1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Novembro de 2020:
Queridos amigos,
Estamos em 1890, aquele Ultimatum que surgiu em janeiro ajuntou uma comoção nacional, estava-se há pouco tempo a cerzir o tecido do III Império Português, a procurar dar-lhe forma, isto no meio de uma tormenta económico-financeira completamente nova, parecia que se voltara ao tempo anterior à Regeneração, os sócios fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa pareciam apóstolos iluminados pelo farol da civilização, pediam tudo ao Governo, cultuavam os nossos heróis africanos, Capelo e Ivens, Serpa Pinto, dentro em breve Caldas Xavier, Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro. Querem-se caminhos-de-ferro, inflexões no surto migratório, quem vive mal no continente europeu deve ser canalizado sobretudo para Angola e depois para Moçambique, apela-se a leis que ponham o indígena a trabalhar. Estas atas são o espelho de um admirável mundo novo onde os portugueses retomam a sua consciência colonizadora, o Oriente longínquo a poucos interessa, fazem-se fortunas nas roças de São Tomé, em Portugal insiste-se na industrialização, ela está a chegar sobretudo a Lisboa, uma parte da intelectualidade, da pequena burguesia e a massa operária aproximam-se do Partido Republicano, que quer uma mudança de regime mas que prossegue de braço dado com o sonho imperial que está a sarar a ferida do trauma brasileiro.
Um abraço do
Mário
O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (6)
Mário Beja Santos
Como é óbvio, é pedir demasiado às atas das sessões dos sócios da Sociedade de Geografia, no período correspondente aos cerca dos primeiros quinze anos de vida, que elas exprimam com meridiana clareza o que de mais vigoroso sobressaía na época quer ao nível do entusiasmo pelo ressurgimento imperial, quer pelos interesses económicos subjacentes, e até mesmo é difícil poder contabilizar as aspirações científicas exclusivamente pelas propostas apresentadas nestas reuniões. Mas que é uma ferramenta indispensável para o culto dos heróis, para o estudo da vida portuguesa neste período em que já passara a Regeneração e que emergiam alterações no xadrez político, não tínhamos dúvidas. Vimos como em 20 de janeiro de 1890 os sócios-fundadores se revelaram compungidos com a natureza do Ultimatum, e reagiram, pedindo afastamento do mundo da libra. É sintomático que nesse dia se tenham apresentado propostas para o estabelecimento de carreiras de navegação regulares entre a barra principal do Zambeze e o começo das Cachoeiras; deu-se a sugestão da abertura de estradas e permitiu-se o trânsito tão longe destas Cachoeiras; e mais se pedia ao Governo: a construção de linhas telegráficas ligando Quelimane, o Lago Niassa, Tete, Zumbo, Manica, Beira, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques; e que se mandasse proceder ao estudo das linhas férreas de penetração de Inhambane à fronteira do Transval. Uma leitura possível de tal proposta é que houvesse afastamento dos interesses exclusivamente britânicos e se privilegiasse a região Bóer.
No início de fevereiro, o rei D. Carlos recebe os Órgãos Sociais da Sociedade que protestam contra o insólito procedimento do Governo britânico. O Presidente da Sociedade expôs ao monarca o que estava a ser idealizado para a celebração do IV Centenário da Partida para a Descoberta da Índia e pediu a confirmação da Carta Régia pela qual o chefe de Estado se declarara em 1878 protetor da Sociedade de Geografia. Tudo quanto afirmasse a solidez de Moçambique era de bom augúrio, e na primeira sessão de fevereiro o presidente anunciou que a embaixada da regente de Maputo visitara a Sociedade e manifestara fidelidade à soberania portuguesa. Quatro figuras foram proclamadas sócios honorários: Joaquim José Machado (que proferira antes do Ultimatum conferências avisando para a natureza a cobiça britânica nos territórios situados entre Angola e Moçambique), António Maria Cardoso, Henrique de Carvalho e Victor Cordon. E discutiram-se direitos majestáticos para as companhias que se pudessem implantar em Moçambique, a opinião dominante foi de rejeição, entrara-se num quadro nacionalista e de profunda desconfiança dos interesses britânicos: “Deve ser rejeitada como contrária ao direito constitucional português e como politicamente inconveniente e economicamente errónea a ideia de entregar parte ou todo o território de uma província ultramarina à ocupação e exploração de uma grande companhia mercantil de todos os quaisquer direitos, privilégios ou poderes de soberania ou de jurisdição pública”.
