segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4986: Parabéns a você (27): O veterano Coutinho e Lima, Cor Art Ref, Gadamael (1963/65), Bissau (1968/70), COP 5 (1972/73)

Hoje, dia 21 de Setembro de 2009, faz anos o nosso camarada Coutinho e Lima, Cor Art Ref, a quem vimos desejar muitos anos de vida na companhia dos seus familiares e amigos.

Alexandre da Costa Coutinho e Lima nasceu no lindo Distrito de Viana do Castelo. Militar do Quadro Permanente das Forças Armadas Portuguesas, fez duas comissões de serviço na Guiné, com o posto de Capitão e uma terceira como Major:

A primeira entre 1963 e 1965, como comandante da CART 494, a primeira Companhia que esteve aquartelada em Gadamael (Dez 63/Mai 65); a segunda entre 1968 e 1970, como Adjunto da Repartição de Operações do Comando-Chefe das FA da Guiné (devendo-se a sua colocação ao facto de ser Observador Aéreo de Artilharia, que era Especialidade de Mobilização); a terceira comissão, iniciou-a em Setembro de 1972, tendo sido nomeado por Spínola como comandante do COP 5, com sede em Guileje, em Janeiro de 1973.

Em 22 de Maio de 1973, Coutinho e Lima protagonizou um dos mais controversos acontecimentos da guerra colonial, ao retirar, por sua iniciativa, de Guileje, levando consigo (até Gadamael), não só a tropa à sua responsabilidade (cerca de 200 homens), como também toda a população local (cerca de 600).

Imagem aérea de Guileje.

Foto: © Amaro Samúdio (2008). Direitos reservados


Na difícil hora da retirada, depois de 9 anos de guarnições militares em Guileje, a coluna dirige-se para outro inferno, Gadamael.

Foto de autor desconhecido. E que, com a devida vénia, se reproduz



A história faz-se de factos concretos e não de especulações abstractas, pelo que não podemos dizer o que teria acontecido se Coutinho e Lima se mantivesse firme no seu posto, pondo em risco, do seu ponto de vista, a segurança e a vida dos militares e da população de que era (e se sentia) responsável. (Recorde-se que Guileje foi ocupado pelo PAIGC, três dias depois, em 25 de Maio de 1973).

Muito provavelmente não teria mudado em nada o rumo da história, mas talvez estivéssemos agora a lamentar mais umas mortes escusadas, de um lado e do outro. Ficou a acção que a sua consciência ditou, e que lhe valeu a prisão preventiva (cerca de um ano, de 22 de Maio de 1973 a 12 de Maio de 1974), com instauração de um Auto de Corpo Delito. Em consequência do 25 de Abril de 1974, os crimes que lhe eram imputados, foram amnistiados por Decreto-Lei da Junta de Salvação Nacional, sendo o processo arquivado.

O caso Coutinho e Lima foi por demais analisado, escalpelizado e discutido neste Blogue e, se o trago de novo aqui, é porque não podemos deixar de lembrar o seu livro A Retirada de Guileje, 22 de Maio 1973: A Verdade dos Factos (edição de autor, 2008), onde o nosso camarada conta todos (ou quase todos) os pormenores daquelas horas difíceis culminando numa resolução, reflectida mas temerária, por parte de um Oficial do Quadro Permanente, que sabia de antemão estar sujeito ao pior castigo, a prisão e a mais que provável expulsão do Exército Português.

Independentemente da opinião de cada um de nós sobre a decisão tomada no já longínquo 22 de Maio de 1973, o que importa sublinhar é que hoje é o dia de Coutinho e Lima, o dia em que completa mais um ano na vida. É um dia de festa e ninguém vai estragá-lo...

Como acontece com todos os camaradas que fazem anos de vida, estamos aqui para nos congratularmos por mais este aniversário e manifestarmo-lhe o nosso apreço e amizade como ex-combatente da Guiné, em igualdade de circunstâncias com todos os demais. A dádiva da vida deve sobrepor-se, sempre, aos pontos de vista, circunstanciais, de cada um de nós, relativamente aos acontecimentos de que o Coutinho e Lima foi protagonista. Como é timbre do nosso blogue, não somos juízes de ninguém. E hoje vamos poupar o nosso aniversariante às polémicas de que foi alvo. Noutro dia, publicaremos mais um texto que ele nos mandou, ainda a propósito da sua decisão de retirada...

Da esquerda para a direita: José Rocha, ex-Alf Mil, CART 2410, Os Dráculas, e Alexandre Coutinho e Lima, antigo Comandante do COP 5 (1973).

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > Coutinho e Lima, depois de ser homenageado pela antiga população de Guileje (que hoje vive em Mero), deixa-se fotografar no recinto do antigo aquartelamento, com o traje de home sábio, a chabadora, que lhe impuseram...

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > 17 de Maio de 2008 > III Encontro Nacional da Nossa Tertúlia > Dois homens de Guileje: à direita, o Cor Art Ref Coutinho e Lima, e à sua esquerda, o ex-Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho, da CCAV 8350

O Cor Coutinho e Lima fala aos presentes no III Encontro Nacional da Tertúlia. Acompanha-o o nosso Editor Luís Graça

Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


Coutinho e Lima na Biblioteca-Museu República e Resistência, Espaço Grandela, aquando da apresentação do livro "A Retirada de Guileje" integrado no 2.º Ciclo de Conferências "Memórias Literárias da Guerra Colonial", no dia 14 de Maio de 2009.

Foto: © José Martins (2009). Direitos reservados

[Texto e selecção de fotos: C.V.]
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Notas de CV:

Vd. postes sobre o dossiê Retirada de Guileje:

OBS: - É imensa a publicação de postes no nosso Blogue sobre este assunto. Para não tornar a lista exaustiva, deixo ao acaso estes postes. A partir deles terão acesso aos demais. Ressalvo a minha posição de não ter escolhido este ou aquele, em função da opinião expressa ou do autor.

27 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3527: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (1): Lançamento do livro, 13/12/08, 17h, na Academia Militar, Amadora

14 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3618: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (2): A festa ... e a solidão de há 35 anos (Luís Graça)

15 de Dezembro de 2008:

Guiné 63/74 - P3626: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (3): Tardia a nossa percepção do nosso próprio Vietname (Eduardo Dâmaso)

Guiné 63/74 - P3627: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (4): Apresentação do livro, 5ª F, 18, na Casa da Guiné-Bissau em Coimbra
e
Guiné 63/74 - P3628: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (5): O sentido de uma sondagem (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça)

18 de Fevereiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3910: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (22): Resposta do autor do livro a António Martins de Matos (Parte I)

24 de Fevereiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3932: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (23): Resposta do autor do livro a António Martins de Matos (Parte II)

10 de Março de 2009 >
Guiné 63/74 - P4007: Blogoterapia (95): Há mais vida no alfabeto da guerra, para lá dos G: Guileje, Gadamael, Gandembel, Guidaje... (António Matos)

5 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4282: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (11): Heróis... (Constantino Costa, Sold CCav 8350, 1972/74)

14 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4344: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (12): Homenagem dos Homens Grandes de Guiledje a Coutinho e Lima (Camisa Mara / TV Klelé)

27 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4422: Bibliografia de uma guerra (47): Coutinho e Lima fala do seu livro "A Retirada de Guileje" (José Martins)

3 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4634: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (13): A desonra da CCAV 8350 ou o direito a contar a minha versão... (Constantino Costa)

7 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4649: Blogoterapia (114): A Honra da Companhia, os fantasmas de Guileje, os limites da tolerância (José Brás / António Matos)

24 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4736: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (14): Na minha opinião pessoal, o Major Coutinho Lima foi um Herói! (Amílcar Ventura)

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4951: Parabéns a você (26): Manuel José Ribeiro Agostinho, Escriturário no QG/CTIG, 1968/70 (Os Editores)

domingo, 20 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4985: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (15): Convívios e o Hino Nacional



1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 15ª história do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", com data de 10 de Setembro de 2009, que mais uma vez muito agradecemos.

Camaradas e Amigos,



Esta é a minha história nº. 15 - CONVÍVIOS E O HINO, que pretende ser uma sátira aos jogadores da nossa Selecção Nacional de Futebol, que nem cantar o Hino Nacional sabem.

CONVÍVIOS E O HINO

1 - CONVÍVIOS

Se não é caso único... deve andar por lá perto!

Desde Maio de 1967 até aos dias de hoje os ex-combatentes da C.Caç. 675 reuniram-se todos os anos, o que quer dizer que já estão atingidas e ultrapassadas mais de 40 reuniões.

Repetimos... Se não é caso único... andará por lá perto!

Guardamos ainda a convocatória para a 1ª. Reunião de 7 de Maio de 1967. Uma comissão de 3 elementos – que então viviam e trabalhavam em Lisboa (António Duarte Santos, José Eduardo Reis Oliveira e Belmiro Tavares) convocava (por escrito) os camaradas de armas da Guiné para uma reunião que «constará de uma missa por alma dos companheiros falecidos, seguida de um almoço de confraternização».

A concentração era marcada para as 10h00 do dia 7 de Maio junto ao monumento da Praça dos Restauradores.

Na primeira reunião –por falta de moradas – só estiveram presentes 17 componentes da «gloriosa 675» .

Depois foi-se passando a palavra e de ano para ano mais gente foi aparecendo.

Nos primeiros tempos só com as mulheres, depois com os filhos... até se chegar à época dos netos!

A primeira “comissão” desfez-se – o Santos foi para Portimão e o Oliveira foi para Alcobaça – e ficou em Lisboa o Tavares.

O ex-Alferes Tavares conseguiu uma autêntica base de dados sobre todos os elementos da “675”.

E ao longo dos anos Belmiro Tavares foi tratando de toda a logística necessária à organização dos convívios. Que aconteceram em Lisboa, em Évora, no Porto Alto, em Pombal, em Alcobaça, em Almeirim, etc., etc.

Guarda correspondência, convocatórias, ementas, recortes de jornais e... muitas, muitas fotografias.

Ultimamente registou-se alguma «descentralização». Alcobaça e Almeirim foram os exemplos recentes. E bons exemplos.

Por motivos óbvios não podemos deixar de referir Alcobaça, que foi um “marco” importante na história dos convívios da gloriosa “675”.
...
2 - O Hino...

Vem a propósito dizer que recordámos esta história por causa do futebol. Passamos a explicar melhor.

Nos recentes jogos da selecção de Portugal com a Dinamarca e com a Hungria a contar para a fase de apuramento do Campeonato do Mundo de 2010,a realizar na África do Sul, lá vimos, mais uma vez a dificuldade com que alguns “naturalizados” –e não só – cantam o Hino Nacional. Uns nem abrem a boca. Outros arranham timidamente algumas estrofes do Hino.

Sinceramente este “hino” do Carlos Queiroz faz-nos ter algumas saudades do “hino” do espertalhão do Luiz Scolari ,que de “burro” não tinha mesmo nada.

Chega agora o tempo de recordar o “convívio” de Alcobaça a que atrás já aludimos .

Recordamos um episódio marcante .Aconteceu no dia 13 de Maio de 2007… mas continua muito actual.

O hino a que nos vamos referir é aquele que há pouco tempo o Mister Scolari transformou em imagem de marca da nossa Selecção Nacional de Futebol. Aquele que começa por... «Heróis do Mar, Nobre Povo, Nação Valente e Imortal...».

Esse mesmo.

Era cerca de uma hora da tarde e chegava ao fim uma missa celebrada pelo Rev.º Padre Artur na bonita e acolhedora Igreja da Maiorga, nos arredores de Alcobaça.

Na assistência estavam ex-combatentes da C.Caç. 675 que tinham cumprido serviço militar na Guiné em 1964-1966.

Estavam ex-combatentes e suas famílias. Eram cerca de 100 pessoas que se tinham deslocado à região de Alcobaça para uma festa de convívio. Comemoravam o 41º.aniversário do seu regresso à Metrópole em Maio de 1966.

As palavras cordiais do Padre Artur, com 23 anos de África no seu curriculum, tinham encerrado da melhor maneira uma cerimónia religiosa tocante em que tinham sido evocados os mortos da Companhia.

Cada nome referido ao microfone pelo ex-Alferes Tavares – nesta fase da vida já são mais de 30 – era saudado em coro pelos antigos combatentes.

Trinta e tal vezes foi gritado «Presente». E... por breves momentos muitos de nós viram... em imagens esfumadas... na memória do tempo... o Soldado Gonçalves, o Furriel Mesquita, o Sargento Marques, o cabo-enfermeiro Martins, o «Campo de Ourique», etc., etc.

Presente! Presente!

Presentes...

Ide em paz e o Senhor vos acompanhe.

Quando nos levantávamos para sair da Igreja... inesperadamente o organista começa a tocar algumas notas que nos fizeram estacar. Os sons eram-nos familiares...

Mas... era o Hino Nacional.

«Heróis do Mar, Nobre Povo, Nação Valente e Imortal... ».

Com as vozes embargadas e os olhos marejados de lágrimas "os velhotes" da 675 cantaram o hino e viveram emocionados um dos momentos mais bonitos de... 41 anos de «regressos».

Espontaneamente uma salva de palmas encheu a capela .

O sorriso discreto do organista selou o momento mágico.

Os homens da 675 não mais vão esquecer o organista da Maiorga.

Depois... o resto da tarde com o almoço, os sorrisos, as piadas, a música do «Soão», os discursos do nosso Capitão de Binta, as histórias da guerra... as memórias.

Especialmente... as memórias.

Daqui para à frente vai haver mais um momento especial para recordar.

O Hino Nacional na Igreja da Maiorga, a 3 Kms. de Alcobaça.

Não o do seleccionador sr. Luiz Felipe Scolari – nem o do Prof. Carlos Queiroz -mas o do organista Sr.António Rosa.

Maior de 60 anos, nascido e residente na Maiorga, perto de Alcobaça, que se orgulha de ser português, e, graciosamente, acompanha os serviços religiosos na Igreja da sua terra. E honrou de forma sublime e espontânea ex-combatentes.

«Heróis do Mar, Nobre Povo, Nação Valente e Imortal... ».

Com as vozes embargadas e os olhos marejados de lágrimas "os velhotes" da 675 cantarem emocionadamente o Hino Nacional porque sabem a letra e..a sentem .

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

C/c para a Federação Portuguesa de Futebol, à esp. atenção do Dr. Madail.

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P4984: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (18): O Coimbra

1. Mais uma mensagem do nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), com um texto das suas memórias:

Camaradas,

Como sempre é do meu baú de memórias que retiro as recordações dos tempos da minha juventude, nomeadamente as vividas em terras da Guiné.

A esta intitulei-a de:

O COIMBRA

Quem no meu tempo esteve no Sector de Mampatá, Buba e Aldeia Formosa, sabia quem era este personagem, não querida das NT, que, quer se queira quer não, era uma pessoa eficaz e eficiente, para o desenrolar das Informações Operacionais.

Refiro-me ao agente Coimbra da DGC (posterior DGS), vulgo P.I.D.E., que se encontrava em Aldeia Formosa (Quebo).

Frequentava com assiduidade a Messe de Sargentos, escutando as conversas e disparates que nós, na nossa juventude e ingenuidade, dizíamos sobre a política e os políticos de então.

Deambulando de mesa em mesa, passando pelo balcão, procurava insistentemente com alguma provocação à mistura, inteirar-se dos resultados, ou saber pistas, daqueles que regressados dos patrulhamentos, colunas e operações, lhe pudessem prestar algum tipo de informação útil (para ele como é óbvio).

Nós, em Mampatá, não estávamos muito expostos a este manhoso “assédio”, mas como tínhamos que nos deslocar diariamente a Aldeia Formosa, onde funcionava a Secretaria, bem como abastecer-nos de água, pão e frescos que eram transportados a partir de Bissau num Dakota, também nos sujeitávamos ao “assalto pesquisador” do homenzinho.

Era inevitável que o nosso “amigo” Coimbra, nos chateasse com várias perguntas, mais ou menos “espertas”, de todo o tipo de matérias.

