segunda-feira, 17 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25649: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte III: O Eustáquio, que tinha 14 anos, andou fugido nas montanhas de Liquiçá e Ermera, com a mãe e a irmã mais nova, mais duas pessoas amigas da família Sobral, durante três anos e meio


Timor > Liquiçá > Manati > Boebau > 2018 > Escola de São Francisco de Assis > Uma luz ao fundo do túnel... Aproxima-se a data da inauguração: 19 de março de 2018.


Texto e fotos: © Rui Chamusco  (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lourinhã > 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral.  A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo, no tempo dos portugueses. As insígnias do poder (incluindo a espada) estão na posse do Gaspar, que vive em Coimbra.  A família Sobral andou vários anos pelas montanhas de Luiquiçá e de Ermera, tentando escapar à tirania dos ocupantes indonésios. O Gaspar esteve 38 anos fora da sua terra, só lá voltando em 2016, com o Rui.

Foto: Luís Graça  (2017).


1. Esta é a segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, uma missão solidária que culminou com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, Liquiçá.

O Rui Chamusco, nosso grão- tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado (e homem de sete instrumentos), natural da Malcata, Sabugal, a viver na Lourinhã.

O Rui tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em linha reta).

É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, com sede em Coimbra. Juntamente com outros destacadas figuras, como o Gaspar Sobral (nascido em Timor) e a Glória Sobral (natural da Malpaca, Sabugal).

Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vemos seguramente melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje: uma visão macro e micro. Enfim, um privilégio, para os nossos leitores. E um obrigado ao nosso cronista, extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio,à Aurora, à Adobe e outros protagonistas destas histórias luso-timorenses.

Estas crónicas tem um enorme interessante para se conhecer o que é hoje a República Democrática de Timor Leste,  país membro da CPLP, com o qual mantemos laços históricos, e sobretudo afetivos, tal como mantemos  com a Guiné-Bissau e outras antigos territórios que estiveram sob a administração portuguesa em África e na Ásia (LG).



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)
 
Parte III - O Eustáquio, que tinha 14 anos, andou fugido nas montanhas de Liquiçá e Ermera, com a mãe e a  irmã mais nova, mais duas pessoas amigas da família Sobral, durante três anos e meio 


06.03.2018, terça feira  - Dia de anos da Aurora

A Aurora, que é a mãe da casa, a esposa do Eustáquio e mãe dos quatro filhos que gerou, faz hoje 49 anos. Só isto seria mais do que suficiente para lhe fazermos a festa. Mas a Aurora, para além de mãe e esposa, é muito mais. 

Apesar das dificuldades físicas pois há sete anos teve um AVC que afetou os movimentos do seu lado esquerdo, a Aurora nunca para. Sempre solícita às necessidades da casa, sempre disponível a qualquer apelo, sempre com o seu sorriso de encantar. Claro que lhe fizemos a festa e lhe cantamos os parabéns!...

Para surpresa de todos e já ao fim da tarde, telefona o João Crisóstomo para nos dizer que faz questão de aparecer aqui para dar os parabéns à senhora Aurora. E apareceu mesmo! Esta gente, que tanto tem ouvido falar no João pelas melhores razões, ficou atónita e comentando: “ O quê? O senhor João Crisóstomo vem aqui?”... E desfaziam-se em cuidados para o receber. 

Mal sabiam eles que o João, apesar de toda a importância que lhe é dada e que bem merece, é uma pessoa simples e humilde. Adaptou-se ao local e passou de imediato a ser um dos habitantes da casa.

Teve vários gestos que a todos cativou, mas realço o apadrinhamento “in loco”do Alaka, um dos filhos do Anô. È a primeira vez que acontece um apadrinhamento em direto. Via-se a satisfação do Alaka que dizia “gosta”, mas também do João. Eu diria duas crianças. E lembrei-me então de ditados e canções que ilustram o que escrevo: “de velhinho se volta a menino”; “faz-me ser criança junto dos irmãos”.

Desculpa, João! E obrigado pelo teu exemplo. Este apadrinhamento alargou o campo de ação do nosso programa, levando-o até aos Estados Unidos da América.


07.03.2018, quarta feira  - Encontros com o embaixador de Portugal e o bispo Dom Basílio

Dia 7 de Março é o dia que nos foi marcado para sermos recebidos pelo senhor embaixador de Portugal. Às dez horas em ponto, lá estávamos nós à frente da
embaixada, um edifício novo inaugurado há pouco tempo, e depois de alguns
minutos de espera por questões de segurança interna, alguém nos veio buscar e
conduzir à sala de audiências do senhor embaixador.

Recebidos cordialmente pelo novo embaixador (tudo é novo aqui), que tomou posse há três meses , e pela sua secretária doutora Daniela Pereira, de pronto começamos o colóquio sobre as intenções porque solicitamos esta audiência. Durante mais ou menos uma hora todos fomos intervindo com perguntas e respostas que enriqueceram o diálogo. A embaixada conheceu o nosso projeto e nós ficamos a conhecer a posição e a ação da embaixada a este respeito. Ficou a promessa do senhor embaixador de que daria a devida atenção às nossas pretensões, depois de lhe enviarmos por escrito a fundamentação do que estamos a fazer. Para já ficamos muito satisfeitos e agradecidos por o senhor embaixador aceitou o convite de estar presente no ato da inauguração da escola em Boebau no próximo dia 19. esperamos que a promessa seja cumprida.

