1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do
BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Retratos de existências em tempos de conflito armado
O existencialismo humano
Comecemos pelo princípio do existencialismo humano, ou seja, pela existência de um qualquer ser vivo, mesmo mínimo que ele seja, numa esfera chamada Terra. Exploro, ainda que sinteticamente, que nós, indivíduos pensantes, sentimos e agimos de acordo com os momentos vividos, uma vez que esta transversal veracidade cujas linhas, embora oblíquas, se mantêm análogas ao longo das nossas vidas.
Numa visão ampla de compassivas existências, interpreta-se, filosoficamente, que na espécie humana subsistem, em certas ocasiões, sensações de pavor e ansiedade perante um mundo aparentemente absurdo que o rodeia, mas que, entretanto, se vai moldando ao longo da sua formal viagem terrena.
Esta cosmopolita e pressuposta tese filosófica, onde, por vezes, se vinculam presumíveis interrogações, eleva-nos para uma dissertação de ideias que nos transportam para o princípio da humanidade, onde o “homo erectus” foi paulatinamente transformando-se, ganhando novas formas de vida, novos pensamentos, novas estruturas físicas, envolvendo-se em lutas guerreiras, lutas que visavam superiorizar-se ante o adversário, conquistou novos terrenos, criou as suas pátrias, os seus credos, religiões e cores, bem como o seu próprio idioma, sendo nós uma consequência lógica de uma transformação humana de todo imparável.
Aliás, numa pesquisa persistente sobre a espécie humana, julga-se que ela terá cerca de 6 milhões de anos, sendo os seus primatas oriundos do noroeste de África, onde o seu habitat natural terá tido lugar numa floresta tropical. Relativamente ao termo “humano”, no contexto da evolução humana, alude-se ao género “homo”.
Após este pequeno introito, o qual se prende com o nosso crescimento, físico e intelectual, ao longo dos anos que levamos de existência, puxo a fita cinéfila atrás e revejo-me na Guiné, onde os galões amarelos e as divisas estabeleciam ordem hierárquica. E eis que, num impulso previamente controlado, reencontro-me com o inesquecível momento aquando ousei, uma tarde, dar banhos na piscina destinada aos oficiais do QG, instalações estas situadas por detrás dos nossos alojamentos alcunhados então como o “Biafra”, mas cuja piscina era também franqueada à classe de sargentos, julgo eu.
A banal filosofia de vida que na altura perfilhei, assimilava-se a uma espécie de “infiltração num trilho armadilhado”, porém, joguei com o facto de que em Nova Lamego, Gabu, não existir tal benesse, por isso a minha atrevida ida ao local foi tipo de uma enlouquecedora emboscada que surtiu efeito. Não houve “assalto à mão armada”, tão-pouco “mortos e feridos”, mas puros instantes de entretinimento.
Resumindo: todos éramos singelos militares que cumpríamos uma comissão militar obrigatória numa terra distante que nos fora literalmente imposta, uma vez que éramos, afinal, numa liturgia considerada sem fronteiras, originários de antigos guerrilheiros de um tal “homo erectus” e que o tempo transformou. Segue-se mais um pequeno texto, onde as aventuras em solo guineense proliferavam.
Ida à piscina do QG, em Bissau
O dia, como sempre, estava divinal. Sol e calor q.b. prometia uma ida a banhos para refrescar ideias de um corpo que se deparava com uma sufocante temperatura que não dava tréguas a um furriel miliciano que, ocasionalmente, se encontrava na capital. A visita a Bissau, embora curta, apresentava-se oportuna para uma escapadela à piscina dos oficiais que, por acaso, estava também franqueada à classe de sargentos.
Lembro que a piscina ficava por detrás das instalações de sargentos no Quartel General (QG). Sei que a minha presença em Bissau ficou a dever-se ao facto de me encontrar de férias e esperando pelo dia da viagem que me trouxesse, por 30 dias, à então metrópole. Tudo isto se passou nos primeiros dias do mês abril de 1974.
Não sei de quem terá partido a ideia de uma tarde a banhos em águas calmas e sobretudo refrescantes. Um camarada, certamente, propôs o desafio e a malta não rejeitou a experiência que contou para o enriquecimento factual das minhas aventuras guineenses.
A piscina, na sua estrutura física propriamente dita, continha bons espaços de lazer e de desporto. Recordo, com saudade, o campo de voleibol, por exemplo. Ressalta-me à mente os improvisados jogos entre camaradas. Os despiques exacerbados protagonizados por militares que pertenciam, quiçá, a especialidades ou a secções diferentes em horas de pleno ócio.
Anoto que esses jogos poderiam ser jogados por equipas de piriquitos organizados que casualmente por lá terão passado. Porém, a minha conceção nessa visita à piscina do QG, encaminhou-me para uma visão mais ampla, isto é, depreendi que toda aquela rapaziada, essencialmente alferes, cheiro-me a gente que se conhecia mutuamente para além de outros oficiais com patentes mais elevadas que olhavam o novo visitante como um mero intruso. Olhares enviusados, alguns de esguelha, que espelhavam reinar num trono meramente sonhado. Deixai-os em paz, senhor! Teremos, eu e o camarada que me acompanhava, comentado.
Perante a benesse não me fiz rogado e eis-me a saltar para a água da piscina. Depois veio o salto do meu camarada. Nadámos, apanhámos um pouco de sol e retirámo-nos, ficando a dúvida para os graduados superiores quem seriam os dois marmanjos que invadiram aquele espaço porventura “armadilhado” e se retiraram rumo ao “Biafra” dos sargentos!
Nas minhas memórias conservo histórias hilariantes de uma Guiné onde os contrastes de patentes militares traçavam irreverentes poderes e, simultaneamente, desusados princípios, onde a pressuposta guerra dos galões se sobrepunha, e de que maneira, ao contingente das divisas.
Mas tudo isto são narrativas passadas, porque também sei que o pessoal da cidade era portador de uma conduta diferente daquela que constatávamos no mato. Existiam, e é verdade, hierarquias militares que marcavam posições diferenciadas e quanto a isso nada a dizer, melhor, a contradizer. Era a lei do mais forte que imperava.
Recordo de uma ocasião passar por Gabu um amigo meu, tínhamos sido companheiros de futebol no Sporting, o Luís Guerreiro, era soldado, e levá-lo à messe de sargentos, sendo que a sua presença foi bem acolhida. Disse de quem se tratava e não houve o menor problema, não obstante o Luís, a princípio, duvidar da fartura que lhe coloquei à sua disposição.
Numa outra ocasião, na cidade de Bissau, encontrei um velho amigo que era da PM que fingiu não me conhecer. Pomposo, tipo mandão, tentou entrar num trilho pressupostamente desconhecido e fazendo jus à braçadeira que ostentava no braço procurou amedrontar-me com uma pergunta tipicamente baixa e sem algum nexo aparente. Se a memória não me falha o gozo da brincadeira era o crachá de Operações Especiais/Ranger colocado no meu ombro esquerdo. Respeitosamente olhei-o de frente, olhos nos olhos e disse-lhe: “primeiro bate-me a respetiva continência e depois falamos”. O rapaz viu que meteu água e a conversa enveredou por um outro tipo de palavreado.
Contrastes... o mato era mato, a cidade era a cidade!
Um
abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em: