segunda-feira, 10 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25625: Efemérides (440): 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (Excertos de "Em foco", por Ana Rita Carvalho, Jornal do Exército, nº 730, junho de 2023

(...) Comemora-se, a 10 de Junho, o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. 

A celebração da data nacional remonta a 1880, ainda na vigência da Monarquia, quando se assinalou o tricentenário da morte do poeta Luís Vaz de Camões, devendo-se à iniciativa de Teófilo Braga e de uma comissão executiva, curiosamente composta, na sua maioria, por republicanos. Foi contudo o deputado Simões Dias  quem levou ao parlamento um projeto para que o dia 10 de Junho fosse considerado o dia festivo nacional e assim viria a ser. 

A evocação do poeta maior da Língua Portuguesa e a sua identificação com o Dia de Portugal adquiriam então um grande simbolismo, pautado também por forte marca ideológica, fazendo reemergir o lado épico da História, tendo nesse contexto particular um sentido regenerador, o de recuperar um passado glorioso. E assim prevaleceria. 

A figura inigualável de Camões desde há muito se tornou um símbolo de Portugal e é quase um lugar-comum citar o Poeta nos discursos oficiais, sendo ele um referente máximo dos valores e da cultura nacionais, convertido numa espécie de brasão, uma imagem representativa de um percurso de vida que condensa a nossa História, feita de ciclos de grandeza e decadência. 

A comemoração do tricentenário da morte do Poeta, em 1880, provém de um “culto da humanidade” e de um sentido laico (herdado da Revolução Francesa), veiculado em “representações simbólicas do Estado-Nação para consensualizarem o seu poder (…) substituindo formas e funções do ritualismo religioso para construir uma nova memória nacional” (...). 

Curiosamente, estas novas formas de ritualismo de cariz civil permanecerão, durante todo o século XX e até à atualidade, atravessando regimes políticos diversos e múltiplas representações sobre Portugal. 

 Já na vigência da República, em 1929, o 10 de Junho é decretado como feriado nacional, e durante o Estado Novo foi comemorado como “Dia de Camões, de Portugal e da Raça”, sendo ainda presentes, na memória de muitos portugueses, os majestosos desfiles militares que decorriam na Praça do Comércio, em Lisboa, onde se homenageavam os combatentes em África e onde eram condecorados postumamente os militares mortos em combate. 

Depois do 25 de Abril de 1974, a data adquiriu nova designação, passando a “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”, por decreto de 4 de março de 1977, assumindo novo simbolismo, ao abarcar as comunidades portuguesas espalhadas pelos cinco continentes, numa visão universalista, tendo a uni-las a Língua Portuguesa, com que o Poeta épico imortalizou os feitos do seu singular Povo.

A identificação com as Forças Armadas prevaleceu, atravessando regimes políticos diferentes e formas de celebração também diversas. Talvez porque a História de Portugal é indissociável das suas Forças Armadas e em particular do Exército Português, desde a fundação de Portugal até um passado mais recente. 

A associação do Exército ao Dia de Portugal sublinha, assim, o caráter eminentemente nacional da Instituição Militar. E também a sua crescente modernização e internacionalização, quando se pensa nos últimos 30 anos e na projeção de Forças Nacionais Destacadas, em que o Exército tem contribuído para a construção da Paz, a estabilização de territórios massacrados pela guerra, a reconstrução de Estados falhados, destacando-se na salvaguarda da vida humana, na defesa do Direito internacional humanitário e na promoção dos valores da liberdade e da democracia. 

Por outro lado, a participação do Exército em missões de apoio à paz, de cooperação e outras tem também reforçado o estatuto de Portugal em organizações internacionais, como a ONU, a UE e a NATO, bem como junto de países amigos e aliados, no âmbito da sua política externa.  

Porém, a identificação entre o Exército e a Nação, ou os Portugueses, subliminar ou explícita, através da celebração ritualizada de efemérides como o Dia de Portugal e de Camões, o Dia dos Combatentes ou o próprio Dia do Exército, significa também a partilha de uma identidade cultural, de um modo português de ser, de estar e de se relacionar com os outros. Um modo de ser e estar que tão bem têm caraterizado a atuação dos nossos militares além-fronteiras, facilitando a sua adaptação aos teatros de operações mais diversos, a integração entre povos e culturas em tudo diferentes, contribuindo inegavelmente para o sucesso das missões em que se têm envolvido. (...)

Também neste sentido a evocação de Camões ganha atualidade, tendo ele mesmo sido militar e percorrido os marítimos caminhos atravessados pelos navegadores, heróis da sua epopeia, Os Lusíadas, isto é, os Portugueses. E, como Poeta, cantado a viagem (e dispersão de uma alma errante) e abarcado a experiência de um momento entre todos glorificado na História de Portugal, fixando os mitos e as memórias mais vincados no coletivo da História, e convertendo a memória desse tempo em escrita poética, identificando-se ele próprio com o Portugal que cantou. Os Lusíadas são, por isso, o livro identificador de Portugal e não por acaso o seu autor é o rosto de uma Pátria que fez coincidir a data nacional com a da morte do Poeta. 

A viagem e a errância personificadas na vida e obra de Camões são também metáfora da História nacional e readquirem significado neste tempo de globalização e universalidade, em que as fronteiras tradicionais se esbatem e que as alianças de países – mormente a nível da Defesa e da Segurança, corporizadas pelas suas Forças Armadas – se torna uma realidade não só necessária mas imperiosa. É que, se por um lado se assiste ao fenómeno da globalização, por outro, reemergem separatismos regionais, cisões ideológicas e políticas e o acentuar de extremismos que resultam num processo contrário de fragmentação e atomização, numa lógica paradoxal. 

Comemorar o Dia de Portugal adquire renovado sentido num tempo de globalização, em que o País cumpre uma ancestral vocação, iniciada há seis séculos, quando se lançou ao “mar sem fim” como o definiu Fernando Pessoa, permanecendo, para além da memória histórica, uma comunidade de países unidos pela nossa língua. A Língua Portuguesa, que Camões elevou à mais apurada expressão, é hoje falada nos cinco continentes por cerca de 250 milhões de pessoas, sendo, como destacou o Chefe de Estado, “a quinta língua mais falada [no] mundo, a segunda língua mais falada no hemisfério sul, e, também, no hemisfério sul a segunda mais usada no digital.” 

