1. Quinquagésimo sexto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:
DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 56
O mês era Abril, e alguns diziam:
- A Páscoa, está à porta!.
Para o Cifra, tanto fazia ser Páscoa como Natal, os dias
eram iguais, andava por ali, fumava os seus cigarros, umas vezes
normais, outras vezes “especiais”, quase sempre trazia nas mãos
uma garrafita de “coca-cola”, cheia de álcool, alguma água e um
pouco de vinho ou café para lhe dar a cor, parecendo coca-cola,
não aparecia à hora do comer e depois roubava pão e vinho, e
quando havia oportunidade, álcool ao Pastilhas, metia conversa
com este e com aquele, mas o final da conversa era sempre,
“tirem-me daqui”. O Curvas, alto e refilão, já não se podia
aturar, tinha sempre razão, os outros é que estavam todos
errados, mas nesse dia reparou numa coisa diferente.
O Curvas, alto e refilão, andava em cima de uma bicicleta,
muito velha, mesmo velha, sem pneus, com os aros tortos a fazer
barulho no chão, de vez em quando desiquilibrava-se, quase que
caía, colocava os pés no chão e gritava palavras obscenas,
bicicleta esta, que possivelmente roubou a algum miúdo natural
da aldeia com as tais casas cobertas de colmo, que ficava
próximo do aquartelamento, trazia vestido uns calções rotos, em
que o forro dos
bolsos já tinha
desaparecido há muito
tempo, nos pés trazia
os restos de umas
botas de pano e
borracha que tinham
sido novas há vinte e
dois meses atrás,
amarradas com um fio,
a servir de atacadores,
somente nos dois
últimos buracos do
resto das referidas
botas.
A medalha cruz
de guerra andava
pendurada na frente
do resto da camisa
suja, que tinha sido
amarela quando as botas que trazia nos pés eram novas, medalha
esta que balançava com o movimento do seu corpo. Guiava só com
uma mão, pois a outra trazia o maço de cigarros “três vintes” e
o isqueiro que o Movimento Nacional Feminino lhe tinha
oferecido, por indicação do Cifra, não que ele o tivesse
pedido, isqueiro esse que funcionava a gasolina ou a álcool,
que ele roubava da enfermaria quando apanhava o “Pastilhas”
desprevenido, pois o “Pastilhas” quando o via próximo, escondia
o frasco do álcool. Quando isso acontecia, usava gasolina e
deitava um cheiro que alguns diziam:
- Cheira a gasolina, anda por aí o Curvas, alto e refilão.
Andava na bicicleta, não conseguia rolar pois mais que uns
escassos metros, voltava a desiquilibrar-se, quase que caía de
novo, e então dizia com a voz um pouco alta e algo excitado:
- Fujam, fujam caral..! Que esta merda, ainda vai cair!
O Cifra olhou
para ele e sentou-se
em cima de uns
restos de um barril
de vinho vazio, que
por ali andava a já
não sabia há quanto
tempo, tapou a cara
com a mão, em sinal
de desespero, pois
estava nesse
momento a pensar na
sua aldeia do vale
do Ninho d’Águia,
passado uns
momentos, tira a
mão da cara, e
olhou para o
tampão, que também era redondo, e pensou para si:
- Isto é muita coincidência.
Olhou para o seu relógio de pulso, que também é redondo, e
rondava por volta das seis horas da tarde, o Curvas, alto e
refilão, rodava na bicicleta velha, com as rodas tortas, a
pequena bolanha, ou seja pântano, que existe ao fundo do
aquartelamento, também é redonda na sua superfície, pássaros de
diversas cores, voavam e rodavam em redor uns dos outros, na tal
pequena árvore florida, de que já se falou, no princípio desta
série de textos e que existe junto da bolanha.
Verificando melhor, lá ao fundo, vem um bando de patos
rodeando a bolanha, o furriel miliciano vai a passar por ali,
com um cigarro feito à mão na boca, leva a sua G-3 ao ombro, que
acabou de limpar, no cabanal, era assim que se chamava ao
local onde os militares de acção limpavam e oleavam as armas,
que era um lugar que alguém se lembrou de fazer, com quatro
estacas de troncos redondos de palmeiras, cobertas com três
folhas de zinco, já com alguma ferrugem que andavam por ali,
depois alguém
para lá levou
uns barris de
vinho vazios,
também
redondos, que
serviam de
mesas, e lá
começaram a
limpar as
armas,
passando a
chamar-se, “o
cabanal da
limpeza de armas”. O dito furriel, com uma habilidade espantosa,
talvez sobre influência do cigarro feito à mão, dá um tiro
certeiro num dos patos, talvez para experimentar a arma, que
rodou sobre si, morto por uma redonda bala, saída de um redondo
cano, o resto do bando dos patos continuou a rodear a
bolanha, mas fugindo, na procura de novos rumos.
O Cifra, pensou para si:
- Estou a ficar maluco, é tudo redondo, por favor tirem-me
daqui!
Olhou melhor para o barril vazio, e os aros também
eram redondos, o buraco no meio, também era redondo, assim como
a rolha, e ficou a pensar que o pato que o furriel miliciano
matou, sem tirar o cigarro, feito à mão, da boca, cigarro esse
que apesar de encurrilhado, na mente do Cifra também lhe parecia
redondo, e pensou que o pato morto com o tiro certeiro, não
rodará mais, mas fará rodar os membros de quem o comer, e de
repente, põe de novo a mão na cara, fica por segundos a pensar
e lhe volta à ideia a sua aldeia do vale do Ninho
d’Águia e quando era criança também formavam uma roda em redor
uns dos outros, esperando que o futuro os rodeasse com os seus
caprichos, e quem sabe se foi graças à roda que se inventou a
bola de futebol, e por
falar em bola, lá ao
fundo vem o Trinta e
Seis, que é baixo e
forte na estatura, e
que no pensamento do
Cifra, não vem a
caminhar, vem a
rebolar, pois também
parece redondo como uma
bola.
Era demais, tinha
que ir ver o
“Pastilhas”, o tal cabo
enfermeiro, pois já
estava a ficar tonto, e
por cima não tinha
fumado nenhum
“especial”, e a pensar em tudo isto, levantou a cabeça e reparou
lá ao longe que o sol, também redondo, se estava a querer
esconder para dar lugar à lua, que nesta altura, também é
redonda.
Levantou-se, sacudiu a cabeça e começou a correr ao lado do
Curvas, alto refilão, tentando também empurrar a bicicleta, ao
que ele resistiu, com os seus insultos habituais, dizendo:
- Fora daqui, caral..!. Isto é a minha bicicleta!
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 2 de Março de 2013 >
Guiné 63/74 - P11180: Do Ninho D'Águia até África (55): O fim aproximava-se, mas havia desespero (Tony Borié)