Numa das minhas idas nessas missões a Aldeia Formosa, parei na Messe de Sargentos gesto obrigatório, habitual e indispensável para confraternizar com o pessoal amigo local, tendo-me deparado com o Coimbra, que logo me foi fazendo perguntas sobre aspectos militares da nossa ZA.

Virei-me para o mesmo e disse-lhe, que os meus relatórios tinham sido entregues ao Comando da Companhia e que se tivesse interesse em saber o seu conteúdo, os pedisse ao meu capitão.

O Homem passou-se e ameaçou-me, tentando levar-me com ele para o seu Posto de Serviço.

Teve azar, pois eu chamei o oficial de dia de Aldeia Formosa e contei-lhe o que estava acontecer.

O mesmo achou por bem chamar o Major Operacional, que na altura era o bem conhecido Pezarat Correia, que interviu dizendo que eu tinha procedido segundo os regulamentos e mais disse, que se ele estivesse interessado em informações, que fosse pedi-las ao Comando.

A partir desse dia fiquei ali com um amigo para o resto da comissão. Cada vez que ia a Aldeia Formosa, tinha que “levar” com o Coimbra.

Um dia já farto da conversa da “treta” dele, à entrada da Messe, num momento em que ele se encontrava a sós comigo, virei-me para o tipo e disse-lhe:

- Eh pá larga-me a braguilha que eu não gosto de homens. Vens sempre com a mesma conversa até parece que és bicha.

Não é que o Coimbra nunca mais me chateou.

Ainda hoje vivo com sérias dúvidas pessoais sobre a sua sexualidade... (???).

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Imagem: Wikipédia (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4983: (Ex)citações (47): Sexo e amor em tempo de guerra (Juvenal Amado / S.N.)

Guiné > Zona Leste > Galomaro > CCS/ BCAÇ 3872 (1972/74) > O Juvenal Amado, 1º Cabo Condutor, segurando ao colo o irmãozinho da sua lavadeira.

Foto: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.


1. Dois textos enviados recentemente por dois camaradas nossos sobre o (e)terno tema do amor e sexo em tempo de guerra... O pré-texto é o último poste do Vitor Junqueira (*)... O primeiro texto que publicamos é da autoria do Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, autor da série Estórias do Juvenal Amado. O outro é de um camarada que conheceu o TO da Guiné mas também de Angola e Moçambique... Não faz parte da nossa Tabanca Grande, é um leitor assíduo do nosso blogue. Vamos apenas identificá-lo pelas iniciais S.N.


(i) O que fica para além do amor
por Juvenal Amado


A desproporção das imagens que temos em relação ao que descrevemos, deixa-nos órfãos de um sabor a pouco.

Ao contrário do acto, o amor não é negociável. Na Guiné vários foram os amores, que duraram para além da relação ocasional.

Pelo o que li sobre a Fanta (*), ela transformou o que seria uma relação fugaz e sem futuro, numa belíssima estória de amor.

Sim, ela deu o primeiro passo, escolheu o seu homem e resolveu como seria a sua vida enquanto amante daquele soldado jovem, que a iria deixar mais tarde ou mais cedo, só com a recordação.

Como quem nada tem a perder deu o que tinha, as marcas deixadas no soldado, emoção com que escreve, extravasa quando lemos o seu relato daquele amor.

O amor transborda em cada parágrafo, facilmente visualizamos as imagens, vale o amor em que tudo é dado nada se troca, nem o tempo.

Outras também escolheram a felicidade fugaz, limitada no tempo que duravam as comissões.

Foram poucos os Valenças.

A Jarulema, a Mariama, a Fátima são a recordações que mantenho desses amores não ocasionais, que militares da minha companhia lá deixaram.

Um caso houve que uma menina nasceu fruto de um desses amores. O pai, sendo militar da minha companhia, logo fez planos para perfilhar o bebé, tendo informado a família na Metrópole do facto. Quis o azar que o bebé não sobrevivesse ao parto, pois a mãe, não sendo de Galomaro, só recorreu aos serviços de saúde do quartel muito tarde.

Quem lá não esteve dirá como foi possível abandonar-se depois essas mulheres. Como esquecer o doce, morno e terno abraço. Na verdade a solução passou por cada um regressar ao seu Mundo, já que o soldado não escolhia o dela muito menos ela, podia escolher o dele.

Admiram-se os nossos familiares e amigos, que não conheceram aquela terra pobre sofrida da nossa permanente recordação. Não sabem como ela se agarrou a nós, num misto do amor e ódio, de onde só ficou o amor e a saudade.

E o amor nunca é negociável.

Juvenal Amado

(ii) Uma namorada chamada Halima
por S.N.

Amigo Luís, e quiseres publicar um excerto truncado + imagem do meu 'Caderno de Jornalista' (podes omitir a autoria), em abono da tentativa de reconciliação que o Junqueiro faz e a favor de uma ideia que se pode insinuar de que nem todas as putas eram vistas como puta-objecto-barato ou que nem todas as relações com as miúdas 'de lá' eram sumárias relações de poder brutal e intempestivo... aqui tens.


em áfrica, tive uma namorada chamada halima. que linda!
morava numa casa de adobe, com capim por cima; não é como cá!
era perto da praia e a meio da noite, íamos nadar, trilho abaixo, de pano enrolado à cintura, para o mar; e o leopardo por ali, a rondar...
depois vínhamos para cima enlaçados, devagar, para a cama de paus ondulados, dormir e lá dentro chovia, na terra preta do chão, de áfrica.
não é como cá. é mais empolgante, lá!

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

18 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4975: (Ex)citações (46): Se eu fosse mulher sentir-me-ia duplamente envergonhada... (Vitor Junqueira)

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação

Guiné 63/74 - P4982: Em busca de... (90): Camaradas do Esq Rec N.º 385, Guiné, 1962/1964 (Gumerzindo Silva)

1. Mensagem de Gumerzindo Caetano da Silva, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3331, Cuntima, 1970/72, com data de 17 de Setembro de 2009:

Meu Caro Vinhal
Há dias pedi-te uma informação a respeito dum primo meu.
Agora que falei com ele, de facto é verdade, havia engano no número, eu referia-me ao BCAÇ 237 na zona de Bafatá, mas trata-se do Esq de Cavalaria 385 que embarcou em 02.08.62 com regresso a 23 07 64, este sim na zona de Bafatá.

Se alguem me puder ajudar, agradeço.
Um grande abraço.


2. Comentário de CV:

Camaradas:
Um primo do nosso camarada Gumerzindo Silva gostaria de encontrar alguns dos seus companheiros do Esq Rec 385, que esteve na Guiné entre 1962 e 1964, dos quais lhes perdeu o rasto.

Se entre os nossos camaradas houver alguém que tenha pistas e queira ter a bondade de as fornecer, poderá contactar-nos ou o Gumerzindo directamente.

Para uma possóvel ajuda, deixo alguns elementos sobre a Unidade


ESQUADRÃO DE RECONHECIMENTO N.º 385

Identificação


Unidade Mobilizadora: Reg Cav 8 - Castelo Braco
CMDT: Cap Cav José Olímpio Caiado da Costa Gomes

Partida: Embarque em 27JUL62; desembarque em 02AGO62
Regresso: Embarque em 23JUL64


Síntese da Actividade Operacional

Em 02AGO62, Substituindo o Esq Rec 54, foi colocado em Bafatá, ficando integrado no dispositivo e manobra do BCAÇ 238 e depois do BCAÇ 506 e com um Pelotão destacado em Farim, este na dependência do BCAÇ 239 e depois do BCAÇ 507 e ainda do BCAÇ 512 e do BCAV 490.

Tomou parte em diversas acções de patrulhamento e de contacto com as populações, tendo actuado, a partir de 18MAR63, em diversas regiões, nomeadamente em Poidom-Ponta do Inglês, Aldeia Formosa, Cumbijã e Nhacobá, entre outras e destacou diversos efectivos para guarnecer diversas localidades, como Xitole, Camamudo e Geba.

