Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto
Mário Beja Santos
No seu incontornável livro de investigação, Salazar - Biografia Política, Publicações Dom Quixote, 2009, por Filipe Ribeiro de Menezes, o historiador atribui uma grande importância a um livro que apareceu simultaneamente em Portugal e França em 1952. Salazar acedera dar uma entrevista a uma jornalista francesa, dizia-se que bastante reputada, mas na imprensa portuguesa pouco se referiu o seu currículo. Christine Garnier, em termos atuais, é o que se chamaria uma repórter de conflitos, uma viajante incansável, muito centrada em acontecimentos africanos, nasceu no Senegal e ao Senegal dedicou muitas páginas, ainda hoje dignas de serem lidas. Gostava imenso de ir ver de perto questões turbulentas, como uma rebelião no Sara Espanhol, viajou pela Gâmbia e pela Guiné Portuguesa no final da década de 1950. O que se previa ter sido uma entrevista de horas ficou acordado ser uma longa conversa entre a jornalista e o ditador na sua casa no Vimieiro, é o pano de fundo de Férias com Salazar, a reportagem, como sublinha Filipe Ribeiro de Menezes refrescou, retocou, criou no leitor a ilusão de que aquele habilíssimo político vivia totalmente empenhado no interesse nacional, mas não hesitaria em regressar à sua terra natal, que é mostrada no documento como quase o centro da sua vida. Ao contrário do que se fez constar, Salazar ficou verdadeiramente reconhecido pelo trabalho de Garnier, bem se insinuou ter havido para ali uma paixão de homem serôdio, Marcelo Mathias, então embaixador em Paris, recebeu a incumbência do ditador em adquirir uma joia de alto valor na Place Vandôme, Mathias pareceu assombrado com o número indicado por Salazar, este não gostou que o seu embaixador duvidasse da sua palavra, a joia preciosa foi entregue à jornalista como lembrança da sua estadia no Vimieiro. E Salazar recebeu no Forte do Estoril por várias vezes Garnier, até acompanhada pelo seu segundo marido.
Christine Garnier e Salazar, um ângulo equívoco magistralmente captado por Rosa Casaco, fotógrafo e inspetor da PIDE
Talvez alguém se lembre um dia de consultar os artigos de Christine Garnier, é possível que haja surpresas. Uma delas poderá ser o seu aparecimento na Guiné Portuguesa em 1961, a pedido de Salazar, tinha havido uma incursão de manjacos residentes no Senegal que foram atacar São Domingos, flagelação de pouca monta, Garnier apareceu, levou relatório, seguiu para Dacar, prometeu que aquele documento iria ser enviado a Salazar. E poderá mesmo acontecer que os arquivos revelem outras surpresas, uma delas podia ser a ligação entre Garnier e os serviços secretos franceses, esta mulher insinuante e de belíssima escrita publicava regularmente as suas reportagens, com dados importantíssimos, muito úteis para a política externa francesa. É uma suposição. Ela escrevia em diferentes periódicos, era uma presença constante numa das revistas de índole conservadora de maior reputação em França, La Revue des Deux Mondes, é no número de 15 de janeiro de 1958 que ela publica um admirável artigo, Sumptuosos, Melancólicos Açores…
Inicia o seu trabalho em dia de procissão nas Capelas, junto dos pescadores de baleias. Descreve o colorido da festa, ruas floridas, ricas colchas nas janelas, o estralejar dos foguetes, a venda de guloseimas, mas deixando sempre a menção da pobreza daquela gente fervorosa. Passa para a História dos Açores, o seu povoamento, onde não faltam flamengos, a emigração açoriana, o deslumbramento da Ilha das Flores, a vida comunitária do Corvo, onde ninguém fechava a porta à chave, depois o Faial, o Pico, a pesca da baleia, encanta-se com Angra do Heroísmo e os seus monumentos e a tourada à corda. Estamos agora em Ponta Delgada, socorre-se de uma palavra para um estado de espírito, a mornaça, uma referência ao capacete e ao ar húmido e pesado. Regista o entusiasmo com que os açorianos se encontram e se saúdam tão efusivamente; inevitavelmente o passeio vai até às Furnas, dá-nos uma bela descrição, não esconde o seu encantamento pela beleza da paisagem, os pontos altos atormentados, as lagoas, o fundo das crateras, a doçura e a serenidade que sempre viu nos aglomerados urbanos.
E temos a pincelada final, o Senhor Santo Cristo dos Milagres, que se abriga no interior do Convento da Esperança, em Ponta Delgada. É uma visão que esmaga, aquele tronco coberto por uma capa vermelha, o semblante de sofrimento de Cristo que se ofereceu para a redenção do Homem, do lado de cá da grade há sempre gente ajoelhada a pedir-lhe devotamente ajuda. E há as festas que podem durar até sete semanas, os tapetes de flores, as iluminações. Despede-se do leitor gabando os jardins açorianos, jamais esquecerá as hortênsias e aquela cor mineral que parece pratear as pétalas. Só falta dizer-nos, no fim da reportagem, que está pronta a regressar.
Capa de um best-seller que revitalizou a imagem de Salazar, interna e externamente, na década de 1950, sete edições em catadupa
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Nota do editor
Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23343: Os nossos seres, saberes e lazeres (507): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (54): Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz - 3 (Mário Beja Santos)