por Luís Graça
1. Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o nome.
Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite (. Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e , onde se bebia uísque marado, e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, pintadas de verniz vermelho horroso como os felinos. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.
O raio da espelunca de Bissau tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi, “Em tua casa” … Convidativo ao voyeurismo: entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa, não importa que seja a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa…
Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de pesos, que não viam há meses um pedaço de chicha (leia-se: carne de fêmea, branca, “comestível”…), o Chez Toi devia ter um especial encanto que tu nunca conseguiste descortinar…
Enfim, trazia-te a ti, e aos demais machos solitários, tugas, que vaguegavam por Bissau, algumas vagas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa e Porto, que o resto era paisagem, no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato, tão triste, tão desolador, tão deprimente, tão pequeno…
Uma deusa chamada Sophia tinha, em 1962, descrito no seu “Livro Sexto” esse país liliputiano, onde quem mandava era um velho abutre: “O velho abutre é sábio e alisa as suas penas, / A podridão lhe agrada e os seus discursos / Têm o condão de tornar as almas mais pequenas.”
Já não sabes como lá foste parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Indicação do turismo local, enfim, não te recordas. Mas para o caso não interessa. Andavas desenfiado, há uns dias, em Bissau, antecipando o gozo do início da licença de férias na Metrópole. Tu e outro gajo da tua companhia. Aguardavam o avião da TAP para Lisboa. Tinham vindo com alguma antecedência, de noite, no "barco turra", rio Geba abaixo...
Sim, era assim que se dizia: o gozo da licença de férias!... Eram as primeiras férias pagas da tua vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Fazias questão de dizer que não tiveste problemas de consciência nem devolveste, à Pátria, o dinheiro, sujo, de “mercenário”, saudação a que tiveste direito à chegada, num dos primeiros grafitos que te lembras de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa: “Não sejas otário, muito menos mercenário; isto vai mal, diz não à guerra colonial”).
Otário, mercenário ?!...Confessaste depois que te sentiste mal. Insultado, mesmo com as tuas reservas em relação à puta da guerra em que estavas metido. Sentiste que era um insulto a quem, como tu e os teus soldados, cumpriam, longe de casa, uma missão em nome da Pátria, a qual estava acima de todos os regimes... Santa ingenuidade!
Estava-se em plena época das chuvas, talvez julho de 1970, já não te recordas bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E tu deixavas para trás um ano de intensa atividade operacional. Nessa noite foste dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, arranhava o francês de praia ou pelo menos usava expressões coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris que tu nunca viveras.) Mas o bas fond em Bissau era, para a tropa-macaca,... o mal afamado Pilão.
2. Abra-se aqui um parênteses, para explicar que tu tinhas feito uma aposta, tu e o teu parceiro do Chez Toi, coisas de machos solitários, bravatas, que fazem parte dos ritos de passagem: ir dormir uma noite ao Pilão, antes de embarcar no avião da TAP; o primeiro a “desemparar a loja" e a "cavar", pagava o almoço no Pelicano no dia seguinte. Era um teste de resistência, de virilidade e de coragem física...Pobres diabos!...
Ficaram os dois numa espécie de "casa da mariquinhas” lá do sítio, e cada um foi com a sua “bajuda cabo-verdiana”, os quartos lado a lado, e com a "saída de emergência" por ali perto, mentalmente assinalada, para o que desse e viesse... Trajavam à civil e andavam... desarmados.
Às duas da noite, tu levantaste-te, vestiste as calças, deixaste a nota de 100 pesos que havias combinada com a rapariga, em cima do caixote que servia de mesinha de cabeceira, e saieste... A atmosfera era sufocante, o telhado era de zinco, e não aguentaste o choro de uma criança que dormia debaixo da cama, ao lado do balde do mijo, e em quem tu nem sequer tinhas reparado quando entraste, às escuras…
Bateste à porta do outro quarto onde estava o teu parceiro, três toques secos, com os nós dos dedos, como combinado, e, passada meia hora, regressavam os dois, ao Chez Toi, meio almareados (o termo era do teu companheiro de viagem , oriundo do litoral alentejano) e bêbados de sono.
3. Logo por azar nessa noite alguém arrombara a porta do teu quarto no Chez Toi, forçara o cadeado da mala de cartão e fanara-te uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, Old Parr e Dimple, eram toda a riqueza que tu levarias a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionavas comprar no Taufik Saad.
Foste de imediato falar com o gordo do gerente do Chez Toi, que estava a aviar copos aos balcão. A conversa tornou-se logo desagradável: sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa, o gerente começou por pôr em dúvida a tua versão. Mas acabou por aceitar ir averiguar o sucedido, face aos veementes protestos, teus e do teu parceiro de aventuras...
As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, de etnia papel, de Biombe, que fazia o serviço de quartos. Ali não havia criadas, só criados, como no resto de África.
Gerou-se algum burburinho. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque na mão, juntaram-se a ti e ao teu solidário parceiro do Pilão.
O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.
O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.
TRu e o sabujo do gerente já tinham chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque, que andava a servir às mesas, suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum álibi. Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de insultos racistas:
- Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... E anda aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...
O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, seguramente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que tu, mas mais entroncado. Estava visivelmente embriagado.
Tiveste então a infeliz ideia de o tentar acalmar, respondendo à sua provocação:
- Ó amigo. vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com os meus camaradas que arriscam todos os dias a vida…
O tipo não te deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça, de garras afiadas, direitinhas à tua carótide… Foi a primeira (e única) cena de porrada, de luta corpo a corpo, em que tu te viste envolvido no teatro de operações da Guiné… De facto, nunca tinhas sentido o inimigo tão perto, olhos nos olhos…Foram os dois ao chão, mas os gajos do conjunto (caixa e guitarra elétrica) continuaram a tocar, no meio da algazarra…
Providencialmente foi nessa altura que “ele” apareceu, fardado... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-te daquela situação de embaraço, apuro e aflição.
Escusado será dizer que o teu agressor também era militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar prontamente até ao cais apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a ramona… Quando te deste conta eram já três ou quatro da madrugada…
4. “Ele”, o teu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que "o teu conhecido de Tavira", com quem de resto tu ainda tinha umas velhas contas por saldar…
Resumidamente, aqui a vai a tua versão dessa história que te estava atravessada e que remontava ao quarto trimestre de 1968, em Tavira.
Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da instrução da malta, levaste dele uns socos valentes nos queixos. Tu tinhas adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto nem a aleijar nem a ser aleijado… Esperavas, com a tua ingenuidade e boa-fé, que o teu parceiro, com mais cabedal do que tu, 12 cm mais alto do que tu, entrasse no jogo do faz-de-conta… Como muitos dos instruendos do CISMI faziam. Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. Estava obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos cinco melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar, como era o seu sonho…
Ficaste-lhe com um pó dos diabos!... Ainda hoje te doem os queixos da “porrada” que apanhaste, segundo confidenciaste… Não tinhas, pois, grandes razões para te lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabaste por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as vossas duas companhias para a Guiné. Trocarm um olá, meio comprometidos, já tínhamos passado as Canárias.
– O que lá vai, lá vai. Boa sorte! – foram as únicas palavras de despedida que vocês disseram um ao outro, nos Adidos, em Bissau.
5. Voltaste a reencontrá-lo muito mais tarde, depois dessa noite no Chez Toi, em que fizeram as pazes. Iam de férias, ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem precocemente envelhecido, solitário e amargurado, que estava a lidar mal com a reforma e os fantasma do passado:
5. Voltaste a reencontrá-lo muito mais tarde, depois dessa noite no Chez Toi, em que fizeram as pazes. Iam de férias, ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem precocemente envelhecido, solitário e amargurado, que estava a lidar mal com a reforma e os fantasma do passado:
“Não acreditas, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não consegui, aliás ainda não consigo…
“Sem surpresa, vejo agora que afinal toda a malta tinha o seu… diário secreto. Num dos últimos almoços da nossa companhia, tínhamos combinado levar papéis da Guiné e houve vários camaradas que trouxeram os seus diários, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… No meu caso, eram simples notas, apontamentos, esboços, rabiscos, até recortes e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida das tabancas por onde andei… Uma forma de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo.
“Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las ? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...
“Sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa), tive a veleidade de retomar os meus papéis. Mas a escrita é algo de muito penoso.
“Tentei voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Faço até gala nisso. Nunca poderia fazer parte do teu blogue, de que já ouvi falar, e sobre o qual, de resto, já ouvi críticas e elogios. Não acreditas, mas não tenho mail. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros, pelos meus filhos e netos…
"Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no 'front office'. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província, até me fixar na minha terra natal (, sou daqui perto de Bragança), a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil, de especulação, corrupção e negociatas, trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…
"É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Municipal. Voltei a Bragança, sim, bom filho à casa torna. A minha mulher é professora primária e reformou-se há muito, há vinte e tal anos. A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade como Lisboa ou Porto. Lisboa, por exemplo, deprime-me. Lá sinto-me como um lobo solitário, encurralado, apanhado pelo Fojo do Lobo.