Em 22JUL64, foi substituído pelo Esq Rec 693 e recolheu a Bissau a fim de efectuar o embarque de regresso.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4931: Em busca de... (89): Camaradas da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71 (João Rito Marques, ex-cabo quarteleiro, Soito, Sabugal)

Guiné 63/74 - P4981: Banco do afecto contra a solidão (5): O ABC do nosso calvário, Amadu, Baptista, Corvacho...

Cópia da última comunicação, datada de 24 de Setembro de 2008 (há um ano!), que o nosso camarada António Baptista, o morto-vivo do Quirafo, recebeu da Repartição de Reserva, Reforma e Disponibilidade / DARH, Comano Pessoal, Exército Português, Ministério da Defesa Nacional, dando conta que o assunto tinha ido a despacho do Chefe do Estado Maior do Exército... Temos agora a informação de que já lhe foi atribuída a pensão de ex-prisioneiro, a que tem direito...37 anos depois! É sobretudo o reconhecimento, societal, de que ele sacrificou uma parte da sua vida e da sua liberdade, como cidadão português, ao sreviço da sua Pátria... Éum acto da mais elementar justiça...

A cópia, digitalizada, foi -nos enviada pelo nosso camarada Álvaro Baptista, da Tabanca Grande, que tem sido mais do que pai do Baptista... Entretanto, na 4ª feira, no seu tradicional almoço semanal, a Tabanca de Matosinhos celebrou os 35 anos do regresso do Baptista, de um cativeiro de dois anos e meio, às mãos do PAIGC.

Foto: © Álvaro Basto (2009). Direitos reservados.


1. O nosso camarada José António Pereira da Costa, Cor Inf Ref, transmitiu-nos ontem mais a seguinte informação sobre o caso do Baptista que ele tem vindo a acompanhar:

Assunto - Caso do Baptista

Bom dia, Camaradas Voltei a contactar o Gabinete de Apoio aos ex-Combatentes sobre o caso do Baptista. A CGA [,Caixa Geral de Aposentações,] está pronta para processar e abonar a pensão de ex-prisioneiro (cerca de 109 €). Porém só o poderá fazer depois de ter sido publicada a concessão no DR - Diário da República (II Série). Ainda não foi e não se sabe quando será. Ao nível do Ramo e do MDN [ Ministério da Defesa Nacional] não há mais nada a fazer. Um Ab.

2. Já em 13 de Julho de 2009, ele tinha feito o ponto da situação deste verdadeiro folhetim:

Já vi o despacho conjunto do Ministro das Finanças e do Secretário de Estado da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar (dado em 13200307JAN09Z) que concede ao Baptista a pensão a que tem direito nos termos do Art.º 4º do Decreto-Lei nº 161/2001de 22MAI, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 170/2004 de 16JUL.

Segundo informações que colhi, o assunto está para publicação no DR. Poderia ter uma digitalização do último documento que o Baptista recebeu das entidades oficiais acerca do seu caso. Um Ab. António Costa.


3. Por outro lado, o Virgínio Briote comentou esta mensagem e deu-nos notícias (preocupantes...) sobre a saúde do Amadu Djaló:

Caros Carlos Vinhal, Pereira da Costa e José Eduardo (JERO)

Finalmente parece que a história do nosso Baptista está nas vias finais [Foto á esquerda, no almoço de 4ª feira, na Tabanca de Matosinhos, cortesia do Álvaro Basto ]. O que se fez deveu-se à teimosia de alguns e vocês são mais que merecedores de um grande abraço de todos nós. Ainda para mais num tempo em que quase nada do que se faz é gratuito.

Hoje o Amadu foi finalmente levado à urgência do HMP [, Hospital Militar Principal]. Os pulmões não lhe permitiam mais que dois passos. E mesmo assim foi à força, que o velho não queria!

Depois das análises e radiografias já não o deixaram sair e, apesar dos protestos do Amadu, foi internado em Belém. Foi tratado exemplarmente, conforme foi testemunha a Drª Fátima Rodrigues, Professora da Universade Lusíada, que está a fazer o trabalho de doutoramento sobre os naturais das antigas Províncias Ultramarinas e a Guerra no Ultramar.

Para o José Eduardo: estamos gratos pelos teus bons ofícios. Julgo que, pelo menos para já, não é necessário falar no assunto ao General Tomé Pinto [, antigo comandante da CCAÇ 675]. (1964/66).

vbriote


4. Mail do nosso camarada Nuno Rubim, de 16 do corrente:

Caro Camarada Magalhães Ribeiro:

Visitei ontem, no Hospital Amadora / Sintra, o Cor Corvacho. Tal como o filho me avisou, fiquei triste por ele não ter dado sinais de me reconhecer, nem reagir às fotografias que lhe mostrei sobre Guileje e as suas gentes. Só correspondeu nas vezes em que lhe apertei a mão. O filho disse-me que algumas vezes ele está um pouco mais lúcido. De qualquer forma o Cor Corvacho vai ser transferido para o
IASFA [, Instituto de Acção Social das Forças Armadas].

Um abraço
Nuno Rubim
5. Mensagem de 19 do corrente, enviada pelo Eurico Corvacho, filho:

Bom a todos Caros Amigos, as últimas informações que tenho, o meu pai vai ter alta na próxima segunda-feira [, 21 do corrente], não consegui apurar para onde vai pela falta de comunicação com a mulher dele, não me atende o telefone, enfim, sem comentários.

No entanto, o Coronel Morais da Silva disponibilizou-se para fazer a ponte com ela, bem como tentar resolver a questão do IASFA, que afinal não parece que estava garantida… Vou-vos mantendo ao corrente do desenrolar do processo.

Um forte abraço para todos, Eurico Corvacho
________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 12 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4941: Banco do Afecto contra a Solidão (4): Um grande capitão da Guiné - Eurico de Deus Corvacho - CART 1613, continua hospitalizado

Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966

1. Nono poste da série Cartas, (JAN a MAR66), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 04 Jan. 1966
Espero a visita de um coronel de Bafatá, o chefão cá do sítio e isto tem de ficar tudo a brilhar. O pior é que os soldados estão outra vez a perder o hábito de trabalhar.
Neste fim de mês de Dezembro, vivi atulhado em contas da Cantina. Fui obrigado a deslocar-me a Pirada, para na máquina de calcular de Secretaria, conseguir acertar as contas. Felizmente que tudo deu certo e até com um lucro bastante satisfatório.
As distracções continuam sempre as mesmas. Às segundas-feiras, um passeio matinal pela aldeia para ver a feira. À noite joga-se à Sueca ou às Copas. Perco quase sempre, porque não dou atenção às cartas que vão saindo, nem conto os trunfos já jogados. Agora, com esta mania das cartas, já não nos deitamos com as galinhas. Dá para passar o tempo, mas não me entusiasma muito.

Ao Sábado à tarde e ao Domingo parece que o quartel fica deserto pois toda a gente se deita na Caserna a dormir a sesta ou a ouvir rádio.
Quanto à Passagem do Ano, aconteceu sem novidade de maior. Quase sem darmos por isso, estávamos já em 1966.
À meia-noite do dia 31 de Dezembro, fizemos um arraial de trinta demónios e até disparámos, para o ar, foguetões luminosos de várias cores (os very lights). Mesmo assim a festa durou pouco tempo e antes das 02H00 da madrugada já todos dormiam sossegadamente.
Os soldados estão todos chateados comigo por ter comprado uma camisa verde do novo fardamento, mas não tive outro remédio porque as amarelas estão a desfazer-se aos bocados e já não existem à venda. Dizem que os atraiçoei, pois a farda antiga é que nos dá o valor de veteranos.