Através da Língua Portuguesa e, muito para além do império territorial, permanecerá um espaço cultural que une os Países de Língua Oficial Portuguesa e neles encontra traços de identidade e  de afetividade reconhecidos num falar comum. 

A lusofonia constitui hoje o horizonte global de uma nova lusitanidade, onde o passado se reúne ao presente e a cultura e identidade nacionais dialogam com outras culturas, diálogo no qual sai reforçada a identidade indefetível entre Países de Língua Oficial Portuguesa. 

Neste espaço (e tempo) da lusofonia acentua-se igualmente a ligação entre os elementos da tríade “Portugal”, “Camões” e “Comunidades Portuguesas”, a que se acrescenta um quarto elemento comum e seu elo de ligação, as “Forças Armadas”, elementos todos eles convocados na data nacional.  (...)

Fonte: Excertos de Jornal do Exército > n.º 730, junho 2023 : Em foco > Ana Rita Carvalho  >  Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, pp. 6/10.

https://assets.exercito.pt/SiteAssets/JE/Jornais/2023/jun/730.pdf

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia...)

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domingo, 9 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25624: Elementos para a História do Pel Caç Nat 51 (1966/74) - Parte III: População civil: da cerimónia do fanado ao funeral muçulmano (Armindo Batata)



Guiné > Região de Tombali > s/l  (Guileje  ? Cacine ? Catió ?   Cufar ? > c. 1969/70 > Foto nº 71 >  Tudo indica que se tratatava um grupo de "bajudas", fulas e futa-fulas (meninas, umas mais crescidas do que outras),   que acabavam a cerimónia do "fanado" (*).. Sendo do último lote das fotos do autor, é provavel que a localidade seja  Catió ou Cufar. Compare-se a opinião do Cherno Badé: "A imagem mostra um grupo de raparigas muçulmanas durante a celebração da saida do fanado. Não conheco a composição da população de Cufar, mas há uma forte probabilidade que esta imagem seja de Guileje ou Cacine". E acrescenta posteriormente: "A localidade de Cufar é a excluir e mantêm-se as outras como possíveis, com maiores probabilidades para Catió (Priame) e Guileje".


Guiné > Região de Tombali > s/l  (Guileje ? > c. 1969 >  Foto nº 41 >  Um típico comportamento dos primatas: fazendo a higiene do cabelo, catando parasitas (piolhos, pulgas e lêndeas)... O famoso "groming", descrito pelos primatólogos... Legenda do Cherno Baldé: "Meninas futa-fulas (de origens diversas, aliás como era a generalidade da população futa-fula nas áreas de Cubucaré e Quitáfine. região de Tombali), a tratar do penteado, em horas de folga".


Guiné > Região de Tombali > s/l (Guileje ?) > c. 1969 > Foto nº 38 > Foto de grupo de adolescentes . A bajuda do lado direito usa relógio de pulso e a rádio portátil, transistorizado... Acrecsenta o Cherno Baldé: "Uma familia cristã, crioula, assimilada, provavelmente, de origem cabo-verdiana ou das praças de Cacheu, Bissau, Bolama ou Geba".



Guiné > Região de Tombali > s/l  (Guileje ? > c. 1969 >  Foto nº 39 > Bajuda



Guiné > Região de Tombali > s/l  (Guileje ? > c. 1969 >  Foto nº 43 >A caminho da fonte (?), que ficava fora do perímetro de segurança do quartel e tabanca, a cerca de 3/4 km. Era o "calcanhar de Aquiles" de Guileje, como se viu por altura do "cerco" de maio de 1973.


Guiné > Região de Tombali > s/l (Catió ou Cufar > c. 1970 > Foto nº 83 > Diz o Cherno Baldé que é "um ourives juta-fula de metais finos (ouro e prata) a julgar pelos utensilios em uso, trabalhando na sua oficina".

Só conheci ourives mandingas (etnia de eram grandes artesões: em Bafatá, na zona leste, havia um famoso ourives, mandinga). (LG)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > c. 1969 > Foto s/n (1) >



Guiné > Região de Tombali > Guileje > c. 1969 >  Foto s/n (2) >


Guiné > Região de Tombali > Guileje > c. 1969 >  Foto s/n  (3)>
 
Estas três últimas fotos, não numeradas, fazem parte de uma notável sequência de um funeral muçulmano, realizado fora do perímetro do quartel e tabanca de Guileje e que o fotógrafo acompanhou (juntamente com soldados do pelotão) do princípio ao fim (**), e de que mais abaixo se apresenta uma descrição resunida.

Fotos (e legendas): © Armindo Batata / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1.  São fotos notáveis do Armindo Batata, reveladoras de uma grande sensibilidade sociocultural (que nem todos tinham,  os graduados metropolitanos, a servir em subunidades com praças do recrutamento local). 

Comandante de um subunidade militar composta por guineenses, de diversas etnias, este nosso camarada estava atento a aspetos da vida quotidiana e da cultura da população  onde  se inseria, como era o caso dos rituais de passagem como o "fanado" (feminino) ou das cerimónias fúnebres.

Acrescente-se que as fotos aqui publicadas foram objeto de edição, como é prática de resto habitual no nosso blogue: melhoria da resolução, do brilho, do contraste, do enquadranento, etc..

 2. Relativamente ao cortejo funerário e enterro muçulmano, podemos fazer aqui uma  uma breve descrição:

(i) os participantes encaminham-se para a mata; à esquerda, é visível um troço de arame farpado do aquartelamento e tabanca  [foto s/nº, (1)];  

(ii) o fotógrafo acompanhou a cerimónia desde a saída da tabanca até ao local, na mata, onde se realizou o enterro; não parece haver qualquer escolta militar;

(iii) percebe-se pelas  imagens que o morto, presumivelmente civil, do sexo masculino, é transportado numa maca (possivelmente cedida pela NT), e vem coberto com um lençol ou um pano branco;

(iv) os familiares e amigos, só homens, quer civis quer militares, descalços, fazem um círculo à volta da sepultura, e possivelmente rezam em voz alta  uma primeira oração; 

(v) inumação do cadáver, envolto em panos... e que parece ser depois encimado por uma esteira  [foto s/nº, (2)];

(vi) descida do corpo à terra.possivelmente a oração de despedida à volta da sepultura, vísível pelo montículo de terra  [foto s/nº, (3)],
 
Comentou o nosso Chero Baldé (**): 

"O Armindo Batata dá-nos nestas imagens a impressão de um observador atento ao que se passa ao redor, no obstante, escapou-lhe a parte da oração fúnebre (conjunta) que é feita na morança, antes de partir para a sua última morada onde participam todos, homens e mulheres.