"Pois é, voltei à folha de papel A4, e ao caderno de linhas, como na 4ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de básquete, tal como fui um não menos candidato frustrado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.
"Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei, antes da tropa, com um conhecido advogado aqui da praça que, depois do 25 de abril, haveria de chegar a deputado por um dos partidos do poder. Eu fazia a biscatagem de aprendiz de solicitador. Bati muitos requerimentos em papel selado…
“Ainda te lembras do papel selado ?!... Quando o chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um 'Vou-te embrulhar em papel selado!'…
“Mas agora acabou. A minha velha máquina de datilografia está arrumada a um canto. Como eu. Foi das primeiras máquinas, portuguesas, a aparecer no mercado. Não me perguntes a marca. De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.
"Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro com as minhas memórias da Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.
“Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invetiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.
"Nasci em 1947 - como tu, suponho, somos da mesma colheita – muito longe do mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.
"Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa ? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher mais nova do régulo, que tinha muitas)… Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais, e em que fui educado na catequese e no seminário. Tive uma educação cristã, como tu, como toda a gente. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí).
“Matei, não matei ?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. Na realidade, matei, na guerra; não sei das balas que disparei; a matar, de certeza, foi apenas por razões humanitárias....Matei para abreviar o sofrimento de homens feridos de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.
'Medo ?', perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, muitas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné.
"Como sabes, fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo à Foz do Corubal, na margem esquerda… Ainda era periquito e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanhas da companhia, meias-lecas.
"Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lado de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta, mais ou menos da minha estatura, estava por um fio… Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava à beira de um ataque de nervos, e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o turra ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu, nem sequer o sacana o alferes 'ranger'.
"Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão, o 1º pelotão, olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. Ainda periquitos, com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.
"Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista como eu, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos abutres e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV, a DO 27, com o sacana do major de operações, nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar por sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...
"Nos olhos do balanta pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'
"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera em Fulacunda havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas bom caçador.)
"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror e compaixão...
"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz.
"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDG que nos esperava no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no leste. Durante uns dias, os olhos vidrados do balanta não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de Furriel Ca...rrasco. (Como eu gaguejava um pouco, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...
"Nos olhos do balanta pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'
"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera em Fulacunda havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas bom caçador.)
"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror e compaixão...
"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz.
"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDG que nos esperava no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no leste. Durante uns dias, os olhos vidrados do balanta não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de Furriel Ca...rrasco. (Como eu gaguejava um pouco, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...
"É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. Só vias a cara dos prisioneiros ou dos guerrilheiros abatidos junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate.
“Só mais tarde, muito mais tarde, li o conto do Miguel Torga, 'O Alma Grande', o gajo de manápulas compridas que era chamado, na aldeia, para apressar a morte dos moribundos. Chama-lhe eutanásia, se quiseres. Neste caso, ele usava o travesseiro para sufocar o moribundo. Tudo isto a pedido da família, que devia ser cristã-nova, e que queria evitar com isso que viesse o abade com os últimos sacramentos, a extrema unção…
"Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma vez ou duas vezes. Numa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro, biafada, do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da política do Spínola. E isso dei-me uma algum consolo.
"Não, nunca usei a faca de mato, se é isso que queres saber. Sempre preferi o tiro na nuca. Aconteceu apenas noutra ocasião, já para o fim da comissão. Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo 'uppercut' que te ia pondo KO... Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defender... Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti.
"Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos, nem sequer à minha mulher. Um deles até é magistrado, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de os perder... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... Hoje tratam-me pelo meu apelido Carvalho (,sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o Furriel Ca...rrasco, que era uma coisa que me irritava. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.
"Deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, transmontano como eu, o "Alma Grande", da colectânea Novos Contos da Montanha, se não me engano... De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do abafador, a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos ou terminais... E em que só se chamava o médico... para passar o atestado de óbito!”
6. Despediram-se com um grande abraço apertado, com a promessa de tu voltares, em setembro, a seu conselho, para ver e ouvir a brama dos veados no parque natural de Montesinho... Ele por lá ficou, em Bragança, tu voltaste a Lisboa. E, confessas, ficaste por um bom par de horas, ao longo da autoestrada , a A4, com um nó na garganta, não menos apertado...
Luís Graça (2019). Última revisão: 7/7/2023
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Nota do editor:
Último poste da série > 30 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19729: A galeria dos meus heróis (29): 'Disculpen las moléstias"... Ou uma história que mete vítimas e carrascos (Luís Graça)