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Guiné > Região de Quínara > Tite > Julho de 1965 > Uma DO27 (Dornier) na pista de reabastecimento.
Fotos do álbum do nosso camarada, grã-tabanquerio da primeira hora, de Santos Oliveira, ex-2.º sgrt mil armas pesadas inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66). Esteve em Tite ao tempo do BCAÇ 1860 (Tite, abril de 1965/abril de 1967)
Fotos (e legendas): © Santos Oliveira (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
O Zé Teixeira, em 2008, em Iemberém, com população local. Foto de Luís Graça (2008) |
1. Preâmbulo
Todos nós, os que passamos pela guerra (e em particular pelo TO da Guiné), temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vividas (, "com sangue, suor e lágrimas"...) num ambiente hostil e agressivo, próprio dos confrontos militares . É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou.
É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças, às vezes pormenores que nos escaparam ou a que não demos atenção. Foram situações (ataques, flagelações, emboscadas, explosões de minas e armadilhas, etc.) vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação, é capaz de "ver" e "narrar" os acontecimentos de outra maneira... O local e ângulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afeta a informação registada na memória (e depois a narrativa, a reconstituição, o depouimento...).
Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite, de 22 para 23 de janeiro de 1963, data (polémica) do in´´iio "oficial" da guerra colonial (ou de "libertação", para os nacionalistas). Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes da "narrativa" daqueles que, na altura, defendiam a bandeira verde e rubra. Pontos de vista diferentes, mas tespeitáveis, já que tal como a moeda, a "verdade" tem um verso e um reverso. São estes conjuntos de ponto de vista, diferentes entre si, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.
Estranhamente pouco ou nada se tem escrito, oficialmente, sobre este acontecimento tão marcante, (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.
Na parte da entrevista que se segue, o entrevistado assume que o ataque a Tite foi uma aventura, a qual serviu de alerta para as tropas portuguesas. Na realidade, podia ter sido uma grande catástrofe para os guineenses envolvidos pela sua ingenuidade de fazer avançar cerca de 150 africanos (!) – diz ele – com reduzido armamento e nenhuma formação nem prática de combate, contra uma instituição militar devidamente apetrechada e homens bem trenados no manuseamento de armas. Valeu-lhes o ato de surpresa e creio mesmo que a população local envolvida fugiu a sete pés, mal se iniciou o tiroteio.
Com este "ato de loucura", o PAIGC terá ganhado mais alguns aderentes e talvez notícias de primeira página nos jornais, por esse mundo fora, vacinado contra o colonialismo via URSS e EUA, as grandes potências em conflito latente, empenhadas em “abocanhar” a África e a afirmar a sua hegemonia geopolítica,,,. Claro que foi um ato que deu “gás” aos militantes do PAIGC, fazendo sentir que era possível lutar contra os "tugas" (sic), de "armas na mão", bastante para isso terem armas, pois que vontade não lhes faltava.
Mas, como acontecimento de guerra, o ataque a Tite não passou de um fracasso, para ambos os lados da barricada. Desgraçadamente, foi o início de uma escalada que só parou 11 anos depois... e que nos envolveu a todos.
A três anos de morrer, Arafam Mané faz também o balanço de uma vida: "filho de camponês", com passagem pela escola do maoismo, e tendo conhecido as misérias e as grandezas da luta de libertação nacional, da independência, do exercício da governação e das lutas fratricidas no seio do PAIGC, Arafam Mané termina a entrevista em tom "politicamente correto", mas nem por isso menos "coerente" e "humano" e até com uma ponta de "amargura":
Isso para mim, é um grande orgulho. Vejo que, de facto fiz algo de importante para este país a Guiné-Bissau. Mesmo, se morrer hoje não ficarei arrependido. Cada um de nós conhece bem o que é a vida de um camponês. O filho do camponês é sempre condenado na sociedade dos intelectuais mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo. Somente nos países socialistas é que vimos que o filho do camponês tem valor. Eis as recordações palpáveis que tenho sobre o ataque de Tite.
Em todo o caso, convirá dizer que esta versão dos acontecimentos de 23 de janeiro de 1963 não é consensual entre os próprios protagonistas (***)... Como sói dizer-se, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto... Por exemplo, não fica esclarecido quem é que "comandou" a operação, se fosse o Malam Sanhá ou so seu adjunto, o Arafam Mané...Como os dois já morreram, nunca mais irão esclarecer esta minha pequena dúvida...
II. Sinopse da entrevista – Parte Final
Arafam Mané com uma "costureirinha", c. 1963. Foto do Arquivo Amílcar Cabral / Casa Counm. Com a devida vénia...... |
No texto anterior o entrevistado dizia, continuando a responder à pergunta, " Mas como é que conseguiram penetrar facilmente no interior do quartel?"
“A nossa missão podia ter maior sucesso se um dos nossos companheiros não tivesse falhado no cumprimento da ordem. Não obstante tudo, a operação planeada para esse dia não podia ser adiada custe o que custasse. Considero que o acto foi uma aventura que serviu de alerta para os tugas; porque queríamos que soubessem que voltamos com força para a zona. Foi uma guerra psicológica porque, na realidade, nós não tínhamos uma força palpável. Mas essa acção desorientou as tropas coloniais que a partir daquele momento receavam sair do quartel para fazer patrulhas.”
E continuava:
"No entretanto, após esta corajosa operação, mais de 300 jovens voluntários aderiram ao movimento de guerrilheiros para, do nosso lado, lutar contra os colonialistas portugueses. Não havia armas nem tão pouco baionetas mas esta realidade não desanimou os jovens cujo número de aderentes crescia constantemente na minha barraca [acampamento temporário]."
Publicamos a seguir a resposta de Arafam Mané às duas questões finais.
III. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte IV ( e última)
Esta entrevista foi concedida em 2001 ao jornal “O Defensor”, órgão, de periodicidade mensal, das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissau, no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional, entrevista essa reproduzida no sítio das FARP, em novembro de 2015.
Excertos transcritos com a devida vénia.(A entrevista completa pode ser lida aqui. no sítio das FARP, Guiné-Bissau.)
(Continuação)
O Defensor – Coronel, o que pensa que poderia acontecer durante a operação
se o vosso comando inexperiente
tivesse armas de fogo suficientes?
Malan Sanhá, c. 1963. Foto do Arquivo Amílcar Canral / Casa Comum Com a devida vénia... |
Se não fosse a falta de experiência, teríamos ocupado Tite naquele dia, porque as tropas coloniais, surpreendidas pela operação, tinham já fugido. Do nosso lado, a única baixa do assalto foi o meu guarda costa Wagna Bomba, natural de Gambala, que sucumbiu atingido por balas do inimigo. Do lado do inimigo, não posso avançar um número preciso de vítimas mas deve ter sido considerável, porque o camarada Malam Sanhá conseguiu lançar uma granada dentro da caserna onde dormiam soldados. Foi um sucesso, camarada jornalista.
Portanto, depois da operação em Tite, os ataques da guerrilha se multiplicaram, alastrando-se para os diferentes pontos do sul.
A notícia sobre o início da luta armada contra os colonialistas portugueses, como já disse anteriormente, foi tornada pública por Amílcar Cabral em Londres (Inglaterra), numa Conferencia de Imprensa. Em África, a notícia foi imediatamente publicitada pelas Rádios de Conacri, Rádio Nacional do Senegal e mais tarde pela “Rádio Libertação” do PAIGC.
A divulgação dessa notícia nos órgãos de comunicação social levantou o moral no seio dos camaradas e a vontade de lutar fortemente para libertar o nosso povo. Enquanto para os "tugas", a divulgação da notícia constituiu uma dor de cabeça.
O Defensor - Mas no fundo
qual foi a reacção de Amílcar Cabral
logo que foi informado do ataque
contra o quartel de Tite?
Coronel ADM - Foi positiva. Fui logo promovido ao posto de Comandante Regional. E, antes da minha ida para a República Popular da China, que ocorreu em Abril de 1963, consegui mobilizar um número considerável de camaradas para a luta. Tive inclusive contactos com Bissau na pessoa de Rafael Barbosa que na altura era grande membro do Comité Central do PAIGC.
FACTOS HISTÓRICOS INESQUECÍVEIS
São recordações de encorajamento, isso porque depois da operação as nossas populações chegaram a conclusão de que, afinal, nós naquela altura não podíamos fazer nada porque não tínhamos armas. Reconheceram, por outro lado, que nós podíamos ser bons soldados se tivéssemos armamento. Depois dessa acção, passamos a receber géneros da população e recebemos também medicamentos.