Outro encontro de não menos importância aconteceu na parte da tarde, das 16.00 às 23.00 horas, com o senhor bispo D.Basílio, que faz questão de ser meu amigo desde 1980, porque trabalhamos e estudamos durante dois anos, em Paris. É segunda vez que, durante a nossa segunda estadia em Timor, nos encontramos, e com certeza que muitas mais vezes assim o faremos.

À hora marcada, no Hotel Plaza onde o João Crisóstomo está instalado, lá está já o D. Basílio à nossa espera. Deu-nos o exemplo da pontualidade que nós (eu, o Gaspar, o João e o Eustáquio) não conseguimos cumprir. E ainda dizem que as pessoas importantes chegam sempre atrasadas!... Este longo tempo de encontro trouxe-nos tudo: partilha de ideias, recordações, boa disposição, projetos de vida e ação, etc.

De minha parte compete-me agradecer a facilidade e a disponibilidade de tempo e contactos que o nosso amigo nos dispensou, e particularmente as orientações
preciosas que nos prestou quanto ao estatuto e à funcionalidade da escola em
Boebau. Vamos continuar a precisar da sua ajuda, e sei de antemão que nunca nos será negada. Obrigado Basílio!



09.03.2018, sexta feira - Relatos impressionantes 
de cenários de guerra

Enquanto se fazem os preparativos para a inauguração da escola e aproveitando
algum tempo de lazer ainda cá em baixo, em Ailok Laran, vamos ouvindo em primeira mão relatos impressionantes que aconteceram nas zonas montanhosas de Liquiçá e Ermera, particularmente as que aconteceram em terras de Boebau e arredores. 

O Eustáquio tinha na altura da invasão indonésia 14 anos e, como já referi anteriormente, andou fugido três anos e meio pelas montanhas, juntamente com a mãe, a irmã mais nova e mais duas pessoas amigas da família Sobral. Cada vez que fala, sem complexos mas com alguma revolta, do que viu e do que lhes aconteceu, impressiona-nos com o seu realismo. Passo a contar os relatos que hoje lhe ouvi pela primeira vez.

  • Quando os tentaras (tropas armadas indonésias) apareciam, todos procuravam esconderijos. Conta o Eustáquio que uma vez estava um grupo escondido, nele incluído um bebé, enquanto os tentaras passavam. Como a criança começou a chorar, e para que não fossem descobertos, alguém lhe tapou a boca com a mão... Quando se deram conta a criança estava morta.
  • Uma senhora na plena força da vida (mais ou menos 40 anos) foi enterrada viva de cabeça para baixo, de tal modo que viam os pés da senhora a mexer enquanto ali ficava morta.
  • A outra senhora prenderam-na a uma árvore e foram-se embora na esperança de que ela ali morresse e apodrecesse.
  • Uma outra senhora, da família do Eustáquio cujas filhas sobreviveram e habitam uma localidade próxima de Boebau, foi deixada também no local apenas com um pouco de milho moído e um cassapo, feito de bambu com alguma água. Ainda hoje ninguém sabe o que lhe aconteceu: se morreu, se foi levada pelos indonésios, se sobrevive nalgum sítio.

Diz o Eustáquio que este povo sofreu muito e continua a sofrer porque se sente
esquecido do poder central. Os guerrilheiros tinham sempre de comer porque os
populares lhes levavam comida, e tinham com que se defender, pois utilizavam
armas. 

Mas esta gente indefesa era quem mais sofria e continua a sofrer. Chegará algum dia em que se faça justiça? Este povo bem merece. As eleições antecipadas estão à porta, e é urgente que os poderes delas resultantes tenham em consideração os necessidades e anseios das pessoas mais carenciadas.

Quanto a mim, quanto a nós, sinto-me cada vez mais motivado a lutar com as
minhas possibilidades pelo bem estar desta gente, e particularmente por estas
crianças que não vão à escola devido às dificuldades de acesso e às situações de
pobreza extrema. Havemos de fazer a diferença. Que Deus nos ajude!

Talentos perdidos...

Sei que em todo o mundo é assim, e todos conhecemos casos semelhantes ao que
vou contar. A Delfina Tavares é uma jovem que acabou este ano (em Dezembro
passado) os estudos do Secundário (12º ano de escolaridade). Estivemos a ver a sua caderneta escolar que prova ela ser a segunda melhor aluna da turma. 

A Delfina, devido à doença da mãe e a ter perdido o pai teve de deixar a sua casa e está a viver numa família de acolhimento cujo aglomerado familiar soma 15 pessoas, em situação de muitas dificuldades financeiras. Claro que todos vão à escola, exceto a Delfina que, por falta de verbas para pagar a matrícula e a frequência tem de ficar em casa em trabalhos caseiros. 

Infelizmente também aqui em Timor, as universidades públicas, pagas pelo Estado, são ocupados por alunos vindos das classes mais altas. Os outros têm de recorrer ao ensino privado, que tem de ser pago, e ao qual muitos alunos não têm acesso por falta de possibilidades das suas famílias que são pobres.