"Torna-se quase impossível identificar o(a) morto(a) a partir das imagens (se é civil ou militar, homem ou mulher), mas a padiola [maca,] é militar e deve pertencer aos serviços sanitários do quartel que, neste caso substitui a função tradicional da esteira fabricada com fibras de colmo que deveria servir para enrolar e transportar o defunto ao local do enterro.

"A praxe muçulmana manda que o cemitério esteja situado fora da aldeia e a proteção da sepultura suficientemente sólida para evitar que as hienas e jagudis façam das suas.

"O funeral muçulmano caracteriza-se pela sua simplicidade, rapidez e equidade, cada uma delas com o seu lote de vantagens e inconveniências, dependendo do ponto de vista de quem observa ou analisa. Todavia, uma coisa é certa, são cada vez mais as comunidades africanas que aderem, nomeadamente na Guiné-Bissau, provavelmente para diminuir o fardo dos custos (sociais e económicos) ligados às tumultuosas e repetitivas cerimónias de culto aos mortos em tempos de crise generalizada" (...)

Posteriormente acrescentou, à foto s/n (3): "O último adeus ou a breve reza da despedida do defunto após o seu enterro".


3. Cerca de uma centena de fotos, a preto e branco, foram cedidas pelo Armindo Batata ao nosso amigo Pepito (1949-2014), integrando hoje o Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Temos cópia desse arquivo desde 2007.  

O Armindo Batata é também um dos nossos grão-tabanqueiros mais antigos. Infelizmente não temos tido, desde há uma boa dúzia de anos, notícias dele.   É formado pelo ISEL e,  a tratar-se da mesma pessoa, vive em Alpiarça, onde é autarca. 

Um alfabravo muito especial para ele, com toda a nossa gratidão e apreço eela partilha das suas memórias da Guiné .

4. Ainda para a história do Pel Caç Nat 51 (***),  refira-se:

(i) a origem do Pel Caç Nat 51 remonta a setembro de 1966, devendo ter sido extinto em meados de 1974, como as demais subunidades africanas;

(ii)   segundo informação do Henique Matos, primeiro cmdt do Pel Caç Nat 52, o seu e os Pel Caç Nat 51, 53,  54, 55 e 56 formaram-se em Bolama;  

(iii) passado um curto IAO,  
o Pel Caç Nat 51 saiu numa LDM para o Enxalé, ficando em reforço à CCAÇ 1439, independente, de madeirenses, adstrita ao BCAÇ 1888, sediado em Bambadinca;

(iv) na mesma ocasião também sairam de Bolama:  o Pel Caç Nat 53, do Alf Mil Serra, que ficou no Xime em reforço à CCAÇ 1550; o Pel Caç Nat 51, do Alf Mil Perneco, que foi para Guileje; e o Pel Caç Nat 54, do Alf Mil Marchand (que foi inicialmente para Mansabá mas passado pouco tempo também foi parar ao Enxalé.) 



Odivelas > 16 de Junho de 2007 > Encontro dos Pel Caç Nat 51, 52, 53, 54, 55 e 56> "Uma imagem do que foi possivel juntar da formação inicial dos primeiros Pelotões de Caçadores Nativos, passados 41 anos do seu início em Bolama.

(i) Pel Caç Nat 51 > Alf mil Perneco (16), fur mil Carvalho (3), fur mil  Azevedo (1) , fur mil  Castro (12), 1º  cabo Ramos(4) e 1º cabo Marques(6);

(ii) Pel Caç Nat 52 > Al mil Henrique Matos (13), fur mil Vaz (15), fur mil Altino (11), fur mil  Monteiro (10) e 1º cabo Cunha (7);

(iii) Pel Caç Nat 54 > Fur mil  Viegas (9), fur mil Costa (2), 1º cabo Januário (14) e 1º cabo Coelho (8):

(iv) Pel Caç Nat 56 > Fur mil  Delgado (5).

(v) "Para nosso desconsolo, e muito falamos nisso, não possível até agora encontrar os restantes elementos dos nossos pelotões que regressaram, porque tivemos algumas baixas, nem qualquer elemento do 53 e do 55". (****).


Foto (e legenda): © Henrique Matos (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 27 de setembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10442: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (2): Funeral fula em Guileje (ou melhor, funeral muçulmano, segundo o nosso amigo Cherno Baldé)

(****) Vd. poste de 28 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1896: Encontro dos Pel Caç Nat 51, 52, 53, 54, 55 e 56 (Henrique Matos)

Guiné 61/74 - P25623: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (21): "Na altura própria"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Na altura própria

João era agora um homem velho, em paz consigo e com o mundo. Tinha um objetivo e uma ambição, suicidar-se na altura própria. Nem antes, nem depois. Não queria morrer ao acaso. Não queria morrer na incerteza com que nasceu. A sua grande angústia residia no medo de não vir a reconhecer a altura própria. Ambicionava o momento exato, e para tal se ia preparando, criando dia a dia uma espécie de protocolo que o encaminhasse progressivamente para o momento certo.

- Este é um sítio porreiro para alguém se suicidar, na altura própria, não acham?

Mas não havia ninguém à volta para receber a pergunta. Concluiu que falava para si mesmo. É um profundo precipício, com o mar no fundo, basta engatar o carro em primeira e zás! Na altura própria.

João ainda não almoçara e, nesse dia, não lhe agradava a ideia de partir, não achava que fosse a altura própria. Além disso, não lhe apetecia ir para o outro lado com a barriga vazia.