Paúnca, 17 Jan. 1966
Percorremos toda a região banhada pelo maior rio da Guiné, o Gêba, que entra no território da Província, aqui por esta zona.
O silêncio e a serenidade das margens, onde se escondem numerosos crocodilos, quase nos retinham ali, especados para sempre.
Éramos só 12 homens, 6 brancos e 6 pretos e na primeira paragem, acampámos no local de uma antiga tabanca, um grande espaço ainda limpo de mato, apenas com duas ou três árvores frondosas no centro. Ainda se viam por aqui e por ali, as ruínas de antigas vedações, paus e estacas que sustentavam as palhotas.
Deitámo-nos debaixo de dois mangueirais e fizemos uma fogueira enorme com algumas estacas das ruínas que, como estavam muito secas, arderam às mil maravilhas. Não tivemos que recear o frio, pois toda a noite a fogueira ardeu com força.
Apenas fomos importunados pelas formigas de um monte de bagabaga que inadvertidamente destruímos, quando limpávamos o chão junto das árvores. A nossa intenção era a de passarmos despercebidos por entre as tabancas que há nesta região, mas por nosso azar, ou apenas por imprevidência, quando estávamos a montar o acampamento apareceram quatro crianças vindas do mato, possivelmente em trânsito de uma tabanca para outra. Tentámos pregar-lhes um susto, dizendo-lhes que não éramos da tropa, mas sim guerrilheiros a caminho do Senegal. Por isso não os podíamos deixar seguir, teriam de ficar prisioneiros para não irem contar que nos viram. Mas os miúdos não acreditaram muito, talvez porque até já tivessem conhecido alguns de nós em Paúnca.
De modo que, ao fim de algum tempo, vendo que o ardil não resultava, optámos por deixá-los ir embora, não sem antes nos prometerem que, logo que chegassem à tabanca para onde iam, nos mandariam laranjas.
E na verdade, daí a um grande bocado, apareceu outro rapaz, de bicicleta, com um saco de laranjas e mandioca. Dei-lhe dinheiro e ele lá foi todo contente e ao mesmo tempo muito admirado.

No dia seguinte, como já não estávamos mais na clandestinidade, fomos direitos a uma outra tabanca, mais a Norte. Ao longo do rio a paisagem continuava soberba. Tirei inúmeras fotografias.
O chefe da tabanca é um velho amigo (pelo menos assim me parece) e, apesar de ele não perceber quase nada do que nós dizíamos, esteve um grande bocado a conversar connosco.
Passámos ali o resto do segundo dia a descansar, sempre rodeados de miúdos curiosos que enxameavam à nossa volta como moscas teimosas. Alguns eram muito engraçados, mas também havia muitos sofrendo de doenças nos olhos. Os mais fortes e desembaraçados eram com certeza os sobreviventes de toda uma enorme mortalidade infantil. Dormimos nas palhotas deles e, no dia seguinte, num local previamente combinado, apareceram as viaturas que nos levaram de volta ao quartel.

Nada de importante se tinha descoberto, a não ser que aquela zona, conhecida pelo nome de Mata do Sacaio, não era tão cerrada e inóspita como se dizia, pois afinal qualquer grupo de pessoas que, passasse por lá, seria facilmente detectado.
Fiquei no entanto com vontade de lá voltar, mas tão cedo não o poderei fazer porque, infelizmente dos meus 30 homens já só posso contar com 18 de boa saúde, o resto está, na maioria dos casos, com paludismo e outras doenças mais graves. Não têm o mínimo cuidado e apanham todas as doenças.
Com a milícia Fula não tenho problemas. Aquartelados num barracão ao lado do quartel, vivem felizes e despreocupados, alguns acompanhados pelas mulheres e os filhos.

No sábado à noite estava lá sentado ao pé da fogueira, conversando com eles, quando apareceram dois carros militares cheios de pessoal, numa grande algazarra. Prevendo o pior, voltei logo ao meu aquartelamento para ver do que se tratava.
Afinal vinham só divertir-se. O Capitão, o Alferes Castro que ainda julga que isto tudo é dele e o Doutor que nunca diz que não a uma promessa de farra.
Quando lhes perguntei o significado de tão inesperada visita, o Capitão explicou que tinham vindo ensinar o caminho a uma equipa de trabalhadores das Obras Públicas que anda a arranjar as estradas e que convidara o Castro e o Doutor para nos fazer uma visita informal

- E para bebermos uns copos! - acrescentaram logo o Castro e o Doutor, rindo às gargalhadas.

Como não achei muita graça, ripostei, perguntando se por acaso já estaríamos no Carnaval, para se fazerem assaltos. Mas perante a insistência dos foliões, não tive outro remédio senão abrir a Cantina. Acabaram por beber tudo o que havia e gastaram-me mais de 300$00 que, agora nesta altura me fazem muita falta, pois os negócios andam fraquinhos. Mas o que mais me irritou foi a atitude de gozo do Capitão, compactuando nesta farra de bêbados o que nele não é nada o seu estilo.
Como habitualmente, o Doutor quando se foram embora já ia de rastos, disparatando e cantando fados à lua. E o pior foi que, depois de eles saírem, um dos soldados que, por acaso nem é do meu Pelotão, mas do Pelotão do Castro e está cá emprestado, aproveitando o mau exemplo do seu chefe, embebedou-se também e foi para a caserna fazer reboliço. Armado com um pau começou a distribuir cacetadas a torto e a direito, mas logo por azar (seu) acertou num soldado negro que estava a tentar descansar. O Jau (um dos meus melhores soldados negros) acordado tão inesperadamente, não esteve com meias medidas, saltou da cama, pegou na primeira coisa que lhe apareceu à mão… uma pá e, zás! Enfiou com ela na cabeça do rufia, fazendo-lhe um golpe na testa que lhe curou instantaneamente a bebedeira.
O indivíduo ainda andou por ali a rosnar umas ameaças, mas nessa altura cheguei eu e tudo serenou como tinha de ser. Mais uma vez se comprovou que estas farras dentro do quartel dão sempre mau resultado.

Paúnca, 17 Fev. 1966
Ultimamente tem havido uma série de falsos alarmes, convergindo as atenções para esta mísera localidade.
Assim, de repente, sem qualquer aviso, surgiu aqui um Grupo de Combate de Nova Lamego e um Pelotão de Autometralhadoras Panhard, perguntando a toda a gente onde é que estava o inimigo!
Tratava-se, é claro, de mais um falso alarme, que fez logo saltar dos sofás, os chefões na sede do Batalhão.
Confirmado o engano, óbvio é claro, o Grupo de Combate regressou ordeiramente a penates, deixando, no entanto, para trás as Autometralhadoras Panhard, que já agora aproveitavam para fazer umas patrulhas pelas redondezas, não fosse o diabo tecê-las…
Assim temos passado agora umas noites bem divertidas com a companhia destes hóspedes inesperados, aliás excelentes camaradas, especialmente o Comandante, o Alferes Alexandre, um gigante de Angola, sempre bem-disposto.
A população que, tem um medo terrível das Panhard, com as suas imponentes metralhadoras de 20 mm, nem quer passar ao pé delas. No entanto soube que as populações mais afastadas parecem ter ficado tranquilizadas com o poderio de fogo que a tropa mostrou ter, para os proteger daqueles a quem eles chamam os bandidos (os turras).

Mas a miudagem atrevida, passada meia hora já andava encavalitada em cima dos blindados, brincando com as fitas das balas tracejantes de 20 mm, rindo com as brincadeiras dos soldados.
E tem sido assim esta guerra, sempre bem encenada, mas sem grandes palmas.
Agora que o Pelotão de Blindados também já se foi embora, voltámos àquela paz bucólica de sempre. Amanhã temos de dar uma grande limpeza no quartel e repor tudo nos seus lugares como dantes. Ficou como uma casa depois de uma grande festa, toda desarrumada e cheia de lixo.
Não deixei de ir a Pirada apresentar os meus hóspedes ao M. Santos, mas, não sei porquê, fui recebido com má cara. No entanto o Castro soube fazer as honras da casa e pagou as bebidas da praxe. Quando nos viemos embora, o M. Santos nem apareceu para as despedidas. Fiz de contas que não reparei. Afinal, não lhe devo nada e portanto, boa tarde!
Consta que já fez as pazes com o Cardoso e o recebe muito bem lá em casa. Alguém percebe isto?

