se chove levantamo-nos e.. chuva! (...)

ACerca do ataque que mencionou, realmente parece que houve qualquer coisa, mas sem consequências, mas não se sabe se foi o PAIGC (que se tem mostrado muito amistoso para connosco) pois parece que há agora aí outro partido qualquer, ou era um grupo de rebeldes do PAIGC que ignoraram a ordem de cessar fogo, pois nós até passamos agora por Eles armados e ningém abre fogo e já não fazemos patrulhas. Já cá estou há quase 2 meses e nem uma fiz.

Tenho encontrado cá muita malta do Porto e arredores, até o que eu vim substituir é do Porto. Ele deve aparecer por aí, é um camaradão, tratou-me muito bem, quando cá chegou e interessou-se em me ambientar com o sistema daqui.

Acerca do Ranger, pois claro, nunca se perde a calma, a esperança, não se desanima, não se perde o APETITE e ombros largos, força e peito feito, não faltam, sou ou não sou Ranger (15,28 valores ???. E já não faltam 50, só faltam 49 dias.

Carta, Nova Lamego, 11/8/74


Olá, como devem reparar já não estou em Paúnca, agora encontro-me aqui em N. Lamego, que já é um centro mais comercial e onde me sinto mais seguro, pois estou no meio de brancos...

Vou explicar como é que me encontro aqui: fui nomeado pelo comandante de companhia para acompanhar todo o material de guerra existente em Paúnca até N. Lamego (Batalhão) onde ficarei até a companhia ir para baixo. Deduzo que esse mesmo material deve ficar entregue ao Batalhão que tratará da sua evacuação para Bissau, depois (ou melhor, entretanto) seguiremos em avião militar para Bissau onde me juntarei à minha companhia, para seguir para Portugal em fins de Setembro (já está assegurado o embarque para Setembro, só se houver alteração ou atraso do barco - Niassa), onde, FINALMENTE, estarei com vocês para sempre e até poderei gozar férias com o papá.

Ontem cheguei aqui, encontrei cá amigos, entre eles um vizinho daí e depois de jantar fui ao cinema (AO CINENA!!) ver o Ciccio Ingrassia e o Franco Franchi - 002 e o Cérebro Electrónico... Foi um fartote de rir, ri-me até partir a moca! Há tempo que já não via cinema...

Hoje de manhã fui conferir o material todo, fiz guias de entrega e depois fui dar umas voltas, regressei ao quartel, fui descansar até à hora do almoço (ovo, salsichas, batata frita e arroz), depois fui descansar com ventoínha, ouvir boa música (pareço um paxá)... Há pouco levantei-me e vim escrever (cumpro a minha obrigação), pois sei que tenho correio lá em Paúnca, mas ainda não o recebi.

Estou num café a beber um whisky, juntamente com um cabo que está sob o meu comando, que até é um gajo porreiro. Estou com muita responsabilidade (centenas largas de contos). Só uma Berliet custa 400 000$00 e tenho uma à minha responsabilidade (Quem eu vir a mexer-lhe, participo logo sem rodeios). (...)

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. o relato da história (conturbada) do nosso militar, o ranger J. Casimiro Carvalho:

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

[Depois da saída de Guileje e de Gandembel] (...) "Fomos para o Cumeré tirar outro IAO . Eu fui para Prabis com mais 12 homens, outros foram para Quinhamel ou Bijemita (??). Depois fomos para Colibuia-Cumbijã, e aí fui destacado para rendição individual, sendo transferido para Bissau a fim de tirar estágio de Companhias Africanas, e durante esse estágio deu-se o 25 de Abril.

"Fui então para Paunca, CCAÇ 11 – Os Lacraus, onde me mantive até ao fim da minha comissão. Não sem antes levar um susto de morte, pois os militares africanos da CCAÇ 11 sublevaram-se. Quando eu estava a dormir, ouvi tiros, vim em calções com a Walther à cintura até ao paiol. Quando lá cheguei, eles estavam a armar-se e a disparar para o ar e eu, quando os interrogava pelo motivo de tal, senti o cano de uma arma nas costas, ordenando-me que seguisse em frente (até gelei)… Juntaram todos os quadros brancos e puseram-nos no mato… assim mesmo.

(...) "Caminhámos muito, de noite, desarmados, e fomos até um acampamento de guerrilheiros do PAIGC, contámos a situação e eles mandaram um punhado deles a Paunca. Gritaram então lá para dentro:- Têm 5 minutos para se entregaram e restituir o quartel aos brancos ou destruímos tudo! - Eles, os fulas, entregaram-se.

"No fim, já de abalada, fomos ao paiol, juntámos todas as granadas e explosivos, e eu fui encarregado de os fazer explodir , ao redor de uma enorme árvore. Que cogumelo de fogo, impagável !" (...)

Vd. também:

29 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3376: Álbum das Glórias (48): Paunca, CCAÇ 11: Maio de 1974: a rendição da guarda (J. Casimiro Carvalho)

25 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3354: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (6): O nosso querido patacão

(**) Vd. postes anteriores da série de

22 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3498: No 25 de Abril eu estava em... (4) Agrupamento de Transmissões, Bissau (Belarmino Sardinha)

1 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3262: No 25 de Abril eu estava em... (3): Gadamael e depois Cufar (José Gonçalves, ex-Alf Mil Op Esp, CCAÇ 4152)

19 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2963: No 25 de Abril eu estava em... (2): Gadamael e a vontade de lutar do PAIGC também era pouca (Anónimo, Alf Mil Op Esp)

14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2939: No 25 de Abril eu estava em... (1): Guidage (João Dias da Silva, CCAÇ 4150, 1973/74

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3560: História da CCAÇ 2679 (8): Três apontamentos (José Manuel Dinis)


1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 30 de Novembro de 2008:

Carlos, ou Virginio, camaradas,
Aqui vai mais um molhinho de estórias, coisa pouca, mas de boa vontade. Faltam-me retratos e outras narrativas, para tornar mais abrangente esta história. Parece-me que a inércia vai tolhendo a minha malta.
Ainda assim, antes a inércia, que o reumático.

Para o pessoal da Tabanca Grande, aquele abraço.


O Banana

Para além de mim, vêem-se, de joelhos, o Nuno, Trms; o Gonçalves e o Abreu. Esta fotografia reporta-se a outra acção, estranha à relatada.

Algures na região do Corubal, caminhávamos em patrulha, à procura do IN, ou dos seus sinais, na realidade, sem vontade para qualquer encontro, mas deambulávamos na mata, porque era a nossa sina.
Sob o calor intenso, contornávamos árvores, pisávamos terrenos onde, com facilidade, era possível colocar e dissimular minas. De facto, sob a mata densa, o solo apresentava-se atapetado de folhas, e as irregularidades eram constituídas por novos arbustos e pela proliferação de ramos rasteiros, ou raízes afloradas, que que poderiam provocar tropeções e dificultavam a progressão.

Do ponto de vista do IN, algumas destas margens que patrulhávamos frequentemente, demarcadas, dariam bons campos de minas contra a nossa presença. Aliás, de sentido contrário, algum tempo antes, um furriel do BART fora vítima de si próprio e da inexperiência e ficara sem um pé, não longe dali, porque instalara um campo de minas no início da comissão, tendo feito o registo na embalagem de um maço de tabaco. Antes do regresso mandaram-no levantar os engenhos, com as dificuldades naturais de os identificar com segurança, face às alterações da natureza em quase dois anos e à dissimulação a que ele procedera na instalação.

O que deveria ter ficado assinalado em carta, muito bem referenciado, era uma área a evitar pelas NT. Assim desprotegido, movido pelo respeito a uma ordem, o desgraçado foi vítima de mais um acidente, mas poderia ter sido pior, pois o grupo que o acompanhava andou num campo de minas.

Mas não, nunca nos aconteceria cair nessas armadilhas traiçoeiras, o que não evitava, de quando em vez, de pensar no assunto.
O passeio pedestre, todavia, não iria acabar sem qualquer percalço. Um militar foi acometido, tudo o indicava, de um paludismo galopante. Totalmente desfalecido, não aguentava prosseguir pelo seu pé. Improvisou-se, então, uma maca: cortaram-se dois ramos, que atados a um pano de tenda, permitiram carregá-lo. Porém, as dificuldades do terreno, quando era necessário agachar-mo-nos para passar na densidade das ramagens, o calor a desgastar quem o carregava e a dificuldade de agir bem caso de encontro com o IN, aconselhavam a pedir a evacuação, enquanto o enfermeiro, via rádio, trocava impressões com o médico.

Que não, não seria possível a evacuação por indisponibilidade de héli, mas após diligências óbvias, referiram que devíamos procurar um local com visibilidade, uma clareira, estender a tela reflectora e transmitir a posição, que uma Dornier sobrevoaria o local e deixaria cair uma injecção.

Assim foi, numa clareira estendeu-se a tela , ficaram o doente, o enfermeiro, o Trms, o alferes do BART e eu, enquanto o pessoal dos dois pelotões montava segurança a coberto da mata. Algum tempo depois, roncando no ar, aproximou-se a aeronave. A bordo, vinham, o Drácula, o Major de Operações, o médico e o Leite, que comandava a Companhia. Sobrevoou-nos e baixou na nossa direcção, tendo lançado um saco de juta com o medicamento.

Depois voou sobre as árvores, elevou-se em volta larga, para voltar a picar sobre nós, a saciar a curiosidade a bordo. Quando desenhava a terceira manobra de aproximação ao solo, já tínhamos criticado a insistência anterior como susceptível de suscitar a curiosidade do IN, no caso de se encontrar ali perto, pelo que podíamos vir a ser surpreendidos, situação agravada pela dificuldade do grupo na deslocação. Inspirado por essas conjecturas, pedi o banana que servia de contacto com o piloto e transmiti, em obediência ao impulso, que mandaria abater o avião, se não se retirassem imediatamente do local.

Bem dito e bem feito. Rumaram a Piche.

Só depois fiquei a pensar nas possíveis consequências draculianas. Se me chamasse, teria oportunidade para me defender e justificar, expondo aquele raciocínio, que se me apresentava coerente. Mas se me desse a porrada sem querer saber de razões? Só me restava aguardar.

A boa notícia era quenão dormíamos no mato.
Regressámos ao aquartelamento sem sem outras surpresas. Fui para o banho, dirigi-me à messe para o jantar, onde não estava o Drácula, e ninguém me chamou ou fez qualquer observação a propósito do dia e da D.O.
No dia seguinte também não. Suponho que o piloto terá arranjado qualquer razão para regressar, sem me comprometer nem denunciar.

A Lepra

Em duas viaturas, saímos pela estrada de Nova Lamego, de onde nos dirigimos na direcção nordeste, penetrando numa mata onde nunca estivéramos, nem era conhecida por alguma actividade IN. Uma região de ninguém, onde nos deslocávamos com ajuda de um guia, através de uma picada quase imperceptivel, pela falta de uso, com os rastos das viaturas só avistáveis de quando em quando, cobertos de ervas e folhas caídas, ou dissimulados desde as últimas chuvas. O nosso destino era uma aldeia de leprosos.

Connosco seguiam dois enfermeiros com medicação para distribuir, ou para eventuais tratamentos. A nossa missão era conduzi-los ao local com protecção. Impressionava-me a ideia e formulava cenários tenebrosos e dantescos. Fazia um filme de perseguições, com os habitantes revoltados pelo isolamento e nós, em coridas desencontradas e tolhidos por medos, em tentativas de fugir ao contágio aterrador. Preveni o pessoal sobre a missão e o que poderíamos encontrar, mas que não haveria cuidados especiais, salvo, relativamente a pessoas com chagas. De qualquer maneira, a discrição e o afastamento poderiam ser bons conselheiros.

