Caro Luís
Aqui te mando o relato duma vivência real que vale o que vale para ser ou não publicada. Vós o direis.
Um abraço
O blogue continua um monumento de História!
J.Mendes Gomes
PODIA TER SAÍDO CARO AQUELE MEU PONTAPÉ NO…
Eu era um simples Aspirante a Oficial. Não tinha culpa de levar a sério a minha posição. Já tinha estado no RII 19 no Funchal nos meus primeiros meses de activo depois do curso de Oficiais Milicianos em Mafra.
Destacado para Évora para preparação da Companhia que me iria levar para o Ultramar, eu levava as minhas responsabilidades muito a sério. Se era para ser Oficial de Dia ao Batalhão, era mesmo Oficial de Dia.
Pela Porta de Armas passava toda a tropa do quartel. Da graúda à miudinha. Ai do sentinela que não cumprisse o seu papel.
Volta e meia era chamado a passar revista ao grupo de soldados que se juntava à Porta de Armas, mortinha por sair.
- Dá licença, meu Aspirante? Está tudo pronto para a revista. – dizia-me o Sargento de Dia, bem perfilado à minha frente.
- Já lá vou - respondia.
Eram p’raí uma dúzia. Em sentido. Em linha rigorosa. Passava diante de cada. Mirava-lhe a barba. O cabelo. A farda. As botas. Tudo tinha de estar a brilhar.
Um dia, um deles, provocador, apresentava-se desalinhado. Boné à rufia. Barba por fazer. As botas baças. A farda suja.
- Ouve lá. Por acaso viste-te ao espelho, lá na caserna?
- Não, meu aspirante. Na caserna não há espelhos. – respondeu prontamente, pensando que tudo estava resolvido.
- Ouve lá. É preciso um espelho para veres o estado dessas botas? Há quanto tempo não vêem graxa?
- Ó meu Aspirante, o meu pré não dá para graxa, muito menos para dois pares de botas… ainda esta noite, voltámos de madrugada de correr montes e vales... não consegui melhor. – adiantou ele, todo triunfante.
Nesse momento, ocorreu-me perguntar:
- Está aqui algum camarada de pelotão deste soldado?
- Estou eu - respondeu uma voz.
Abeirei-me dele. Vi-lhe as botas e a farda. Impecável. Chamei o outro à frente.
- Conheces?
- Conheço. É do meu pelotão.
- Olha para as botas dele.
Ele olhou. Eu olhei-o. A cara manteve-se-lhe inexpressiva. Nenhum sinal de concordância ou desacordo.
Podia cortar-lhe a dispensa de saída. Não. Preferi agarrar-lhe os ombros. Voltei-o de costas e desfechei-lhe um pontapé no…
- Agora, vais para a caserna, arranjas a barba, limpas as botas e apareces cá quando tiveres tudo em ordem.
Tudo voltou ao normal.
Quando voltei para o meu gabinete, senti-me um pouco perturbado com a atitude que tomara. Não era muito frequente. Mas acontecia, de vez em quando, com outros oficiais. Fazia parte da cultura militar.
Não deixei de dormir. O soldado tinha sido arrogante demais. Bem sabia que não estava em ordem. E ousou.
Nunca mais foi preciso repetir. Quando eu estava de oficial de dia, tudo corria às maravilhas.
O tempo passou. A recruta e a especialidade foram tiradas e chegou a hora de partir para o Ultramar. O meu Batalhão foi desmembrado. Duas Companhias destacadas para a Guiné e uma para Moçambique. Coube-me a Guiné.
Passaram-se uns largos meses. Já estava na Guiné. A minha Companhia tomava parte numa grande Operação no sul. Na região de Catió. Para além dos Comandos e de outras forças, estavam no terreno a Companhia de Bedanda e a de Cufar.
No final do dia, depois de diversos contactos com o inimigo, a minha Companhia encontrou-se com a de Bedanda, iam ambas pernoitar, no meio da bolanha, num ponto bem longe das matas onde tínhamos andado em actividade. Ambas tinham saído do RI 16 de Évora. Éramos mais ou menos conhecidos.
Entretanto há um soldado da Companhia de Bedanda que se me dirige.
- Dá licença, meu Alferes?
- Sim. Que queres?
Olhámo-nos. A cara dele não me era estranha. Ele fitou-me nos olhos com os seus. Vidrados. Calado.
- Que pretendes? - Adiantei-me. O intervalo já era demais.
- O meu Alferes não me conhece?
- Sim. Não me és estranho.
- Pois não. - Acrescentou ele.- Conhecemo-nos de Évora. - Adiantou.
- Pois é. Lembra-se do pontapé que me deu... Na Porta D’armas?
- Já me lembro. – Respondi.
Terei ficado pálido. Senti-me perturbado com a surpresa. Mas acrescentei:
- E depois?
- Depois, sabe, meu Alferes... às vezes há uma bala perdida da nossa própria tropa… não se sabe de quem… até pode ser sem querer…
Fiquei estarrecido. Não dei parte de fraco.
- É verdade. Eu sei disso. Não me digas que também és desses fracos?… Achas que é caso para tanto?...
- É tudo uma questão dum repente, na hora certa. – Respondeu lívido, a tremer.
- Oh diabo. Acalma-te. O que lá vai lá vai. É passado. Agora, sei bem que me excedi. Desculpa lá… Quando chegarmos ao quartel, vamos beber uma cerveja os dois e vamos lá esquecer. Se calhar, tu no meu lugar terias feito o mesmo. Não achas? Ou puxavas da pistola Walter e davas-me um tiro?
- Um pontapé era capaz de dar. Um tiro nunca. – Respondeu prontamente.
Fiquei mais aliviado. Foi o que eu quis ouvir.
- Então porque me estás a ameaçar, aqui? Já te pedi desculpa.
Fez-se um silêncio. Pareceu uma eternidade. Depois, veio a resposta.
- Pronto, meu Alferes. Isto foi só para apagar a revolta que senti em mim e me tem acompanhado desde aquela altura. Já me passou muita coisa má pela cabeça. Precisava de me confrontar com o meu Alferes. A ver como reagia. Reagiu bem. Pediu desculpa. Por mim, fica tudo esquecido. Pode crer. Agora, já sou capaz de dar a minha vida para o socorrer...como a outro camarada qualquer.
- Posso retirar-me?
- Dá cá um aperto de mão. Quando nos encontrarmos, em Catió ou em Bissau, seja lá onde for, temos de brindar com uma bem fresquinha. Okey?
- Okey!
Escusado será dizer que naquela longa noite eu não preguei olho, de guarda a mim mesmo.
Foi uma boa lição… para o resto da vida… Até hoje.
Aveiro, 3 de Agosto de 2009
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Notas dos editores:
(*) O nosso amigo e camarada Mendes Gomes, jurista reformado da Caixa Geral de Depósitos, foi Alf Mil da CCAÇ 728. Sobre a História desta unidade, vd. os seguintes posts:
5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
Vd. último poste da série de 24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5002: O segredo de... (7): Amílcar Ventura: Ajudei o PAIGC por razões políticas e humanitárias