O meu Natal de 1966
Em 1966 passei o Natal em Mansabá, em ambiente muito diferente do do Natal de 1965 em Bissorã*, quer militar quer civilmente. Bissorã era uma vila e Mansabá uma aldeia. E quanto à vida militar, esta era agora muito mais dura e espartana no dia a dia passado na povoação, já que na actividade operacional poucas diferenças haveria quanto ao perigo e aos esforços desenvolvidos.
Então vamos lá à “reportagem” do meu Natal em Mansabá, usando o que ainda retenho na memória e algumas fotos:
Para mim a festa natalícia começou com um pequeno lanche tendo por base um bolo-rei que a minha querida e sempre prestável namorada tinha enviado de Lisboa. “O bolinho serviu para mais umas libações, para reavivar o ambiente, para identificar melhor o dia. Fomos 14 a manducá-lo. Parece-me que até houve uma fotografia. Se ela aparecer enviar-ta-ei.”- assim lhe respondi agradecendo a bela gentileza. A foto, se existiu, nunca me apareceu.
Não sei de outras festas de Natal no aquartelamento, devem ter existido, por isso vou só relatar a minha, passada na messe de sargentos. As “festividades” começaram ao jantar. Depois de bem “regados e comidos” seguiu-se a devida confraternização sempre acompanhada de líquidos mais ou menos alcoólicos, mais que menos (vd. foto 1). Num dos topos da sala montou-se um palco, alinhando várias mesas de refeição, onde se foram sucedendo as mais variadas atuações. Diversos “artistas” se exibiram, cantando ou dançando. Que grande exibição de dança flamenca fizemos, eu e mais dois ou três, com par “feminino” e tudo.
Foto 1
Acabada a sessão de canto e dança passou-se para a Tabanca Bar, para a “sossega”. Aqui, com o andar do tempo, as “camisas” de palha das garrafas que iam sendo esvaziadas viraram chapéus. Começou por mim essa utilização (foto 2) e não tardou ver- me a ser seguido no gesto, como se vê (foto 3):
Fotos 2 e 3
A cena começou então a ser “sacudida” com entradas inesperadas e improvisos declamatórios que chegaram a confundir os intérpretes, como se vê na foto abaixo onde três personagens parecem confusos no caminho a seguir (foto 4).
Foto 4
E o “happening” dos chapéus de palha terminou com a dita a arder em homenagem ao deus Baco (foto 5):
Foto 5
Com esta nossa atitude percebemos logo que Baco, o nosso adorado deus da “pinga”, tinha ficado tão satisfeito com a homenagem que nos incentivou a completarmos a liturgia com um refrescante banho de cerveja. Não nos fizemos rogados, como se pode ver na figura central da imagem (foto 6). Que linda figura a minha!
Foto 6
Acabada a homenagem baquiana, molhados e cansados, e alguns já bem toldados pelo “espírito” do deus romano, seguiram-se uns tempos de acalmia que foram curtos. Alguém se lembrou que, afinal, era dia de Natal e que nos estávamos alarvemente a desviar do espírito da comemoração, a do nascimento de Jesus.
Sentiu-se pairar sobre nós a voz da razão(?), ouvi a minha voz crítica interior a concordar com os possíveis ofendidos e, milagre!, inesperadamente alguém leva para a rua umas caixas de madeira e propõe fazermos uma fogueira de Natal. Dito … e mãos à obra!
As fotografias nºs 7-8-9-10 “iluminam“ o desenrolar do acontecimento:
Fotos 7; 8; 9 e 10
Definiu-se o guião a executar e que era o de, à volta da fogueira, se cantarem canções de Natal. Assim aconteceu e muitas gargantas, mais ou menos afinadas, algumas em voz gritada, soltaram com emoção as melodias que tinham aprendido na sua infância. Muitos de nós terão recordado outras fogueiras similares das suas terras longínquas e as canções que as acompanham!