Entre os autóctones ter-se-ia estabelecido como norma, que os individuos afectados pela lepra, na falta de assistência adequada, deveriam instalar-se naquela aldeia para evitarem a transmissão da doença a terceiros. Parecia-me ser assim. Digamos, que se tratava de um ostracismo comummente aceite, um lugar de exílio em resultado da enfermidade.

Imaginei que aquelas pessoas pudessem manifestar alguma revolta, ansiedade ou curiosidade. A revolta pela condição e isolamento. Ansiedade, como sentimento natural que resulta da esperança na salvação, na aquisição da normalidade. E curiosidade, como resultado da nossa presença, já que os contactos com o exterior seriam naturalmente escassos.

Afinal, fiquei muito surpreendido. A aldeia tinha aspecto físico, normal de qualquer tabanca. Viviam em famílias, que não sei se teriam sido ali constituídas ou para ali deslocadas por força da afectação de alguém. O comportamento foi muito sereno, parecia até que, conhecedores da doença e da possível propagação, evitavam contactos com estranhos, embora não tenha sabido se o faziam com esse nível de consciência, mas evidenciavam desinteresse pela nossa presença. Inclusive, as poucas crianças.

Vi indivíduos com os dedos parcialmente desaparecidos nas mãos como nos pés, mas cicatrizados. Não vi chagas. Sentados, ora isolados, ora em pequenos grupos, nas sombras, olhavam-nos silenciosos. Denotavam um sentido de espera e indiferença.
Era, sobretudo, uma pequena comunidade, pricipalmente de velhos, de onde a alegria tradicional da miudagem andava arredia.

O Tereza

Alguns elementos do 2.º Pelotão - Foxtrot, de pé, da esquerda para a direita: Dinis, Abreu, Teresa e França. Em baixo: Lamarão (condutor), Rodrigues, Martins e Virgílio Sousa

O Manuel Fernando Ramos Tereza foi um bom soldado, cumpridor, com boas qualidades físicas e morais, de trabalho e humildade. Não foi um mobilizador - do Foxtrot, obviamente um elemento que espalhasse alegria e boa disposição, alguém com iniciativa, mas sempre correspondeu às solicitaçóes, contribuindo para o sucesso colectivo, discretamente e sem comprometer. No mato manteve sempre a atitude adequada, sem estrilhos, sem medos que tolhem, antes, com aquela atitude de confiança que também galvaniza.
Foi assim que cumpriu a comissão na Guiné, eficiente e solidário. Sem necessidade de se impor pela exuberância, impôs-se pela solidariedade e eficácia...
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3477: História da CCAÇ 2679 (7): Quotidianos (José Manuel Dinis)

Guiné 63/74 - P3559: Estórias do Zé Teixeira (31): Aquele Minuto (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mais uma estória do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviada em mensagem datada de 1 de Dezembro de 2008.


Aquele Minuto!

... Saí de manhã até à Bolanha de Beafada (bolanha dos passarinhos), a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os picadores que iam à frente a tentar detectar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Deixei a bolsa de enfermeiro na 1.ª viatura e seguia atrás dela.

Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projectado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim. Deduzindo que eram estilhaços – pensei - desta não escapo [...]


(Do meu diário 31 de Julho de 1969)


Aldeia Formosa 1968 > Cemitério de viaturas destruídas – na primeira da foto foram-se duas vidas. 

Buba 1969 > Uma coluna de Aldeia Formosa para Buba, trilhando já parte da nova estrada em construção, às portas de Buba.

Buba - O depósito de água e uma das casernas adaptada para outras funções.

Buba 2005 > A minha caserna transformada em escola. Ali mesmo junto à porta tinha a minha tarimba.