Estamos a tentar resolver o problema da Delfina, e temos esperança que ainda se
possa matricular e frequentar o curso de economia na faculdade que o administra.

Este caso leva-me a refletir sobre o ditado “Deus dá nozes a quem não tem dentes”. E vêm me à memória uns quantos casos que em Portugal eu conheço de talentos perdidos por falta de condições e de oportunidades em prosseguir os estudos.

É pena que assim seja. Quem sabe se com a contribuição de cada um de nós a situação não se altere, pelo menos para alguns, e esses talentos perdidos ou escondidos possam desenvolver-se e dar frutos. Assim o desejo profundamente...

Dia 11.03.2018, domingo - Hoje é Domingo...

“ Dies Domini...” Hoje é domingo, dia do Senhor. Por isso e por outras coisas mais fomos à missa das 8.00horas, na igreja de Motael.

Ao chegar encontramos um largo cheio de gente que assistia à missa das 7h. Como há sempre muita gente a esta hora, optou-se por a missa desta hora ser cá fora, tipo missa campal.  

Foi-nos então explicado pelo sr. Ascenso, uma enciclopédia de conhecimentos, que nesta igreja de Motael, a primeira missa é celebrada em bahassa (língua indonésia), a segunda em português, a terceira em tetum,e a quarta em inglês. È assim mesmo, missa para todos os gostos... 

É escusado dizer que a religião católica tem uma grande implantação em Timor Leste. E por isso as cerimónias religiosas têm uma participação muito relevante e muito expressiva. Os cânticos e as orações coletivas fazem-nos crer que esta gente é sincera e as suas devoções, aceitemos ou não, têm razão de ser e dão significado às suas vidas.

A razão mais forte que aqui nos trouxe, (eu, o Gaspar e o João Crisóstomo) foi de nos encontrarmos com o sr. Padre Mário Godamo, que ´é o represente do Vaticano neste país, a fim de combinarmos a cerimónia da benção da escola de Boebau.

Depois de uma larga conversa partilhada, chegamos à conclusão que será celebrada a missa, seguindo-se o programa já delineado. Precisamos de todos os apoios  possíveis, mas particularmente do apoio divino. Deus está connosco. Ele vai ajudar!...

Esteve também connosco o Levy, já meu conhecido e grande amigo do Gaspar, que a nosso pedido se iria encontrar com o João Crisóstomo. O João ficou emocionado ao abraçar este herói da resistência. Ele mais um colega, felizmente também sobreviveu, são os dois heróis que personificam o monumento existente em frente da igreja de Motael, mesmo à beirinha do mar. Aparecem, como imagens fortes de sangue e suor, no filme que percorreu o mundo e ajudou a fortalecer o movimento da luta pela independência nacional. Por isso é compreensível o estado emocional do João, ele que tanto lutou por ajudar este país sofredor. Com certeza que mais emoções hão-de vir ao de cima. Força João!...

12.03.2018, segunda feira  - Nem tudo são rosas...

Quando as promessas não são cumpridas a frustração, a ansiedade, o desânimo
instalam-se na gente. Hoje era o dia anunciado para a chegada do Ralph e de Lucila, os dois jornalistas esperados para fazer o documentário sobre a educação em Timor Leste, e também para fazerem a reportagem da inauguração da escola em Boebau. 

amigo João Crisóstomo, que tudo tem feito para que esta equipa possa realizar o seu trabalho em boas condições, é quem mais sofre com estes incumprimentos. Não sabemos se ainda vêm ou não, mas decidimos não nos deixarmos influenciar pela sua ausência. Todos juntos somos fortes e iremos com certeza levar a cabo esta missão. A escola será inaugurada no dia 19, esteja quem estiver, porque as crianças e todos nós estaremos lá.

13.03.2018, terça feira - A prenda que desejávamos...

Já relatei o caso de “talentos perdidos” que descreve a Delfina, uma aluna que
acabou o secundário como a segunda melhor da turma. Hoje, a Delfina, o Gaspar e eu fomos a Universidade da Paz, falar com o Dr. Lucas que é o reitor, sobre esta
situação. Recebidos num clima de simplicidade e amizade, o Dr.Lucas pôs tudo em movimento e, depois de ter as informações adequadas, decidiu ali mesmo, de
imediato, que a Delfina começará amanhã a frequentar as aulas no curso que ela
escolheu (Relações Internacionais), isenta do pagamento de propinas.

Ainda mais. Sob proposta nossa o Dr. Lucas aceitou com muito agrado ser sócio da Astil, pronto a colaborar connosco em tudo o que seja possível. Estiveram também connosco o Dr. Apolinário e o Dr. Domingos que nos guiaram na visita às instalações desta grande e credível universidade.

Há dias assim, em que tudo corre bem. Obrigado, Dr.Lucas!...