Paúnca, 22 Fev. 1966
Hoje foi um dia extraordinário. Um dia de Carnaval como nunca gozei na minha vida. Resolvemos deitar fora as tristezas e brincar até fartar.
Felizmente, só houve um único caso de bebedeira, o soldado, o Facha, um pobre diabo que não faz mal a uma mosca, distraiu-se e bebeu mais do que a conta. Todos os outros, incluindo os furriéis, portaram-se sempre na linha, sem descarrilar nem perder a noção das realidades.
Começámos por organizar uma orquestra com os meus tambores, uma gaita-de-beiços, uma concertina, umas castanholas e um reco-reco, além dos já tradicionais ferrinhos. Dois dos soldados mascararam-se de casal de noivos, casados de fresco e um outro de polícia sinaleiro com um chapéu colonial na cabeça. Eu e um furriel pedimos umas vestimentas nativas e mascarámo-nos de fulas, simplesmente.
Formámos então um grande grupo e, logo depois do almoço, saímos pela povoação a fazer a nossa passeata. Foi um sucesso!
Rapidamente se juntou à nossa volta uma verdadeira multidão de crianças, de adultos e velhos primeiro julgando que nós teríamos endoidecido mas depois convencidos que aquilo era só festa aderiram também à pândega, acabando até a dançar o vira. Muitos acreditavam que nós tínhamos recebido a ordem de voltar para casa no dia seguinte.
Percorremos toda a povoação de casa em casa e foi um verdadeiro assalto carnavalesco às lojas que, àquela hora, estavam abertas como sempre. Mas tudo correu bem, sem excessos. Só muita brincadeira e muito ronco, muita festa e alegria.
À noite, repetiu-se a dose, agora com a orquestra mais afinada, só para fazer serenata no centro da povoação e não deixar os comerciantes irem cedo para a cama. Houve logo um deles que veio oferecer um garrafão de 10 litros de vinho que desapareceu em menos de um fósforo.
Eu, que de tarde me tinha mascarado, conseguindo não ser reconhecido por ninguém, desta vez limitei-me a assistir e a manter a ordem. Correu tudo bem e conseguimos contagiar de tal maneira os civis que, às dez horas da noite, Paúnca vivia num ambiente louco de Carnaval. Só se via gente a cantar e a dançar. Por todo o lado ouviam-se batuques e o som da nossa orquestra, mais conhecida como o Quinteto do Lopes que teve um sucesso inesperado. Quando tudo começou a esfriar, quem ainda bulia veio para o aquartelamento para um fim de festa rematado por um grandioso baile. Esgotaram-se as reservas da cantina para todo o mês.
Não sei como, desatei também a tocar desenfreadamente um tambor, enlouquecendo a multidão que pulava e se rebolava pelo chão numa completa histeria.
Curiosamente, ninguém se embebedou! Durante toda a noite bebi apenas um whisky, oferecido na casa de um dos comerciantes e naturalmente era o que estava mais lúcido.
Enfim, foi uma festa magnífica. Amanhã, Quarta-feira de Cinzas é dia de trabalho.

E eis que surgiram novas ideias ao nosso Capitão. Teremos de construir uma casa-abrigo para o novo gerador de energia eléctrica que, virá (ou não…) dentro de dez dias! Quer tudo feito em bidões cheios de terra, à prova de bala de canhão…
Falta saber quem é que amanhã se vai levantar mais cedo para começar a trabalhar nessa obra.
Eu cá, é que não!

Paúnca, 01 Mar. 1966
A estação da mancarra está quase a acabar. Já circulam menos camponeses pela estrada, puxando os seus burros, carregados com os enormes sacos cheios de mancarra, a caminho dos armazéns dos comerciantes daqui que, depois se encarregam de a fazer chegar a Bafatá para aí embarcar para Bissau.
A temperatura chegou a descer tanto que me vi forçado a dormir de pijama e cobertor. Mas agora já está a subir de novo.
Passo o tempo entretido a ler ou a jogar às cartas com os furriéis. Neste último fim-de-semana, pela primeira vez, tivemos a visita de dois turistas. A fama da boa vida em Paúnca está a tomar tal consistência que já aparecem pedidos do pessoal de Pirada para virem passar aqui os fins-de-semana. Os dois primeiros turistas foram uns furriéis, nossos especiais amigos que solicitaram ao Capitão licença para passar cá o sábado e o domingo numa espécie de mini-férias.
A razão principal sei eu qual é. A comida da nossa Messe é muito melhor que a de Pirada. Se acrescentarmos a isso, os ares mais puros, a convivência mais alegre e sadia, as bebidas frescas e à borla que, os donos da casa sempre acabam por oferecer, e sobretudo o facto de estarem longe do 1.º Sargento e do Capitão, está explicada a razão deste fenómeno que não deixa de ser curioso. E agora são também os soldados que querem fazer o mesmo.
Quase que chega a haver necessidade de se meter uma cunha para conseguir gozar uma pequena licença em, Paúnca!

Este mês a cantina ia ficando completamente vazia. A alegria de estarmos a chegar ao fim da comissão é talvez uma das razões, mas o calor também tem ajudado. Os refrigerantes desaparecem num ápice, tal é a venda. Continuo a ser o gerente da cantina e até agora só tem dado lucro. No fim deste mês entrego tudo a outra Companhia o que já representa alguma coisa. Quando aqui chegámos não havia nada. Estou em crer que até meados de Abril deveremos marchar para Bissau. Até que enfim!
Soube agora pela rádio que os soviéticos atingiram Vénus com uma nave não tripulada. Agora só nos falta a nós sairmos daqui.

Paúnca, 08 Mar. 1966
No sábado passado, fui a Bafatá passear, pois apeteceu-me mudar de ambiente. No entanto apanhei uma valente estafadela pois a estrada está em péssimo estado e ainda por cima o jeep já não tem amortecedores.
Na companhia do M. Santos, almocei num café e depois fomos às compras. Apenas comprei uns livros e não encontrei mais nada de especial, a não ser um pequeno tapete com motivos árabes, alguns panos típicos, um canhangulo novo e uns pratos feitos de ráfia que podem servir de resguardo, quando se colocam panelas ou outros recipientes quentes em cima da mesa.
Mas o que mais de encontrava eram coisas feitas na China! Louça, lenços de seda e até cestas de vime colorido. Comprei ainda, antes da hora da partida uma espécie de rosário, ou simplesmente um colar de contas, que os fulas maometanos como são, usam constantemente, para os ajudar a recitar orações ou os versículos do Alcorão, julgo eu. Infelizmente, os indígenas de cá têm muito pouco artesanato para vender. As coisas mais bonitas vêm de fora, o que as torna mais caras, como é óbvio.

Como o Manel Jaquim agora parece ter medo de vir cá cima, não sei porquê, o nosso entretenimento continua a ser jogar às cartas ou ler alguma coisa. Quanto ao quinteto do Lopes, passou agora a octeto, com novos números e novas orquestrações.