Buba 2005 > Outra caserna/escola em Buba 

Buba 2005 > A capela católica num Domingo de manhã no momento da celebração da Missa. 

Buba 2005 > A estrada ao lado da pista de aviação, agora transformada em zona de habitação.
 
Buba 2005 > As primeiras casas de Buba, para lá do cimo da pista.

Fotos e legendas: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.

Ainda o sol se escondia para lá da floresta, naquela manhã de 31 de Julho de 1969, já a coluna de mantimentos partia de Buba para Aldeia Formosa. Coube-me a missão de acompanhar o Grupo de Combate que na frente, fazia a picagem do caminho em busca das minas traiçoeiras, muito habituais naquela zona. Chovera bastante nos dias anteriores, pelo que o terreno estava enlameado e cheio de poças de água, para mal dos picadores que viam a sua missão mais complicada e riscos acrescidos a quem ousasse pisar tal terreno.

Era meu hábito sempre que via um soldado branco em cima das primeiras viaturas da coluna, obrigá-lo a descer pelo risco que pesava sobre estas de poderem pisar uma mina não detectada pelos picas. Nesse mesmo dia obriguei o Franklim, o Rádiotelegrafista de serviço, a saltar da primeira, bem contra a vontade dele. Aos africanos, normalmente civis, apenas deixava um aviso, que nunca fora, até então, correspondido.

Enquanto os picas iam à frente, eu seguia atrás da primeira viatura, religiosamente em cima do rodado, não fosse o diabo tecê-las.

Dá-se uma avaria numa das viaturas da retaguarda e a coluna pára por uns minutos. Os picas seguiram em frente, criando um espaço limpo de minas. Logo que houve ordem de marcha, a coluna acelera a marcha obrigando a tropa a apressar o passo.

Para que havia eu de correr se logo ali na primeira viatura – a rebenta minas – carregada de sacos de areia e bebidas, havia lugar para mim !

Se o pensei, de imediato o fiz, sentando-me ao lado do condutor em assentos construídos de sacos de areia. Em cima da viatura seguiam quatro civis africanos, bem lá no alto.

Umas centenas de metros à frente, já bem dentro da tristemente célebre bolanha dos passarinhos, dei comigo a interrogar-me: - Tu que não deixas os teus camaradas viajarem nas viaturas da frente, vais instalado logo na rebenta minas ao lado do condutor . Este pensamento empurrou-me para o chão e lá continuei eu a correr à frente da viatura. Não andei cinquenta metros, quando ouço um grande estrondo, mesmo ali, e sinto-me voar em direcção à mata. Uma chuva de projécteis não identificados caem em cima das minhas costas, com alguma violência. Angustiado pensei : - Desta não escapo, ficando a aguardar sinais de dor que teimavam em não chegar. Passei então a mão à procura de sangue quente, mas apenas encontrei pequenas pedras e lama.

Já respirava de alívio, nesta fracção de minuto, quando vejo cair à minha frente, um, dois, três africanos, os que vinham lá em cima da viatura e foram projectados pelo ar. Um deles, ao levantar-se, trazia o olho esquerdo pendurado. O sopro tinha-lho arrancado da órbita ocular. Estava estranhamente confuso. Pudera! Um olho a ver-lhe os pés, o outro a olhar em frente !

Só então verifiquei que a viatura de onde tinha saltado, pisara uma mina AC nada restando do assento onde estivera por momentos sentado.

Não me é fácil, passados mais de trinta e nove anos transcrever o que senti naqueles momentos. Sei apenas que as pernas tremiam como juncos verdes batidos pelo vento e recusavam-se aceitar o peso do meu corpo, quanto mais andar. O coração parece que queria rebentar com o peito. Mas... havia um ferido e eu era o enfermeiro mais próximo. A bolsa de enfermagem estava na viatura sinistrada e podia haver, havia mesmo, mais minas .