Fonte: João Crisóstomo - LAMETA - Movimento Luso-Americano para a Autodeterminação de Timor-Leste, edição de autor, Nova Iorque, 2017, p. 157 (com a devida autorização do autor, conhecido ativista de causuas sociais, nosso camarada da dáspora lusitana, a viver nos EUA desde 1975, e ex-alf mil da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)


Da esquerda para a direita: o professor Berbedo de Magalhães, da Universidade do Porto, João Crisóstomo e Xanana Gusmão, num encontro em Lisboa [em 22 de dezembro de 2001] 
(Fonte:  LAMETA, 2017, pág. 22)

 

Capa da brochura
LAMETA (2017)
14.03.2018, quarta feira  - Exposição Lameta

À hora combinada, 9.30h, lá estávamos na Escola Rui Cinati, em Balide, uma escola de referência em Dili, onde o ensino e a língua portuguesa estão em destaque. Foi o local combinado para que o amigo João pudesse expor os seus trabalhos relacionados com o livro que publicou LAMETA ( Movimento Luso Americano para a Autodeterminação de Timor Leste). 

Acompanhando eu o João na preparação desta exposição sou testemunha de quanto investimento em dinheiro, esforço, contactos, entusiasmo, esperança foi depositado neste evento. Mas confirmo também o apoio inexcedível prestado pela direção desta escola, nomeadamente do Dr. Acácio,  seu presidente, para que esta exposição tenha o êxito esperado. 

O ato da inauguração foi um momento alto que nos catapultou a todos. Vi o João como ele é:  grande e humilde; fervoroso e contagiante; alegre e bem disposto. Para tal muito contribuiu a presença de figuras convidadas, nomeadamente a presença do Sr. Embaixador de Portugal.

De nossa parte fica também o nosso agradecimento à “publicidade” que nos fizeram e que nos permitiu alguns contactos importantes para o futuro da nossa escola em 
Boebau.

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P25648: Parabéns a você (2281): Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR da CCS / BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)

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Nota do editor

Último post da série de 8 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25616: Parabéns a você (2280): João Gabriel Sacôto, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Bissau, Catió e Cachil, 1964/66)

domingo, 16 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25647: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (129): Manuel Serôdio, eu fui o ferido mais grave da segunda armadilha, em 16 de julho de 1968, no decurso da Op Escudo Negro (CCAÇ 1787, CART 1660, CCAV 1749 e 5ª CCmds): estive um ano no hospital (Carlos Parente)





Guiné > CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (1967/69) > o ex-fur mil at inf, com a especialidade de minas e armadilhas, Manuel Seródio... Fotos do seu álbum. Sem legendas.

A CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 foi mobilizada pelo RI 15, partiu para o TO da Guiné em 18/10/1967 e regressou a 21/8/1969. Passou sucessivamente por Bula, Bissau, Empada, Buba, Bissau, Quinhamel. Comandante: Cap Inf Marcelo Heitor Moreira. O BCAÇ 1932 esteve sediado em Bissau, Farim e Bigene (Comandante: ten cor inf Narsélio Fernandes Matias).

Fotos: © Manuel Serôdio (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Dispositivo das NT em 1 de janeiro de 1968. Fonte:
CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro II (1.ª edição, Lisboa, 2015), pág. 153. Sectores: L (Leste); O (Oeste); B (Bissau); S (Sul).



1. Comentário de Carlos Parente ao poste P10570 (*)

Caro camarada Manuel Serôdio,  o mundo é realmente muito pequeno (**):  através das novas tecnologias acabei por descobrir alguém que viveu de muito perto a situação terrível que marcou a minha vida, o ferido mais grave da dita armadilha era eu.

Lembra-se por certo que não foi possível a evacuaçâo pelo facto de ser noite,  digo-lhe que foi a noite mais terrível de minha vida. Pela manhã do dia 17,  vieram dois helis que tiveram realmente muita dificuldade em aterrar. Graças aos meus irmãos de armas conceguiram a minha evacuação, posso dizer que passei mais de um ano internado,  grande parte desse tempo entre a vida e a morte: mais de um mês em Bissau,  depois fui evacuado para Lisboa, passando mais de um ano aí.

Perdi parte do intestino,  do estômago, da bexiga,  o rim esquerdo,  os tendões da perna esquerda e sofri várias fraturas do pulso,  cotovelo e ombro esquerdo,  bacia e perna esquerda. Foi muito mal mesmo, mas com muito esforço e vontade de viver concegui dar a volta e ainda estou por cá.

Como eu gostava de o abraçar! Se por ventura chegar a ler este bocado de minha história,  deixo aqui meu email: carlos.a.parente@sapo.pt 

Sempre grato a todos os que me apoiaram.  Um abraço muito querido,  Carlos Parente.


2. Excertos da CECA (Comissão para o Estudo das Campnhas de África(:

Operação Escudo Negro - 15 a 18Jan68

Acção conjunta com a Força Aérea, nas regiões de Sarauol (golpe de mão), Ambum e a Leste de Mandingará (batida), 03(A).

Intervieram forças da CCaç 1787, CArt 1660, CCav 1749, 5ª CCmds com apoio de Artilharia.

(...) Foi accionada uma armadilha A/P, a sul de Mantém, sofrendo as NT 1 morto, 2 feridos graves e 5 ligeiros. Na mesma zona foram detectadas mais 2 armadilhas. Executado o bombardeamento de Sarauol pela FA, foi seguido de helitransporte da 5ª CCmds.