Paúnca, 13 Mar. 1966
Na semana passada estive dois dias em Pirada, a pedido do Capitão. Esperava a vinda de umas autoridades senegalesas e como não tem lá ninguém que fale francês, pediu-me para lhe ir dar uma mãozinha.
Afinal a entrevista limitou-se a uma breve apresentação de cumprimentos mesmo sobre a linha de fronteira.
Em seguida, limitei-me a ficar por lá, ir até casa do M. Santos conversar e ouvir um pouco de música dos novos discos que tem recebido. Em suma passei dois dias sem fazer nada, tal como um verdadeiro turista, passeando e cumprimentando velhos conhecidos.
Quando regressei, todos me vieram falar como se tivesse voltado de uma longa viagem. Na minha ausência tudo tinha corrido sem problemas. Hoje está marcado um almoço, aqui no quartel, para o qual foram convidados todos os comerciantes de Paúnca, uns furriéis de Bajocunda e ainda o nosso Alferes Médico que, agora se dá muito bem comigo e com todos os militares de Paúnca. Foi uma grande festa que só acabou às 6 da tarde, porque os furriéis de Bajocunda tinham de regressar a casa e ainda tinham de percorrer uns 40 kms por picadas de 3.ª categoria.
O almoço foi galinha de chabéu, um prato típico cá do sítio que, consiste em galinha cozinhada em óleo de palma, acompanhado de arroz branco. Tudo muito picante, como é da tradição. O nosso cozinheiro (um balanta que anda quase sempre bêbado) desta vez esmerou-se e toda a gente gabou e repetiu, embora para alguns, tivesse sido a primeira vez que comiam tal especialidade. Éramos 10 pessoas à mesa e consumiram-se 10 galinhas!
Depois, como estava muito calor, fomos até casa de um dos comerciantes comer bolinhos de bacalhau e umas frituras de pasta de camarão, de origem chinesa, e beber whisky com muito gelo. Finalmente para espairecer, fomos dar uma volta pela tabanca e mostrar os locais mais interessantes aos nossos visitantes que, como nunca tinham vindo até cá, se mostraram encantados. Nós, depois de nove meses de estadia, como é o nosso caso, é que já não achamos graça nenhuma.
Acabou-se a tarde a jogar as cartas em casa de outro comerciante. O Doutor ficou para jantar que, entretanto se foi atrasando, pois tivemos de esperar pelo Furriel Vicente que tinha ido levar os camaradas de Bajocunda. Só voltou depois das 10 da noite, mas, bem atestados como estávamos com o almoço, aguentámos bem a espera. Apesar, do jantar (Bacalhau à Gomes de Sá) já estar completamente frio àquela hora, mesmo assim até soube melhor.
Ao serão rematámos com um campeonato de King que só terminou às 03H00 da manhã!
O pior é amanhã, segunda-feira…

Paúnca, 21 Mar. 1966
As novidades para esta semana resumem-se à chegada do Manel Jaquim e a pouco mais. Finalmente reapareceu por cá, com um filme tão ordinário que até senti ganas de lhe apertar o pescoço. Chamava-se “O Capitão Sindbad” e era uma historieta desconchavada tirada das Mil e Uma Noites, excedendo tudo o que já vi de mau gosto e estupidez.
Durante o resto dos dias fui até Pirada várias vezes, para mudar de ambiente, conversar com o M. Santos, ver alguns amigos.

No domingo tivemos cá a visita de um velho comerciante de Pirada, o Gomes que vive muito só, acompanhado apenas por um criado preto, quase tão velho como ele. Muito amigo de alguns furriéis, foram estes que se lembraram de o convidar para vir também conhecer esta já famosa estância turística. Bebemos uns whiskies e comemos galinha assada no espeto. Com o desenrolar da conversa, caiu na esparrela de se gabar que tinha uns paios no frigorífico em casa dele, em Pirada e, no meio do entusiasmo geral acabou por convidar toda a gente para ir lá prová-los.
Claro que nem foi preciso repetir, todos tinham ouvido perfeitamente bem. Corremos para os jeeps e depois de uma louca corrida por 30 kms de picada, caímos em casa dele. Em menos de um fósforo desapareceram três paios e uma garrafa de whisky. O pobre do homem ao ver aquela pressa toda, acabou por fugir para os fundos do quintal a pretexto que precisava de tomar banho.
Por acaso, nesse dia, o Capitão e o Alferes Castro tinham ido a Nova Lamego fazer um piquenique (!) e só voltaram à noite.
Imagine-se! Darem-se ao luxo de fazerem piqueniques aqui. Aposto que ninguém acredita.

Ah! É verdade, segundo os últimos boatos a nossa partida está marcada para 21 de Abril e seguiremos para Bissau no dia 5, mas nada é oficial ainda.
Aqui os dias permanecem sempre iguais. Se começa a chover é porque começou a estação das chuvas. Quando pára de chover, pronto, começou a estação seca!
E é tudo.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

Guiné 63/74 - P4979: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (11): Fartote de hortaliças (Giselda Pessoa)

1. Mensagem de Giselda (*) e Miguel Pessoa, com data de 18 de Setembro de 2009:

Carlos, Luís:
Para compensar o nosso afastamento do blogue por um período de férias dilatado (na verdade ainda continuam...) envio-vos duas pequenas histórias - uma minha ("Correio ao domicílio"), outra da Giselda ("Fartote de legumes").

Como é habitual são ligeirinhas, mas talvez não faça mal, para compensar a caloraça que este Verão trouxe ao blogue...

Um abraço
Giselda e Miguel Pessoa


FARTOTE DE LEGUMES

Quando deambulava pelos aquartelamentos espalhados pela Guiné, nas minhas missões, tive oportunidade de verificar as condições difíceis em que viviam muitos dos nossos militares, nomeadamente no que dizia respeito à alimentação.
Na verdade, devido às dificuldades de abastecimento de géneros, mais visíveis nos aquartelamentos mais isolados, a alimentação falhava com bastante frequência, quer na quantidade quer na qualidade.
Essa situação era agravada nos locais que não dispunham de pista ou que, por acção do inimigo, tinham visíveis dificuldades no reabastecimento por via aérea ou mesmo por via terrestre.

Assim, o prato do dia em muitos sítios era sistematicamente repetido, geralmente com base no arroz ou massas e enlatados e algum produto produzido localmente, mas muitas vezes com visível falta de frescos para acompanhar a refeição.

Tive a oportunidade de verificar isso pessoalmente em diversos locais onde, por força do apoio a Operações, permanecia durante todo o dia, juntamente com as tripulações de alerta às evacuações. Lembro-me que, em determinado momento, devido ao sistema de rotação com as minhas colegas, dia sim dia não abancava no aquartelamento de Cufar onde, sistematicamente, ao almoço nos era servido esparguete com ovo estrelado, salsichas e mortadela (das enlatadas). Poder-se-ia dizer que não era tão mau como isso, mas não se pode considerar adequada uma alimentação que, por ser repetitiva, se tornava enjoativa, acrescida da falta de frescos para equilibrar a ementa.

Outra situação particular vivi-a num aquartelamento no norte da Guiné que apenas dispunha de um heliporto improvisado; após a nossa aterragem, logo pela manhã, muito amavelmente perguntaram-nos se queríamos beber alguma coisa. Para evitar penalizá-los pedi-lhes um simples copo de água. Disseram-me que água não tinham no momento, que tinham que a ir buscar longe. Só se fosse whisky ou Martini...

Pelo contrário, outro local em que muitas vezes permanecíamos, no sul, dispunha de bastante água, não costumando ali faltar os frescos. No decorrer de uma Operação em que ali parámos um par de horas, numa visita às hortas que ali havia, tive a oportunidade de gabar ao seu responsável a qualidade dos legumes ali produzidos.
No momento em que nos preparávamos para descolar tive a surpresa de ver o tal responsável pelas hortas dirigir-se-me, trazendo-me simpaticamente dois sacos volumosos, um com alfaces, outro com couves. Embora com os meus protestos, pois eles precisariam mais daqueles frescos do que eu, acabei por embarcar o material que tão generosamente nos tinha sido oferecido.

O nosso destino era Guileje, onde tive igualmente a oportunidade de passar bastantes dias de alerta. Pela experiência anterior, sabia das limitações de Guileje no que dizia respeito à água e aos frescos, pelo que, lá chegados, foi com satisfação que ofereci os sacos com os legumes que tinha trazido comigo. E o facto é que de imediato alguém tratou de dar destino àquele petisco caído do céu. E ao almoço, que partilharam com a tripulação, foi possível distribuir, por um dia, um rancho melhorado a quem, devido às carências existentes, há já uns tempos que não metia o dente nuns legumes tão frescos e tão apetitosos.

Giselda Pessoa
__________

Notas de CV:

(*) Giselda Pessoa, ex-2.º Srgt Enf.ª Pára-quedista, Guiné, 1972/74

Vd. último poste de Giselda Pessoa de 7 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4295: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (9): O dia-a-dia de uma Enf Pára-quedista na Guiné (Giselda Pessoa)

Vd. último poste da série de 11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4318: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (10): Ivone Reis, Anjo da Guarda na Guiné, Angola e Moçambique (António Brandão)

Guiné 63/74 - P4978: Os Nossos Enfermeiros (7): Excerto do Diário de um Enfermeiro (José Teixeira)

1. Mensagem de José Teixeira (*), ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 17 de Setembro de 2009:

Carlos
Aquele abraço
Na foto que ilustras o poste do Zé Belo sobre os enfermeiros, eu pareço mais um guerrilheiro que um Enfermeiro. Como sabes, eu logo no principio da Comissão decidi não usar arma e ser apenas Enfermeiro. Aquela foto é uma montagem para brincadeira. Gostava que no mínimo registasses essa informação na legenda da foto.

Sobre o mesmo tema, junto um texto e três fotos:
Uma do Aliu Baldé, tirada de um quadro que a familia me mostrou em 2008; outra da familia da Djobo Ansato, onde se vê a "Maria" (de cordão ao pescoço) e uma terceira do Braima Cassamá, guerrilheiro do PAICG que conheci em 2008, e que participou no ataque que descrevo no meu Diário. Disse-me ele que foi dos que entrou dentro do arame e teve de fugir, rapidamente.

Abraço fraterno
José Teixeira

Aliu Baldé
Foto editada por CV


Família de Djobo Ansato

Nesta foto Braima Cassamá, ex-combatente do PAIGC

Fotos: © José Teixeira (2009). Direitos reservados.


Os Nossos Enfermeiros
José Teixeira

O José Belo serviu-se do nosso blogue para me conceder o mais saboroso louvor pelo trabalho que desenvolvi como enfermeiro, durante a Comissão, na qual ele foi o meu Comandante de Grupo.

Este louvor é extensível a todos os camaradas Enfermeiros que vivenciaram a guerra colonial, muito em especial ao António Lemos e ao Jorge Catarino, nossos companheiros de jornada, os quais viveram situações bem mais difíceis.

Na realidade, aos Enfermeiros, como afirma o Belo, eram-lhe reservadas missões bem diferentes da que lhes estava atribuída.

Fui o irmão mais velho para alguns. Enviei dois camaradas para Lisboa, ao escrever ao governador a expor a sua situação. Um tinha um irmão que falecera em combate em Angola. O outro, o seu irmão morrera ali mesmo ao lado no desastre de Cheche no Rio Corubal. Estavam os dois na Guiné.

Ouvi muitos desabafos: Era o álcool em excesso que por vezes deixava libertar problemas mais ou menos graves; era a carta da namorada/esposa que não chegava; era a vontade de ir às meninas e o medo de apanhar uma doença venérea, ou... o receio de não se sair bem pela primeira vez; era o medo de morrer na guerra; era a dor que aparecia, provocada pelo cansaço físico e psicológico que o ia matar... era... era...

Fui o conselheiro procurado para resolver problemas de relacionamento entre marido na Guiné e esposa no Barreiro.

Li cartas de namoradas e família. Escrevi cartas a namoradas e a madrinhas de guerra.

Escrevi carta aos pais da possível namorada arranjada em tempo de guerra, a pedir autorização para... deixar a filha namorar à porta de casa, quando ele regressasse da Guiné.

E os dramas dos feridos que se viam estropiados; dos feridos que víamos partir sem lhes poder valer!

Do Capitão, com um estilhaço numa perna que agarrado à foto da bebé sua filhinha chorava, não de dores, mas de medo de não a voltar a ver!

Do Miguel que ficou sem uma perna, agarrado à foto da noiva a quem escrevia diariamente e de quem recebia toneladas de cartas, gritava:

- Já não vou casar, ela assim não me quer! - Enquanto eu me esforçava por reduzir a hemorragia e lhe salvar a vida.

Afinal casou e vivem felizes.

Das mães que nos traziam os seus filhotes cheios de febre. O Enfermeiro foi a esperança e tantas vezes a salvação para essas crianças.

Daquela mãe com as nádegas crivadas de estilhaços que queria morrer e eu não entendia a razão... Vira a sua bébé morrer carbonizada na morança incendiada pela mesma granada que a atirou ao chão e a imobilizou.

Os camaradas que procuravam formas de fugir às saídas para o mato, usando artimanhas bem urdidas. Umas vezes com sorte, outras azaradas, sobretudo os abusivamente repetentes.

Sem pretender vangloriar-me, mas sim, enriquecer o seu testemunho com situações reais que confirmam o que ele escreveu acerca das acções dos enfermeiros, vou servir-me mais uma vez do meu "Diário":

Dezembro,1968 / Mampatá /29

A Jobo Ansato (Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras "bajudas", como a Fátma, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida. Eu, embora notasse essa mudança não conseguia compreender a sua razão de ser. Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua morança e a conversa virou para os feridos de guerra, as doenças na população e a acção dos enfermeiros.

Fiquei espantado ao ouvi-la dizer:

- No último ataque dos bandidos eu vi o “Tissera” correr pela Tabanca, debaixo de fogo, perguntar à gente se havia feridos. Eu nesse dia fiquei muito contente com ”fermero” . Tissera é amigo de Africano.

Para meu espanto verifico que foi a partir do ataque que sofremos em 3 de Novembro que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa !.

Indo um pouco mais atrás no “Diário” tinha escrito o seguinte:

Novembro, 1968 / Mampatá /3

O dia 3 de Novembro não será esquecido pelos "Amarelos de Mampatá", pois tivemos de travar uma luta de vida ou de morte com o IN que aproveitou a hora do almoço em que os militares se afastaram do seu posto de defesa, para buscar a alimentação junto à cozinha, tentando entrar em Mampatá...

... Chegamos a ter a sensação que estavam cá dentro o que não se verificou graças à nossa valentia e à sorte também. Ao tentarem entrar pelo lado de Buba, o Silva, que não tinha vindo buscar a comida ao refeitório por estar doente, aguentou-os até chegarem reforços e obrigou-os a retirar, quando já estavam dentro do arame.

Onze tabancas ficaram destruídas pelo fogo, pois utilizaram balas incendiárias e também destruiram o paiol. Fiquei assustado e desorientado porque dada a intensidade do fogo e a estratégia adoptada pelo IN, contava ter muito que fazer com feridos talvez mortos, atendendo a que ninguém esperava tal surpresa, os postos estavam desguarnecidos e sobretudo porque tinha pouco material de socorro, apenas 2 sacos de soro.

Ainda debaixo de fogo, saí do abrigo onde me protegera e corri pela Tabanca à procura de feridos, junto dos abrigos subterrâneos onde se abrigara a população. Felizmente nada aconteceu, foi só fogo de vista, susto e prejuízos materiais. Graças a Deus.


Não sei porque razão reagi desta maneira, mas aconteceu…

Impulso natural de medo?

Sentido de missão?

Não sei...

Impulso de heroísmo para agarrar uma medalha não foi de certeza.

No entanto foi bom ter acontecido, por duas razões; primeiro pude ver o chefe de tabanca Aliu Baldé, falecido uns anos depois por doença natural, a quem presto a minha homenagem, de morteiro sessenta em punho, com dois milícias carregados com cunhetes de granadas, de ouvido atento a localizar as rajadas e as saídas do adversário e com duas ou três morteiradas bem dirigidas, os calar. Correr a outro ponto da tabanca, sempre com os dois milícias atrás e repetir a dose. Como fiquei a admirar aquele homem!

A outra razão foi o de no fim da contenda me sentir feliz pela forma estranha como agi. Agora sim, aos saltos e gritos cantava vitória. Não houvera mortes nem feridos.

Em 2008 fui a Mampatá de visita, matar saudades. A Djobo estava ausente em Cumbidjá, pelo que não tive o prazer de a ver, mas a sua família ao saber da minha presença, apresentou-se. Vieram ter comigo os velhos e os novos. Aproximaram-se a medo. Um disse-me, a Djobo está no Cumbidjá, nós somos a sua família. Houve ronco e... a foto da família.

Obrigado José Belo por te lembrares de mim e deste modo me ajudares a viver de novo estes momentos.

Zé Teixeira
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4965: Os Nossos Enfermeiros (6): Os Nossos Anjos da Guarda (Joseph Belo)

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 – P4819: Estórias do Zé Teixeira (36): Mataram o futuro (José Teixeira)

8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4920: Os nossos médicos (5): Um grande homem, militar, clínico e matosinhense que me marcou, o Dr. Azevedo Franco (José Teixeira)