João gostava muito de cabeça de pescada cozida com todos. Com todos é, como todos sabem, um acompanhamento variado, constituído por batatas, couves ou grelos ou feijão-verde, cenoura, cebola e ovo cozido.

- Traga-me, por favor, um galheteiro… azeite e vinagre.
- Quer um dentinho de alho?
- Com peixe não, só com bacalhau.

Ao abrir a cabeça da pescada, ele viu que o bicho tinha, entre os dentes, uma coisa estranha. Aquilo que lhe pareceu ser um dedo. Sim, um dedo, um dedo humano. Poderia ser de homem ou de mulher, talvez de homem, a avaliar pela falangeta larga, mais do tipo baqueta de tambor, mas poderia ser de mulher e estar inchado pela água. Mirou, mirou e quando não teve dúvidas de que se tratava mesmo de um dedo, vomitou ali em cima do prato, vomitou tudo, esófago, estômago, duodeno, vesícula biliar e parte do fígado. Não vomitou mais porque, entretanto, desmaiou.

Quando acordou, estava rodeado de caras, ainda mal definidas, que o olhavam de forma estranha, entre o curioso e o chateado. Anjos ou demónios? Estaria já no outro mundo?

- Sente-se bem?
- Acho que sim, desculpem, mas perdi-me. Não sei bem onde estou. Boa-tarde.

Saiu sem pagar, deixando a comida intacta e o empregado hesitante entre deixá-lo ir ou chamá-lo à atenção. Deixou-o ir em paz.

Voltou ao alto da falésia onde deixara o carro e pensou:
- Não é a altura própria. Além disso, porra! Há alternativas!

Ligou o carro, sem se lembrar que estava engatado em primeira, e já não teve tempo de escolher outra alternativa. Chegara, sem dúvida, a altura própria.

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Nota do editor

Post anterior de 2 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25595: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (20): "Uma história antiga"

Guiné 61/74 - P25622: Humor de caserna (64): O anedotário da Spinolândia (XII): o "caco" que foi parar ao caldeirão da cozinha de Guileje...



1. Esta história deliciosa, a do "caco", o monóculo  (que não era graduado, mas sim um simples "ronco")  do "homem grande" de Bissau, caído no caldeirão da cozinha de Guileje, já a conhecia do meu tempo, circulava na 5ª Rep, o Café Bento, quando passei por Bissau,  "periquito"  desembarcado do "Niassa" em 29 de maio de 1969 e logo metido em LDG até ao Xime em 2 de junho...

Anedota ou não, é contada no livro de memórias "O Silvo da Granada", do José Maria Martins da Costa, ex-1º cabo trms, do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, maio de 1968/ julho de 1970). A edição da edição da Chiado Books, 2021, meio milhar de páginas (!).

Sobre o livro o nosso crítico literário, Mário Beja Santos, chamou-lhe "uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné" , nas quatro notas de leitura que entusiástica e generosamente lhe dedicou (Postes P23121, p23131, p23139 e p23156).

Sabemos pouco sobre o autor, a não ser o que ele nos diz, na sua apresentação:

(i) natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, frequentou a escola primária, finda a qual entrou num seminário beneditino;

(ii) saiu no sétimo ano, provavelmente incompleto; 

(iii) foi chamado para a tropa, passou por Tavira e Lisboa,  e  foi mobilizado para a Guiné;

 (iv) no regresso à vida civil,  deve ter tirado "o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra" (Beja Santos interpretou mal; se ele tuvesse o 7º ano ou equivalente, ou fosse licenciado, teria ido frequentar o COM - Curso de Oficiais Milicianos);


Capa do livro, "O Silva
da Granada", de José Maria
Martins Costa, Lisboa,
Chiado Books, 2021. Gostaríamos
de ver o autor, nosso antigo
camarada de armas, a integrar 
 a Tabanca Grande.



(v) entretanto, fixara-se no Porto, onde casou, foi professor e jornalista...
 
Muito poucas são as referèncias existentes na Net a este homem e nosso camarada de arnas. De acordo com as notas do Beja Santos, nunca se chega  
a esclarecer, no livro, as razões por que o autor, tendo frequentado o CSM (Curso de Sargentos Milicianos), em Tavira, acabou por ir para a Guiné como 1º cabo  de transmissões, especialidade que tirou em Lisboa (certamente no quartel da Graça).   

Terá havido aqui, pelo meio, no CISMI, problemas disciplinares,  que explicam a  sua passagem compulsiva ao contingente geral.

Sabemos, isso, sim, é que chegou à Guiné em maio de 1968 ( tendo regressou à metrópole em julho de 1970), ou seja,  na mesma altura em que o brigadeiro António Spínola toma posse como governador e comandante-chefe. 

Foi colocado, em rendição individual, no Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1968/70).

No livro há apontamentos que são relevantes para a história do Pel Caç Nat 51, do tempo do alf mil Armindo Batata (ligeiramente mais novo, 1969/70),  e que iremos
  resumir, mais tarde. 

Para já, retivemos duas referências a Spínola, a partir dos excertos selecionados pelo Beja Santos (e que vão em negrito e itálico):

(...) Primeiro-cabo Martins já viajou para Guileje, está na fase adaptação, somos levados a supor que este homem que está profundamente impregnado pela cultura clássica, que domina o Latim e alguns dos mais cultores da língua portuguesa,  trabalha nas Transmissões. 

De supetão, arribaram três helicópteros, de um deles saiu Spínola, já percorreu o quartel, conversou com os oficiais e decidiu visitar a cozinha:

“Spínola em corpo e alma e rompeu pela cozinha sem aviso, deixando atónitos, presos aos seus lugares, cozinheiros e forneiro; e, depois das saudações e palavra de circunstância e de circunvagar um olhar indagador como a inspecionar as condições de trabalho e de higiene, avança para os fogões, mete o nariz em tachos e panelas. Eis senão quando – caso nunca visto – cai-lhe o monóculo ao panelão, onde, vaporando fortemente, fervia a cachão o feijão frade. Valeu que à ilharga, atento e venerador, estava o cabo-cozinheiro, que, ato contínuo, introduzindo por entre densos vapores a desembaraçada manápula acostumada a queimaduras e escaldões, retira incólume a luneta”.