Batida a área do objectivo, constatou-se que o bombardeamento atingiu o acampamento, destruiu a enfermaria, causou a morte a 1 enfermeira e ferimentos num elemento da população, além de outras baixas que se estimam em número elevado em face dos
destroços humanos e dos rastos de sangue observados na área do objectivo e nas zonas próximas. 

Foi apreendida 1 pistola-metralhadora, 3 granadas de mão ofensivas, 8 carregadores, 343 cartuchos, peças de reserva e palamenta de armamento ligeiro, instrumentos cirúrgicos e material diverso.

Na manhã de dia 17, o lN flagelou as NT com armas ligeiras, fazendo, de seguida, um ataque com tentativa de envolvimento.

As NT reagiram e perseguiram o lN causando 1 morto e outras baixas prováveis. (...)
 

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro II (1.ª edição, Lisboa, 2015), pp. 152 e 154.


3. Excerto do poste P 10570, de Manuel Serôdio  (*)

Operação Escudo Negro:

 (...) Missão: 1) Destruir a base do Sará; 2) Patrulhar a região entre os rios Olom e Mansoa.; 3) Capturar ou aniquilar os elementos rebeles, destruindo instalações e meios de vida; 4) Pesquisar informações.

Em 15 de Janeiro (de 1968), pelas 10 horas, iniciou-se a operação, progredindo com grande rapidez por um trilho situado em mata fechada. 

Cerca das 15,30 horas, foi deflagrada uma armadilha por um elemento da coluna. Ferido aparentemente sem gravidade, veio o soldado nativo Ansumane, a falecer pouco depois, sem se ter conseguido ligação rádio a fim de o poder evacuar.

 [ 
Nota pessoal: o irmão do soldado falecido, que também fazia parte da coluna, recuperou as botas do irmão que eram novas, ( tinham-lhe sido oferecidas dias antes da operação) e calçou-as, já que as suas estavam em mau estado. Imagens simples e terríveis ao mesmo tempo. ]

A Companhia saíu do trilho, o que se revelou avisado, pois ao voltar ao mesmo para orientação, foram detetadas outras duas armadilhas. Quase ao anoitecer foi atingida uma clareira onde se resolveu passar a noite.

Depois de se ter reabastecido de água e quando, já de noite, o segundo grupo de combate procurava local para se instalar, foi deflagrada nova armadilha que causou dois feridos graves e quatro ligeiros. 

Entretanto foi conseguida ligação com Porto Gole a quem foi pedida evacuação dos feridos. Escolheu-se local para a mesma, montando-se a segurança. No local escolhido, os helicópteros não conseguiram poisar, pelo que foi tentado novo local, onde foi necessário abater algumas árvores.

Ao cansaço moral juntou-se o esgotante cansaço físico. Finalmente os helicópteros conseguiram aterrar, evacuando-se o morto e os feridos. (...)

4. Sobre o Manuel Serôdio:

(i) Manuel de Almeida Andrade Serôdio, natural de Oliveira de Azeméis, ex-fur mil  classe de 1966, n° 95998/65;

(ii) recenseado com o n°53 em 1964, e incorporado em 16/05/1966, tendo passado à disponibilidade em 29/09/1969;

(iii) em 16/05/1966 deu entrada no RI 5 em Caldas da Rainha para iniciar a recruta;

(iv) a 21/08/1966 entrou no CISMI em Tavira para começar o 2º ciclo do curso de Sargentos Milicianos (CMS) na especialidade de atirador de infantaria;

(v) pomovido a primeiro cabo miliciano em 28/11/1967 e colocado de seguida no RI 6;

(vi) nomeado para servir na Província da Guiné, foi destacado para Tancos afim de tirar a especialidade de minas e armadilhas;

(vii) para de seguida ser colocado no RI 15 em Tomar, fazendo parte do BCAÇ 1932, CCAÇ 1787;

(viii) enviado a seguir para Santa Margarida no final do gozo da licença, foi para Lisboa no dia 28/10/1967, de onde embarcou no mesmo dia no Uíge com destino à Guiné;

(ix) e aonde chegou a 2/11/1967;

(x) regressou à Metrópole a 23/08/1969,  no final da comissão;

(xi) vive (ou vivia em 2012) em França, desde 1970, em Rennes, capital da Bretanha. 

5. Comentário do editor LG:

Meu caro  Carlos Parente, camarada da Guiné!...

 Realmente o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca ...é Grande! (**)... Cabemos cá todos, e está cá quem se procura. Terás cá lugar, na tua qualidade de antigo combatente no CTIG, se me mandares duas fotos, uma antiga e outra mais ou menos atual, com mais duas ou três linhas de apresentação, a completar a tua mensagem acima. 

Diz-nos onde vives (será no estrangeiro, na diáspora lufófona ?), qual era o teu posto na tropa e na Guiné, a que subunidade pertenceste (seria a mesma do Serôdio, a CCAÇ 1787 ?)... 

Vamos receber-te de braços abertos, e para mais sabendo que, apesar da desgraça desse fatídico dia 16 de janeiro de 1968, estás vivo e acabas de encontrar um camarada teu, que estava por perto, um "teu irmão de armas". 