Recordo-me que vi chegar um africano meu ajudante, saquei-lhe a bolsa, lavei muito bem a órbita do olho sinistrado, que não tinha sinais de estar ferido, apenas saltara da órbita pelo sopro de ar provocado pela explosão, coloquei-o com jeitinho no sítio, protegi-o com uma compressa e ala para Buba, rumo a Bissau. Tive a alegria de cerca de meio ano depois encontrar o africano ferido, em Bissau, feliz da vida sem problemas de visão.

No local do acidente a saga continuou. Primeiro foi o Franklim que se protegera atrás de um atrelado. O condutor da viatura saltou ao ouvir o estrondo lá na frente, deixando a viatura destravada. Esta recuou um pouco e o atrelado passou por cima da perna do Frank. Valeu-lhe o lamaçal em que estava deitado. A perna enterrou-se na lama e não sofreu nem uma pisadura.

A viatura sinistrada, carregada de bebidas foi um convite ao fartar vilanagem da tropilha. Cada um safou-se como pode. Eu só saquei duas garrafas do Verde da minha terra. Em poucos minutos ficou vazia. Seguiu-se a retirada da viatura do caminho para a coluna seguir caminho.

Mesmo ali no meio da confusão estava uma mina AP, comodamente escondida que se deixou pisar por toda aquela gente e por mim, possivelmente. Rebentou debaixo de um pneu do atrelado da segunda viatura, (o tal que tentara esmagar a perna do Frank), quando a coluna se pôs de novo em marcha.

Dois dias depois, numa coluna a Nhala, foi localizada mais uma mina no local.

Também na guerra, houve momentos de sorte.
Deixo-vos com o primeiro parágrafo do meu diário desse dia:

Vi a morte à minha frente. Deus pela sua infinita bondade, não permitiu que fosse ainda a minha vez de deixar o mundo.

Zé Teixeira
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 25 de julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3093: Estórias do Zé Teixeira (30): Uma Vida que Deixei Fugir (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Vd. último poste de José Teixeira de 22 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3342: O meu baptismo de fogo (15): Estrada de Buba-Aldeia Formosa, 22 de Julho de 1968 (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P3558: As Boas-Festas da Nossa Tabanca Grande (1): Está na Hora (Santos Oliveira)



1. Mensagem de Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66: com data de 2 de Dezembro de 2008:

Assunto: Boas-Festas

Nesta época que se aproxima, a solidariedade interior parece acordar e dizer-nos, baixinho: ESTÁ NA HORA!

Pois é! Está na hora de recordarmos tudo o que de bom recebemos uns dos outros e de nos alegrarmos e partilharmos o que de melhor existe dentro de cada um de nós.

Para Vós, em particular, e para todos, os meus desejos de tudo quanto de excelente a vida tem para dar. O resto, as Festas, são a parte visível.

Ficar-vos-ia grato se fizessem chegar, estes meus Votos de Boas Festas, a toda a nossa Comunidade da TABANCA GRANDE.

Que tudo vá bem com todos Vós, meus Amigos.
Votos, do
Santos Oliveira

2. Comentário de CV

A equipa editorial agradece e retribui ao Santos Oliveira os votos formulados.

Aos restantes caríssimos tertulianos, aqui fica um repto para todos, para que enviem mensagens de Natal alguma imaginação para serem publicadas nesta série.

Lembro que há duas séries, Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e até ao meu Regresso (*) e O Meu Natal no Mato (**), onde podem relatar os vossos Natais passados na Guiné.
Como acho que os Natais passados naquela terra de África, fossem no mato ou em Bissau, marcaram igualmente todos nós, cada um deve escolher a que melhor se adaptar a si.
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Notas de CV

(*) Vd. último poste da série de 2 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1396: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (11): 1969, na Missão do Sono, em Bambadincazinho (Luís Graça)

(**) Vd. último poste da série de 24 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2379: O meu Natal no mato (12): Mansoa, 1971: Uma de caixão à cova... para esquecer o horror (Germano Santos)