Esta cena deve-se ter passado em meados de 1968 (talvez mesmo  logo em 26 de maio de 1968, data da primeira visita a Gandembel), porque, após a rápida passagem por  Guileje,  Spínola partiu  para aquela  aquartelamento que estava em construção há mês e meio.

Uma segunda "cena", que merece registo na nossa série "Humor de caserna", é a de uma outra visita de Spínola a Guileje, um ano depois, em meados de 1969, ao tempo da CART 2410, "Os Dráculas":

(...) E assim se chegou a abril e depois a maio 
[de 1969] , sucedem-se as flagelações, a população continua tranquilamente a sua vida monótona, não deixando de ir cultivas o seu arroz de subsistência, ao amanhecer as viaturas carregadas de bidões vão direito ao poço aberto na brenha, a uns 2 km, operação que requer severa vigilância. Spínola volta a Guileje, assim se descreve o seu regresso:

“Negros como abutres, descrevendo círculos por largo, bem à vista o cano
 saliente do canhão de bordo, os três passarões assenhoreiam-se destes ares; metem respeito e não admira que os guerrilheiros mais que tudo os temam. E, enquanto dois deles vão dando voltas, agora mais fechadas, sobre Guileje, o outro ensaia a operação delicada de vir a terra; um instante imobilizado, roda agora a ganhar posição, inclina um tudo-nada o focinho, cautamente sondando o espaço em baixo onde pousar. E já vai descendo, em volto grossos rolos de pó que revoluteiam furiosamente no ar agitado do voltear estonteante da hélice. O monstro impõe a sua presença aparatosa. Ei-lo em repouso no chão espanado pela ventaneira”.

 

O comandante de Companhia não gostou da discriminação, Spínola passou por meio da pequena multidão e deu de caras com um furriel do  [Pel Caç Nat] 67, cumprimentos efusivos.

“O nome, de todo incomum, ou talvez sobrenome, é o mesmo de uma família da alta roda lisboeta ligada à banca. Coincidência ou não, o certo é que ainda não passaram quinze dias e já o furriel foi de abalada, transferido para zona menos descoberta aos golpes da implacável guerrilha.” (...)

2. Há quem, acrítico e sisudo, não goste de ver as figuras da nossa História (e o marechal Spínola já lá está, na História com H Grande, independentemente dos nossos juízos pessoais, efémeros e transitóriso) serem objeto de anedotas ou caricaturas...  

Achamos, pelo contrário, que é quase sempre um sinal de apreço e até de homenagem: no caso de Spínola, por exemplo, enquanto governador e comandante -chefe do CTIG (1968-1973) não conhecemos anedotas sobre o seu antecessor (gen Armaldo Schulz) ou o seu sucessor (gen Bettencourt Rodrigues). E para mais andeotas que persistem na memória dos antigos combatntes,  mesmo meio século depois.

Fica aqui a nossa declaração de interesses.

(Seleção, revisão / fixação o de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia ao autor e ao seu crítico literário)

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Nota do editor:

Último poste da sérier > 7 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25613: Humor de caserna (63): Em 1971, por uns bons 250 contos (equivalente, a preços de hoje, a mais 75 mil euros), um 1º cabo miliciano arranjava um subsituto para ir para o ultramar

Vd. também poste de 20 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25584: Humor de caserna (60): O anedotário da Spinolândia (XI): "Continua, meu rapaz, salvas-te tu para que este batalhão não seja a merda mais completa" (Um anedota contada pelo saudoso Rui A. Ferreira,1943-2022)

sábado, 8 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25621: Os 50 anos do 25 de Abril (27): "A Academia Militar, os Seus Militares e a Revolução dos Cravos", Exposição relativa aos 50 anos do 25 de Abril na Academia Militar


1. Mensagem do nosso camarada António Carlos Morais da Silva (ex-Instrutor da 1.ª CCmds Africanos em Fá Mandinga; Adjunto do COP 6 em Mansabá e Comandante da CCAÇ 2796 em Gadamael, 1970 e 1972), com data de 8 de Junho de 2024:

Caro Vinhal
Julgo não ter enviado a notícia da exposição na Academia Militar homenageando os seus militares participantes no 25 de Abril (Otelo, Garcia dos Santos, Morais Silva....).
A ser assim, como julgo, aqui vai informação e uma foto do dia da inauguração. Se considerar útil agradeço anúncio no blogue.

Cumprimentos cordiais
Morais Silva

Dia da inauguração da Exposição
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Nota do editor

Último post da série de 6 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25612: Os 50 anos do 25 de Abril (26): A exposição, na Gare Marítima de Alcântara, sobre os antecendentes e a origem (com enfoque na guerrra colonial) e os protagonistas do 25 de Abril de 1974... Para ver até 26 de junho - Parte I: Os bodes expiatórios do regime

Guiné 61/74 - P25620: Os nossos seres, saberes e lazeres (631): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (157): Em Tavira, a Vila a Dentro, em profundo derriço com as suas imponentes muralhas (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Não é mais do que o passeio à volta de muralhas, não se trata de um interrogatório à História, nem se veio fiscalizar se há para aqui obras bizarras, Tavira oferece aos seus cidadãos e a quem a visita esta singularidade de ter um casco histórico inserido, adossado, participando do benefício de uma lendária construção militar. Por aqui se cirandou, agradado ou um tanto inquieto, há evidentes situações de que se está a asfixiar a fruição dos panos de muralha, a entaipar vistas, descontinuando a contemplação de um equilíbrio que cede à ganância dos construtores. O resultado final ainda continua positivo, mas assiste ao visitante deixar algumas questões a todos aqueles que queiram ver o seu património (também nosso) protegido e valorizado.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (157):
Em Tavira, a Vila a Dentro, em profundo derriço com as suas imponentes muralhas


Mário Beja Santos

Tenho para mim que um dos encantos da cidade de Tavira se prende com o intenso e permanente diálogo dos vestígios das muralhas com a organização da chamada Vila a Dentro. Porque há uma parte de Tavira que se fixa, contorna, confronta, se embebe, nos panos da muralha. Que o visitante inicie a sua viagem fora delas, por exemplo, começando nos Paços do Concelho, passa ao lado do Núcleo Museológico Islâmico, vire à direita, dá com a Porta de D. Manuel I, esta até parece que está suportada por dois edifícios paralelos, dá para imaginar o que houve antes deles e até que aproveitamento se faz da muralha um suporto à habitação. Desça-se, começa-se a circundar todo o exterior, nada de ter a tentação de visitar a Igreja da Misericórdia, a muralha fenícia, o Palácio da Galeria, há tempo para mirar a Torre do Relógio na Igreja de Santa Maria do Castelo, e estamos agora no castelo, foi a partir dele que se desenvolveram as muralhas da cidade. O seu interior está ajardinado, quem subir à torre octogonal vai desfrutar de uma panorâmica espetacular, logo no primeiro plano os telhados de quatro águas.

Edifícios encostados a panos de muralha é acontecimento banal no país e na Europa, quem vive em Lisboa e se passeie no interior do Castelo de S. Jorge encontrará casas adossadas dentro e fora, e há mesmo aspetos curiosos (continuamos a falar do Castelo de S. Jorge) em que no exterior e próximo de um pano de muralha se ergue um belo templo religioso, a Igreja do Menino de Deus. O que atrai o visitante, neste Aquém da Ponte, é namoriscar como se processa o entrosamento entre todos estes vestígios da muralha, as habitações existentes, os espaços circundantes e, vamos lá, se há uma valorização do património de molde a não entaipar a contemplação das muralhas (e não se esconde um certo pesar por se ver construções atentatórias de uma fruição visual, houve para ali autorizações de construção de valia mais do que duvidosa).

E sem mais, vamos percorrer o perímetro e o que há de circundante das muralhas tavirenses, há uma impressionante beleza, desleixos a remediar e erros na autorização de empreendimentos que deviam servir de lição aos cidadãos hipotecados no respeito que é devido a estes bens patrimoniais que dão tanta graciosidade a Tavira.

A porta de D. Manuel I, um dos monumentos-ícone da cidade
Só espero que não se venha a entaipar esta vista, afogando os terrenos com hotéis e habitação
Assim sim, é uma beleza ver esta torre de vigia que parece despontar do empreendimento
Mostra-se este pano de muralha em dois sentidos, aqui aparentemente só há à vista a degradação do que terá sido um torreão, mas fica-se na dúvida se não cortaram o pano de muralha para pôr construção
Salvo melhor opinião, houve para aqui uma atrocidade, a que título se meteu aquele paredão, interrompendo o enfiamento da muralha, quem autorizou a sua demolição?
Sim, aqui há proteção, por favor, não venham agora sufocar a vista deste impressionante pano de muralha metendo para aqui construção habitacional ou hoteleira
O jardim do castelo está muito bem tratado, apanhei em boa floração este cipó, também conhecido por flores de S. João, este jardim é um dos atrativos da cidade, é de visita obrigatória, é quase certo que houve esmero nas intervenções feitas, são panos de muralha que não se deixaram degradar, dá encanto por aqui passear e ver uma boa parte da cidade de cima para baixo.
O castelo parece ter ganho vida ao nível dos seus fundamentos, a construção privada e até mesmo a piscina não entravam a vista e, ponto curioso, até parece correto dizer-se que há mais castelo fora do castelo, veja-se aquela torre, que parece de menagem, lá em cima, espera-se que aquelas duas gruas não estejam a construir edificações fora da escala.
Houve cuidado no elemento urbanístico, o bom propósito de deixar ao cidadão poder aproximar-se de umas muralhas que, mais tarde ou mais cedo, vão carecer de uma manutenção adequada.
Ao vermos estas três imagens fica-nos certamente umas perguntas por responder, como as manter como bons exemplares de património militar, como garantir que se mantenha um bom diálogo entre o militar e o civil, entre o passado que exige salvaguarda e o que se melhora por já estar construído e como se garante que o que bate à porta para construir de movo algum acarretará degradação visual. Responda bem quem melhor estiver habilitado.

Aqui finda a visita a Tavira, daqui segue-se para Belas, que além dos conhecidos bolos que dão pelo nome de Fofos tem património que merece seguramente uma cuidada visita.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 1 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25591: Os nossos seres, saberes e lazeres (631): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (156): Em Tavira, para visitar Balsa, cidade romana, que existiu há cerca de 2000 anos (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25619: Elementos para a história do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1966/74) - Parte I: os comandantes, cinco dos quais são nossos grão-tabanqueiros: por ordem de antiguidade militar, Henrique Matos, Mário Beja Santos, Joaquim Mexia Alves, António Sá Fernandes e Luís Mourato Oliveira


Emblema do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, Missirá, Bambadinca, Mato Cão, 1966/74)



Lisboa > Sociedade de Geografia de Lisboa > 6 de março de 2008 > O periquito Joaquim Mexia Alves, à esquerda, e o velhinho Henrique Matos mostram o seu regozijo pelo lançamento do livro "Na Terra dos Soncõ", do Beja Santos (ao centro). 

Os três têm em comum o facto de, em diferentes épocas, terem comandado os valentes soldad0s do Pel Caç Nat 52, entre 1966 e 1973 (/Enxalé, Missirá, Bambadinca, Mato Cão, 1966/74). O último comandante do Pel Caç Nat 52 foi o Luís Mourato Oliveira, nosso grão-tabanqueiro nº 730, que foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1972  até agosto  de 1973) e, no resto da comissão, no Pel Caç Nat 52 (Setor L1 , Bambadinca, Mato Cão e Missirá, 1973/74).


Lisboa > Casa do Alentejo > 6 de março de 2008 > Em primeiro plano, à direita, o nosso celebrado autor, Berja Santos, rodeado por três outros comandantes de pelotões de caçadores nativos da Guiné: o Henrique Matos (Pel Caç Nat 52), o Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63) e o Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52)... Todos os quatro passaram por Missirá (Sector L1, Bambadinca), em diferentes épocas.


Fotos (e legendas): © Henrique Matos (2008). Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Às voltas com os "brasões, guiões e crachás" dos Pelotões de Caçadores Nativos (*), tínhamos inevitavelmente que revisitar  a "história"   do Pel Caç Nat 52, de que temos cerca de 200 referências e vários representantes na Tabanca Grande: nada menos do que cinco comandantes, o que é caso único:  Henrique Matos, Mário Beja Santos, Joaquim Mexia Alves, António Sã Fernandes e Luís Mourato Oliveira. 

Esta subunidade, formada tal como as outras por graduados  e especialistas metropolitanos e praças do recrutamento local (fulas e mandingas), atuou sempre no Leste, região de Bafatá, sector L1 (Bambadinca).

Quisemos saber mais sobre alguns dos seus comandantes e do historial do seu algo estranho brasão, que ostenta a figura de um gavião (ave de repina qeur não existe na Guiné) e de uma caveira, e que tem por lema ou divisa "Matar ou Morrer"...

Perguntei a alguns dos nossos tabanqueiros se o emblema era do tempo do açoriano Henrique Matos, "pai-fundador" (1966/68)...Infelizmente, deste e doutros Pel Caç Nat,  "não reza a  história", há registos  dispersos, e os próprios  livros da CECA (Comissão para o Estudo das Campanhas de África) são omissos sobre os seus feitos... 

2. Eis algumas respostas que obtive, por mail ou comentários (*)

(i) Joaquim Mexias Alves: 

(...) Julgo que faltam 2 Comandantes no Pel Caç Nat 52.

O Alf Wahnon Reis, julgo que antes do Beja Santos, e  foi apenas por pouco tempo.

E o Alf António Sá Fernandes, que foi a seguir a mim.

5 de junho de 2024 às 15:27


(ii) Luís Graça:

Sim, Joaquim, a seguir ao Beja, veio o Nelson Wahnon Reis, natural de Cabo-Verde... Mas, infelizmente, nunca deu a cara aqui no blogue. Não temos notícias dele ...

Os Wahnon era gente conhecida em Cabo Verde... Convivi há uns largos anos com um Wahnon, economista, do Banco de Portugal, que não fez a guerra, viveu sempre em Lisboa, mas terá sido militante ou simpatizante do PAIGC na juventude... Possivelmente era parente do Nelson.

O Nelson Wahnon Reis, o periquito do Mário Beja Santos, não terá sido bem recebido pelos guineenses (fuklas e mandingas) do Pel Caç Nat 52... Por ser justamente cabo-verdiano...

Vê aqui o texto do Mário (Poste P 3266, de 3 de outubro de 2008) (**)

Quanto ao António Sá Fernandes, sim, é membro da nossa Tabanca Grande e sucedeu-te a ti, Joaquim, no comando do glorioso Pel Caç Nat 52. Vivia em Valença em 2008 (***)

Tem 7 referências no nosso blogue:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Ant%C3%B3nio%20S%C3%A1%20Fernandes


(iii)  Mário António Beja Santos (6 de junho de 2024, 10;11):
 
 Meu caro Luís, a autoria do crachá do Pel Caç Nat 52 foi do então furriel Zacarias Saiegh, deu discussão com azedume, foi-me apresentada como um facto consumado, não gostei daqueles traços apiratados, encolhi os ombros, o meu crachá foi devorado pelo fogo da flagelação de 19 de março de 1969 que só me deixou os ferros da cama. 

Concordo contigo, uma das provas de completa discriminação era não exigir aos pelotões de caçadores nativos, comissão após comissão, relatórios que contribuíssem para a sua história, atividade operacional, localização, composição dos efetivos. 

Já não vale a pena chorar sobre o leite derramado (...) 


(iv) Joaquim Mexia Alves (6 de junho de 2024, 10:26):
 
Caro Luís: Pois eu soube que o Nelson Wahnon Reis esteve pouco tempo no 52 precisamente por ser cabo-verdiano e os militares do 52 não o quererem como comandante.

Quanto ao emblema, no meu tempo limitei-me a mandar fazer em Lisboa novos emblemas que os militares ficaram muito satisfeitos de receberem.

O desenho ou motivo, de que nunca gostei, são muito anteriores a mim, mas obviamente não lhe mexi e assim o aceitei. (...)

(v) António Sá Fernandes (7 de junho de 2024, 22:32) (foi alf mil. CART 3521 e Pel Caç Nat 52, 1971/73)
 (foto à esquerda)

Vivia e vivo em Valença!

Um abraço para todos,

 Sá Fernandes


(vi) Henrique Matos  (8 de junho de 2024, 00:12)

Caro Luís

Estive a gozar uns dias nas ilhas de bruma (como sabes foi lá que nasci e cresci) e não houve tempo para ligar o PC. 

Deparei-me agora com a estória dos crachás e vou meter o bedelho na conversa. Uma nota: tenho um problema com datas, varreram-se da memória. Já pedi uma cópia da folha de matrícula ao Arquivo Geral do Exército. 

No meu tempo o pelotão não tinha brasão/crachá e nunca se falou nisso. O autor (de mau gosto,  na minha opinião) terá sido o malogrado Zacarias Saiegh quando comandou o pelotão em Missirá, antes da chegada do Beja Santos. 

Também sei, pelo testemunho dos meus furriéis, que durante algum tempo (pouco) comandou o pelotão, também em Missirá, um alf mil Azevedo, natural de Castelo Branco, mas do qual não têm mais qualquer referência.

Para a história do 51 posso adiantar que o seu 1.º comandante foi o alf mil José Manuel Dias Perneco, vive em Lisboa, estive com ele no encontro dos pelotões. Interessante foi saber que o Perneco foi substituir o 1.º nomeado que deu à sola antes de embarcar para a Guiné. (...)

(vii) Luís Mourato Oliveira (23 de julho de 2013 às 16:30) (foto à direita):
 
(...) Caros camaradas, estive ao serviço entre 1972 e 1974 na Guiné. Primeiro na CCAÇ  4740 e depois no Pel Caç Nat 52 que desmobilizei e onde terminei a comissão já após o 25 de Abril.

Sou habitual visitante do blogue. Conheci pessoalmente o camarada Luís Graça no almoço de 2012 em Monte Real [VII Encontro Nacional da Tabanca Grande], embora sejamos originários da região Oeste, ele da Lourinhã, eu da Marteleira.

(...)  Guardo com enorme carinho e saudade aquela terra e aquele povo com quem tive o privilégio de servir e que,  quanto mais tempo passa e mais a tecnologia nos inunda e consome, mais apreço tenho pela sua cultura e tradições, sobretudo no que concerne ao respeito pelos homens grandes, pelas crianças e pelos seus mortos e história. (...)

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Notas do editor:
 
(*) Vd. poste de 4 de junho de 2024 >  Guiné 61/74 - P25600: O armorial militar do CTIG - Parte I: Emblemas dos Pelotões de Caçadores Nativos: dos gaviões aos leões negros, das panteras negras às águias negras...sem esquecer os crocodilos

(**) 3 de outubro de  2008 > Guiné 63/74 - P3266: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (46): Chegou o meu periquito

 (***) Vd. poste de 22 de Abril de 2008 >  Guiné 63/74 - P2788: Tabanca Grande (64): Apresenta-se Sá Fernandes, ex-Alf Mil da CART 3521 e Pel Caç Nat 52 (Guiné 1971/73)

Guiné 61/74 - P25618: Casos: a verdade sobre... (43): sim, a situação político-militar agravou-se em 1973/74, no CTIG, mas o PAIGC não fez a declaraçáo unilateral de independència... em Madina do Boé: um erro toponímico sistemático que a nossa historiografia militar anda a replicar há meio século...

 

Imagem de satélite (Cortesia de Google Earth)  com indicação de algumas das tabancas situadas na região oriental do Boé. Refere-se, também, Tiankoye, situada em território da República da Guiné, local por onde circularam as forças do PIAGC que atacaram Madina do Boé, em 10 de Novembro de 1966, e onde morreu o cmdt Domingos Ramos (1935-1966). 

Lugajole, Vendu-Leidi e Lela (esta já no território da Guiné Conacri) estão mais próximos do local "misterioso" onde o PAIGC fez a declaração unilateral da independência, a única zona acidentada da Guiné- Bissau (com pequenas colinas que chegar aos 100, 200 e até 300 metros, nas falda do Futa Jalon)... 

Madina do Boé, seguramente, é que não foi o "berço da Nação", embora desse mais jeito ao PAIGC para efeitos propagandísticos...  De Madina do Boé até á fronteira (passando por Vendu-Leidi), a leste, são 70 km, em linha reta. Para sul, são 10 km. (Vd. mapa da antiga província da Guiné, 1961, escvala 1/500 mil)

Naquele tempo não havia GPS, as fronteiras eram porosas, o Boé não tinha estrada para a fronteira a leste (nem picadas transitáveis em plena época das chuvas como era o caso em setembrto de 1973)... 

E todas as testemunhas (os protagonistas) do lado do PAIGC já morreram: o Luís Cabral não se lembrava do nome da tabanca mais próxima, o Vasco Cabral dizia que era Vendu Leidi... Fica a amnésia da História (e de um povo).. .

De qualquer modo, era preciso "ter lata"  para declarar "urbi et orbi" a independência da Guiné... num país estrangeiro. Mesmo assim estava garantida, na ONU, o reconhecimento imediato da nova república logo por cerca de 80 países... 

Foi a grande jogada de mestre do Amílcar Cabral desenhada antes de morrer... E o pior erro estratégico de Spínola, ainda "periquito",  a retirada das NT do Boé (Beli, Madina e Cheche).  E acresente-se: do Hélio Felgas, profundo conhecedor do território, mas que subestimou a importância do Boé para a logística e a propaganda do PAIGC.... De qualquer modo, quem não tinha cão, caçava com gato (*)...

Infografia: Jorge Araújo (2021). Legenda: JA/LG












Painel, reproduzido com a devida vénia, da exposição "MFA 25A - O Movimento das Forças Armadas e o 25 de Abril", Lisboa, Gare Marítima de Alcântara (Abril-junho de 2024)

1. A propósito da exposição "MFA 25A - O Movimento das Forças Armadas e o 25 de Abril" (**). que está a decorrer na Gare Marítima de Alcàntara, em Lisboa, de 14 de abril a 26 de junho de 2024 (no horário  das 14h00 às 20h00, de quarta feira a domingo), já chamámos a atenção para um erro factual imperdoável: dar Madina do Boé como local onde o PAIGC proclamou a independência unilateral da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973 (ver imagem do painel, acima reproduzida, com o topónimo sublinhado a vermelho, por nós)

Não sabemos de quem é a autoria do texto. Pode ser um deslize, mas é lamentável.  Hã anos que temos batalhado, aqui no nosso blogue, contra este "embuste histórico" do PAIGC, infelizmente replicado  por historiógrafos militares e jornalistas portugueses, para não falar de académicos, uns e outros pouco ou nada conhecedores da geografia  da região do Boé. (*).  

Fica aqui o nosso protesto: damos importância, no nosso blogue, à "verdade factual" (***)... De qualquer modo, continuamos a aconselhar a visita à exposição, a qual, de resto, utiliza alguns materiais do nosso blogue (fotos do Jose Casimiro Carvalho e do Miguel Pessoa).
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

5 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22106: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte I: A variável "clima" (Jorge Araújo)

21 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22122: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte II: Missão a Gaoual (Jorge Araújo)

12 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22275: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte III: A Brigada de Fronteira de Gaoual e o apoio no controlo dos movimentos na Região de Lela em novembro de 1966 (Jorge Araújo)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2021/06/guine-6174-p22275-um-olhar-critico.html

Mas também:


20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3920: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (2): Opção inicial, uma tabanca algures no sul, segundo Luís Cabral (Nelson Herbert)

1 de março de  2009 > Guiné 63/74 - P3955: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (3): O local estava minado e o PAIGC sabia-o (Jorge Félix)

17 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4042: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (4): Ajudas de memória (Abreu dos Santos)

9 de outubro de  2009 > Guiné 63/74 - P5079: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (5): Lugajole, disse ele (Luís Graça)


(***) Último poste da série > 24 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25104: Casos: a verdade sobre... (42): O "making of" do livro do Amadu Djaló (1940 - 2015), "Guineense. Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.) (Virgínio Briote)