Vou-te dar o endereço de email do Manuel Serôdio, que vive em França, para o poderes contactar, com calma. Ele entrou para o nosso blogue em 2012 (***), não sei se continua a acompanhar-nos regularmente. Vou-lhe retransmitir o teu texto. Tem 14 referências no nosso blogue: podes ler aqui mais textos dele sobre a atividade operacional da CCAÇ 1787.

Aqui tratamo-nos todos, em geral,   por tu como antigos camaradas de armas que fomos (e que continuamos a ser). Manda um mensagem, com os elementos que te pedi,  para o meu endereço de email: luis.graca.prof@gmail.com.   

Saúde e longa vida. Luís Graça.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10570: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte III): De Porto Gole a Cutia: Op Escudo Negro: conseguimos entrar no 'santuário' de Sará / Sarauol


(**) Último poste da série > 20 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25089: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (128): O José Monteiro é o autor dos aerogramas que foram parar ao OLX (Mário Fitas, ex-fur mil, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67)


(***) Vd. poste de 14 de setembro de  2012 > Guiné 63/74 - P10381: Tabanca Grande (360): Manuel Serôdio, mais um camarada da diáspora, ex-fur mil at inf, CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (Bula, Bissau, Empada, Buba, Quinhamel, 1967/68)


Guiné 61/74 - P25646: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (22): "Engenharia e tatuagem"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Engenharia e tatuagem

Ele sempre sonhara ser engenheiro, mas desistiu na quarta classe porque os pais não tinham qualquer hipótese de o mandarem estudar. Eram catorze irmãos e o único que chegou a alguma posição de jeito, foi um dos do meio, que foi para padre. O pároco da freguesia engraçara com ele e enfiou-o num seminário do Porto.

O pior foi quando rebentou essa merda da pedofilia, ele engraçara com um catraio, meteu-o na sacristia… e não vale a pena desenvolver a temática. Foi um enorme desgosto para a mãe que pouco tempo depois morreu.

Esta conversa era entre ele, o que sonhara ser engenheiro, e um amigo que vivia num quarto alugado, isto é, num quarto alugado pela Segurança Social, na mesma rua onde se situava o café onde esta conversa se desenrolava. O da Segurança Social estava em fase de recuperação, uma espécie de mestrado da sua longa carreira de marginal.

O que sonhara ser engenheiro e desistira na quarta classe estava bêbado que nem um cacho. Tinha uma gabardine à detetive, tipo Colombo, e uma prisca ao canto da boca. E dizia, em sentido figurado e um tanto filosófico que, ultimamente, era cada bebedeira, cada chumbo, cada carraspana, que quando se atirava para cima da cama, não adormecia… não adormecia… desmaiava!

O amigo que vivia no quarto alugado pela Segurança Social e que parecia não ter ponta de vinho, muito provavelmente por falta de guita e não de apetite, dava ares de quem não percebia patavina do que se estava a passar, e insistia no grande fenómeno que é, hoje em dia, a tatuage. A tatuage é uma expressão de liberdade, uma forma de intervir numa sociedade adormecida, trazendo à superfície de cada corpo a sua própria identidade e individualidade, os seus afetos, os seus sonhos, as suas desilusões, as suas memórias, aquilo que está preso dentro de cada um pelas grilhetas da sociedade. E mostrava o braço direito que mais parecia um sarcófago egípcio.

O seu interlocutor, se calhar ainda embevecido com as sonhadas linhas programáticas, mais positivas e concretas da engenharia, na cabeça, mas sobretudo com adequados níveis de tintol, dizia que a tatuage era uma cagada. Só cabeças ocas escrevem nos braços, nas pernas, nas costas, a merda que lhes vai lá dentro.

Ninguém de bom senso desenha na pele o que quer que seja. Precisavam era de uns copos, a grande vitamina da vida, para entenderem o mundo e a realidade. Nada melhor do que uns copos para estimular a criatividade, abrir a janela da liberdade e elevar a frustração ao nível do altar.

A conversa já ia longa, suficientemente longa para quase resvalar para um diálogo de conflito. Palavra puxa palavra, a tua filosofia é de esfregão, a tua é uma filosofia de carambola, o que te vale é eu ser um homem da dialética, o que te vale é eu ser um homem de princípios, o que te vale é eu ser um homem para quem a cultura não é um amontoado de peidos mais ou menos sonoros, o que te vale é eu ser um homem que chama a vida pelo nome, o que te vale é eu ser um homem que agarra a vida pelos cornos e pensa com a cabeça bem apoiada, ainda que seja nas pedras da rua. De outra forma já te tinha partido o focinho.

Ai sim? Anda lá para fora que eu te explico, disse o subaluga da Segurança Social. E fez o gesto de sair para a rua. Se tu não entendes puto dos fenómenos da vida, se não entendes a arte da tatuage como manifestação de massas, fenómeno universal traduzindo a mais popular das expressões artísticas da atualidade contemporânea, o máximo impulso da fuga da prisão do ser humano, é porque és burro. E contra burros não pode haver argumentos.