-“Feliz Natal, feliz Natal … “
-“Alegrem-se os céus e a terra / cantemos com alegria / já nasceu o Deus Menino / filho da Virgem Maria” …
- “Arre burriquito / vamos a Belém / ver o Deus menino que a Senhora tem … “
-“Adeste fideles …”
e algumas outras canções ecoaram pela tabanca, vindas das gargantas de soldados desterrados num lugar de guerra quando comemoravam o nascimento de alguém que veio ao mundo pregar a paz e a fraternidade.
Como que se sentia “presente” o espírito desses lugares longínquos que, naquela altura, também poderiam estar cantando canções de Natal à volta de uma fogueira. Uma sensação de comunhão cerimonial que a distância que nos separava não impedia. Senti-me comovido.
Findos estes improvisados momentos de convívio festivo dispersámo-nos, continuando alguns pela noite dentro extravasando os seus sentimentos com atitudes mais ou menos descontroladas, algumas incompreensíveis à primeira vista. Eu, cansado e moído emocionalmente, ainda procurei mais uma cerveja e dirigi-me à sala de refeições para me sentar e descansar um pouco. A sala não tinha ninguém naquela altura e dei por mim a olhar um quadro de “presépio” fixado na parede nua. Feliz Natal, dizia a composição. Senti-me a gostar de ser fotografado junto dela. Encontrei o “fotógrafo de serviço” que ainda andava por ali (infelizmente esqueci quem era). Montado o cenário, apostei que seria capaz de me equilibrar nele. E venci a aposta, como se vê por esta foto (Foto 11) que ficou para, felizmente, me fazer recordar a noite de Natal mais emotiva da minha vida.
Foto 11
É tempo de dizer que naquela altura eu não era crente, nem hoje o sou. Mas respeito a religião seguida pelos outros e todas as religiões me interessam como área de estudo. Gosto de frequentar templos e de assistir a cerimónias religiosas, gosto de estudar a teologia e a filosofia das religiões, “adoro” música e todas as artes com incidência religiosa.
Talvez assim se compreenda o teor da notícia que deste acontecimento dei à minha namorada. Dois dias depois, ainda na ressaca física e psíquica do que me tinha acontecido na noite de Natal, as emoções que então senti estavam a diluir-se; talvez porque não assentassem em fé religiosa mas na força do espírito amigo, solidário e comunitário daquele grupo de camaradas, força que então se manifestou a propósito de uma data de cariz religioso. Ou então a visão global do acontecido naqueles dois dias tenha feito arrefecer as referidas emoções e, por isso mesmo, me tenha trazido alguma desilusão:
“A noite de Natal cá se passou. Uma barulheira infernal, bebedeiras a torto e a direito, noite em branco, choros, convulsões, maluqueiras, gritos histéricos, socos, cabeças partidas, mesas, copos, cadeiras a quem aconteceu o mesmo.
Bem, isto não foi Natal. Foi Carnaval e do bom. Alegria falsa, no entanto. Se na noite de 24 para 25 ainda alinhei na coisa, ontem já não o consegui fazer. Era de mais. A alma estava tão triste!... E continua".
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Notas finais sobre as imagens das fotos:
- Os militares das imagens pertenciam, na sua quase totalidade, ao BCaç 1857 (CCS, CCaç 1419, CCaç 1421).
- Apesar de reconhecer a maioria dos fotografados, optei por não os identificar, seja porque receio trocar os nomes de alguns seja porque de outros nem sequer tenho ideia do seu nome.
- Por fim chamo a atenção para a figura de um soldado que prestava serviço no bar. Aparece nas fotos nºs 6 (2º à esquerda), 8 (primeiro plano, à direita), 9 (1º à esquerda), 10 (à entrada da porta). Sem expressão, sem um sorriso, parece totalmente alheio ao que se passa, apesar de ser patente a sua curiosidade pelo que está a ver! Impressionante.
Para todos os meus camaradas da Guiné e restantes leitores deste blogue, umas Festas Felizes
Manuel Joaquim
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10839: Conto de Natal (9): O meu Natal de 1965 em Bissorã (Manuel Joaquim)
Vd. último poste da série de 22 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10842: Conto de Natal (11): O Neurónio do Natal (Jorge Cabral)