Em junho, muito à moda da época, apresenta-se a proposta de um estudo que hoje é encarado como caricato por qualquer cientista: “Proponho que se promova um inquérito ao estado hodierno físico, moral, intelectual, industrial e artístico do povo português, comparando-o, tanto quanto possível, com o das suas épocas passadas e com o das outras nações europeias”. Pedia-se o impossível, seguramente que se andava à procura de uma base da lusitanidade, queria-se ir ao âmago de uma raça portuguesa, e num país de penúria, já sacudido por uma crise financeira sem precedentes, parecia que se queria conhecer tudo: dados antropométricos; dados sobre a natalidade, mortalidade, crescimento da população, emigração; estudo de todas as doenças, não esquecendo as nervosas e mentais, as dos órgãos de respiração e circulação, lepra, paludismo, febres tifoides e raquitismo; estudo sobre a alimentação principalmente das classes trabalhadoras; estudo tendente a determinar se a indolência, a falta de energia física, que alguns viajantes nos atribuem, é maior que a de outros povos europeus do Sul. Era um estudo de arromba, os membros da Sociedade de Geografia devem ter ficado a olhar uns para os outros e a não saber como moderar o ímpeto do proponente. Porque o estudo ia em todas as direções: pretendia determinar as nossas aptidões industriais e artísticas; até determinar se o uso ou desuso dos antigos jogos tradicionais contribuía para a conservação ou diminuição das forças físicas do povo. E queria-se apurar o estado intelectual do país, até os progressos das ciências desde o estabelecimento do regime institucional, comparado com o absolutismo, em praticamente todas as áreas: matemáticas, física e química, história natural, fisiologia e medicina, ciências sociais, ciências históricas e geográficas, ciências filológicas e filosofia. Que grande empreitada!
Suceder-se-ão propostas mais conformes ao realismo como o pedido de um estudo sobre a iluminação e balizagem no arquipélago de Cabo Verde e a homenagem prestada a Henrique Dias de Carvalho, um militar que se revelara um importante administrador colonial. O pretexto da homenagem viera da análise de um documento de Henrique Dias de Carvalho intitulado “A questão da Lunda”, seguira-se um agradecimento de comerciantes da região do Malange aos empreendimentos deste prestigiado major, e é neste papel que vem um curioso apelo colonizador:
“Uma missão que por modesta que seja, no meio da barbárie indígena, significa sempre um esforço generoso da civilização e do cristianismo para melhorar a condição social dos nossos irmãos, e, portanto, é respeitável e respeitada. Uma ocupação militar no meio do sertão, realizada por alguns soldados pretos e um cabo, só desafia o ridículo, e apresenta perante o indígena a fraqueza e a decrepitude daqueles que este julgava fortes e invencíveis. Deixemos, pois, quanto for possível as espadas nas suas bainhas e as balas nos seus cartuchos e lancemos mão do homem da cruz do missionário, e não só do missionário, da irmã educadora, do negociante e de todos os que tiveram a coragem das privações e do sacrifício”.
E com alguma regularidade constata-se que continua a insistir-se na urgência de haver caminhos-de-ferro em Angola e Moçambique. Aparece nesta sessão um texto de uma conferência sobre o Porto, o caminho-de-ferro e o distrito de Lourenço Marques onde em dado momento o Major de Engenharia António José de Araújo proferiu o seguinte:
“O indígena de Lourenço Marques conhece do europeu apenas as vantagens que ele pode proporcionar-lhe, mas recusa completamente, ou executa de má vontade, os encargos que tais vantagens exigem. O indígena deste distrito considera-se credor do dever do europeu em fazê-lo viver, reservando, porém, para si, o gozo da liberdade. O indígena de Lourenço Marques adquiriu os vícios que o convívio do homem branco lhe incutiu, mas guardou bem vivaz a noção da liberdade ociosa e selvagem que gozavam os seus antepassados. Em 1882, via eu o indígena lançar orgulhosamente fora a moeda portuguesa de cobre com que se lhe pagava um pequeno serviço que prestara. Em 1883, via eu os indígenas serviçais dos habitantes do distrito abandonarem a cidade, porque estranhos bem intencionados lhes sugeriram que uma corveta portuguesa de guerra, então surta em Lourenço Marques, pretendia obter indígenas para serviço de bordo, sendo preciso nada menos que a palavra de um governador para que o régulo do Amule fosse visitar aquela corveta, muito embora acompanhado pelos seus secretários grandes e ficando os seus súbditos esperando, armados, na praia, o seu regresso.
Em 1886 e 1887, graças à fome que assolava o distrito, tive o prazer de vê-los a fluir em abundância ao trabalho, mediante 225 reis diários, mas logo no ano seguinte os encontrei exigindo 2,3 e 4 xelins diários para salários. Como, pelas atribuições do meu cargo, eu podia de algum modo regular o custo do braço indígena, intentei lutar, mas fui vencido! E quando eu penso que estes semisselvagens, estes homens problematicamente civilizados, consomem salários superiores aos dos nossos trabalhadores europeus, bebendo álcool e sustentando até ao último requinte o gozo dos seus prazeres sensuais; quando os vejo miseravelmente cobertos, cheios de andrajos, sofismando as leis, mesmo envergonhando-nos, compreendo então que há uma grande lacuna no nosso regime colonial; que é indispensável a todo o custo criar, não só uma lei de trabalho prática, útil e sobretudo eficaz, mas ainda uma reforma judicial que habilite os magistrados a rapidamente aplicarem justiça”.
(continua)
Durante anos, era este o aspeto do vestíbulo da Sociedade de Geografia, o quadro de Veloso Salgado estava à altura dos nossos olhos
Nota do editor
Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22310: Historiografia da presença portuguesa em África (268): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (5) (Mário Beja Santos)