Valeu como vacina contra a agressiva evolução da conversa, a potente manápula de um dos utentes do café, velho cliente de quase dois metros de altura, sempre afável e pacífico, que agarrou um e outro pela gola do casaco e os sentou, como meninos, direitinhos à mesa. Nem mais um pio. Pensamos que, a seguir, não houve, propriamente, acordo quanto à filosofia de cada um. O que houve foi uma abordagem, pelos dois, cremos que paga pelo engenheiro, ao sentido comunitário da vida, através de uma bebedeira comum que obrigou o amigo Zé a pô-los, muito diplomaticamente no passeio, às duas da matina.
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Nota do editor

Último post da série de 9 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25623: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (21): "Na altura própria"

Guiné 61/74 - P25645: Timor-Leste, passado e presente (6): O tenente Manuel de Jesus Pires (1885-1944), herói em Timor, desertor e traidor no seu país ?

 




Nome: Manuel de Jesus Pires
Naturalidade: concelho do Porto
Idade: 20 anos
Posto à data da 1ª matrícula: 2º sargento
Ano da 1ª matrícula: 1915
Curso em que se matriculou: Infantaria
Nº de ordem no Corpo de Alunos: 61
Nº de ordem na classificação final dos alunos que concluíram o curso: 1/18
Cota de mérito final: 128
Escola que frequentou: Escola de Guerra
Registo: 
Nº do livro: 27
Nº de folhas: 413
Processos:
Nº do maço: 166
Nº do processo: 6511
Escolas Preparatórias Superiores: Universidade do Port
o



Cor ar ref, António Carlos Morais da Silva 
 
1. Este é o registo do tenente Manuel de Jesus Pires que consta no tombo da Escola de Guerra, enquanto aluno inscrito no curso de infantaria, em 1915. Tinha então 20 anos, tendo nascido em 1885, na cidade do Porto. Foi o primeiro aluno do seu curso.  

Estes elementos foram-nos gentilmente fornecidos, a nosso pedido,  pelo nosso grão-tabanqueiro Morais Silva (cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor de investigação operacional na AM, durante cerca de 2 décadas; no CTIG, foi  instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972; fez parte do Grupo L34, na Op Viragem Histórica, no 25 de Abril de 1974). 

Não se sabe ainda, com exatidão, as circunstâncias da morte do então tenente Pires, em Timor, durante a II Guerra Mundial (*). Sabe-se, isso, sim que foi um dos heróis da resistência luso-timorense durante a  ocupação japonesa do território, em articulação com os australianos e holandeses, tendo salvo bastantes vidas humanas, de portugueses europeus e timorenses. 

Terá morrido, no cativeiro, às mãos dos japoneses, c. 1944. 

O actor Marco Delgado no papel de Tenente Pires,
na série "Abandonados" (realização de Francisco
Manso, produção RTP, 2022). Imagem: cortesia de RTP e 
Time Out (20 de dezembro de 2022)


2. O seu diário de guerra chegou a Portugal, salvo por Carlos Cal Brandão, um advogado português deportado em Timor desde 1931, e seu companheiro de resistência.

Foi com base nesse diário (e outras fontes arquivísticas) , que o historiador António Monteiro Cardoso (1950-2016) escreveu o livro "Timor na 2.ª Guerra Mundial — O Diário do Tenente Pires" (Lisboa: Centro de Estudos de História Contemporânea, ISCTE, 2007), livro que por sua vez inspirou o realizador da série televisiva "Abandonados", Francisco  Manso (também autor do filme "O Cônsul de Bordéus", 2011). (A série "Abandonados", em 7 episódios, passou na RTP entre 21 de dezembro de 2022 e 15 de fevereiro de 2023, podendo ser vista ou revista, aqui, na RTP Play).

O tenente Pires começou a escrever um  diário, a partir do natal de 1942, em plena fuga pelo interior de Timor, e depois na Austrália, terminando antes de ele desembarcar de novo em Timor, a partir de um submarino americano, com uma missão arriscada, em meados de 1943. O comando que ele chefiava, regressou a Timor para lançar uma operação de guerrilha, a Op Lagarto (de 1 de julho a 29 de setembro de 1943). Acabou por ser ferido e capturado pelos japoneses (juntamente com um sargento australiano e vários timorenses).

Mas há um outro militar português, o tenente António Oliveira Liberato, e outros portugueses, civis e militares, que se empenharam na resistência aos japoneses, contrariando as orientações de Lisboa. Tudo indica que, no caso do tenente Manuel de Jesus Pires, se fosse vivo e regressasse à Pátria, seria julgado por traição e deserção. 

Guiné 61/74 - P25644: Os 50 anos do 25 de Abril (29): Os 9 episódios da série documental "A Conspiração" (RTP,. 2024) podem ser descarragados, até ao fim do dia 17, segunda feira (Cor art ref Morais Silva, membro do Grupo L34, Op Viragem Histórica, 25 de Abril de 1974)

1. Mensagem de ontem, 15/06/2024, 17:37, do cor art ref Morais Silva, nosso grão-tabanqueiro nº 784, autor das séries publicadas no nosso blogue:

  • In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918);
  • In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75);
  • Estudos (1): Guerra de África - O QP e o Comando das Companhias de Combate.
 Do seu vasto e brilhante CV militar, recordamos, entre outros factos, que foi: (i) cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor de investigação operacional na AM, durante cerca de 2 décadas; (ii) no CTIG, foi  instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972; e (iii) fez parte do Grupo L34, na Op Viragem Histórica, no 25 de Abril de 1974. 