Houve igualmente o congresso de Cassacá que deu o acento tónico que a população esperava do grande partido. O congresso permitiu acabar com as barbaridades praticadas por alguns camaradas, reorganizar a nossa luta armada, entre outros. O povo voltou a ganhar a confiança no partido, nos seus dirigentes e no destino da Luta de Libertação Nacional.
Mas a maior satisfação que tenho é, precisamente, o facto de ver hoje os camaradas que ontem eram camponeses analfabetos que tinham como vestuários “lopé” (tanga), panos rodeados no corpo com os pés descalços, tornarem-se agora grandes oficiais das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), outros são Engenheiros, Aviadores (Pilotos), Médicos, Deputados, Condutores, pilotos de barcos...
Isso para mim, é um grande orgulho. Vejo que, de facto fiz algo de importante para este país a Guiné-Bissau. Mesmo, se morrer hoje não ficarei arrependido. Cada um de nós conhece bem o que é a vida de um camponês. O filho do camponês é sempre condenado na sociedade dos intelectuais mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo. Somente nos países socialistas é que vimos que o filho do camponês tem valor. Eis as recordações palpáveis que tenho sobre o ataque de Tite.
IV. Comentário final
Vejo nesta entrevista um documento histórico de relevante interesse, pois acaba por desmistifica um acontecimento propalado aos quatro ventos como um verdadeiro ato de guerra, heróico e grandiloquente... Afinal não passou de uma "aventura", uma ação, tosca, que escapou à própria direção política do PAIGC, quase sem consequências imediatas, a não ser a de alertar as tropas portuguesas...
Em todo caso, e usando a terminologia dos historiadores da guerra colonial Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, mal ou bem o "ataque a Tite" marca o fim da "fase pré-insurreccional e de doutrinação políticia (in; Afonso, A, e Matos Gomes, C. - Guerra colonial; Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d, p. 421),
O PAIGC estava em fase de mentalização e mobilização das populações, e de organização das suas estruturas enquanto a tropa portuguesa ainda “dormia na forma”. Por outro lado, está bem patente o medo que os militares portugueses impunham sobre as populações através de atos violentos na tentativa de travar o avanço do movimento independentista.
Hesitei em por o texto no nosso blogue, com receio de que iria abrir "velhas feridas mal curadas". Por outro lado o seu valor histórico impunha que fosse dado a público, mas para meu sossego passou incólume, sem o mais pequeno contraditório, o que me preocupa, confesso.
[Introdução, seleção, notas, incluindo parênteses retos, revisão e fixação de texto: Zé Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf]
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Notas do editor:
(*) Postes anteriores da série:
(*) Postes anteriores da série:
8 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16812: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte II (José Teixeira)
11 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16823: O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte III (José Teixeira)
(**) Vd. portal noticioso > Guiné-Bissau > 24/1/2013 >23 de janeiro, dia de início da luta armada de libertação nacional, celebrado no país
(...) Bissau (Rádio Bombolom-FM, 23 de Janeiro de 2013) – A Guiné Bissau marcou ontem, quarta-feira, cinquenta anos do início da luta armada de libertação nacional a 23 de janeiro de 1963 no quartel de Tite, região de Quínara, no sul da capital, Bissau.
Em homenagem a esse acontecimento histórico do país, o Estado-Maior General das Forças Armadas, através da Divisão para os Assuntos Cívicos e Sociais e Relações Públicas, promoveu uma palestra subordinada “Início da Luta Armada pela Independência da Guiné e Cabo Verde”.
Um dos participantes nesse primeiro ataque com armas de fogo contra um reduto militar português na então Província Ultramarina da Guiné, Daúda Bangura (Comissário Político), lembra ainda dos nomes de heróis que haviam constitudo o grupo de assalto, entre eles, Arafam Mané (na altura Adjunto de Comandante), Malam Sanhã (na altura Comandante Geral da Operação) e Tchambu Mané, que era Comandante de Grupo.
Apesar de o assalto ter sido de surpresa para as tropas portuguesas, Daúda Bangura lembra que na operação, o grupo sofreu duas baixas, nas pessoas dos guerrilheiros NFamará Dabó e Malam Dabó. (...)