Caro Luís Graça:


2. Nota do editor LG:

O cor art ref Morais Silva é uma pessoa que muito prezo, pela sua independência, frontalidade e exigência intelectual e moral. Nas "3 linhas curriculares" que lhe pedi, para a sua apresnetação à Tabanca Grande (*), ele não mencionou, certamente por modéstia, a atribuição que lhe foi feita da Medalha de Prata de Serviços Distintos com Palma, pela sua brilhante e corajosa atuação no TO da Guiné, nomeadamente à frente da CCAÇ 2796, em Gadamael.

Nas "quatro linhas" que acabou por nos mandar sobre sobre o seu CV militar, ainda referiu: "Andei cerca de duas dezenas de anos a comandar e ensinar 'coisas artilheiras' e da matemática na Academia Militar, onde cabe referir a participação no pronunciamento do 25 de Abril; ainda, deslocamentos para a EPA, GAC/Brigada Mecanizada Independente, RALIS, IAEM e Fort Sill (EUA)".

Ontem tive ocasião, em troca de mensagens, de lhe dizer:

(...) "Gostei muito de ver a sua 'prestação' na série 'A Conspiração'. Acho que é um grande documento para a História e uma justíssima homenagem a vocês, conspiradores, que honraram o melhor da nossa história e do nosso povo, e por quem eu, pessoalmente, tenho uma enorme dívida de gratidão" (...).

Os 9 episódios da série documental "A Conspiração", que passarana na RTP entre 24 de abril e 10 de junho de 2024, podem ser vistos ou revistos na RTP Play, aqui. (**)
________________


(**) Último poste da série > 10 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25629: Os 50 anos do 25 de Abril (28): Hoje, na RTP1, às 21:01, o 9º (e último) episódio da série documental, "A Conspiração", do realizador António-Pedro Vasconcelos (1939-2024)

Guiné 61/74 - P25643: Elementos para a história do Pel Caç Nat 54, "Águias Negras" (1966/74) - Parte II: Com o José António Viegas, por Bissau, Bolama, Mansabá, Enxalé e Missirá, no 2ºs emestre de 1966




Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 54 > 1966 > O alf mil Marchand (ou Marchã) junto ao depósito de géneros, destruído no ataque de 22/12/1966


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 54 > 1966 > Mais uma vista parcial do destacamento (e tabanca), depois do ataque de 22 de dezembro de 1966.



Guiné >  Rio Geba > Pel Caç Nat 54 >c. agosto de 1966 >  No "cais" do Enxalé: da esquerda para a direita, o José António Viegas, o alf mil Marchand (Ou Marchã), ambos do Pel Caç Nat 54, eo fur mil enf, da CCAÇ 1439


Guiné >  Rio Geba > Pel Caç Nat 54 > Agosto  1966 > Nos barcos "turras" (Casa Gouveia), a caminho o Enxalé


Guiné >  Rio Geba > Pel Caç Nat 54 > Enxalé > Agosto de 1966 >  Vacas comparadas em Bissá, pelo comandante da CCAÇ 1439, cap Pires.

Fotos (e legendas): © José António Viegas  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Confirma-nos, por email de ontem, o José António Viegas, que, no início, o Pel Caç Nat 54, formado no CIM de Bolama, era constituído por:

  • alferes Carlos Alberto de Almeida e Marchã (ou Marchand);
  • furriel mil Álvaro Valentim Antunes (morto na 1ª mina);
  • furriel Arlindo Alves da Costa (DFA, ferido na segunda mina);
  • fur mil José António Viegas;
  • 1ºs Cabos Manuel Januário (DFA), Coelho (DFA) e João Simão (telegrafista);
  • os soldados, do recrutamento local, eram das etnias Papel, Fula, Mandinga e Olof (um deles) (*)

Na primeira foto acima, o alferes Marchand (ou Marchã) está junto ao depósito de géneros depois do ataque a Missirá, em 21 de Dezembro de 1966.



José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54
 (Bolama, Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole,  
Ilha das Galinhas, 
1966/68)


2. O José António Viegas, nosso grã-tabanqueiro nº 587 (desde 11 de novembro de 2012),  continua a ser a fonte privilegiada de informação sobre o seu Pel Caç Nat 54, de que é um dos "pais-fundadores". Daí que o seu percurso no CTIG, de 1966 a 1968, também o é desta subunidade, de que... "não reza a História" (*).

Vamos recordar alguns dos seus passos (**):

(i) Bolama, agosto de 1966

(...) Embarquei para o CTIGem 30 de julho de 1966,  no Uíge. Fui em rendição individual para ir formar, em Bolama, com outros camaradas, os primeiros Pelotões de Caçadores Nativos. Chegámos a 3 de agosto. (...)  Quatro  dias depois seguimos para Bolama para receber os Pelotões e fazer os treinos operacionais. O meu Pelotão foi o 54.

(...) Aqui apanhei o meu primeiro paludismo que me deixou de rastos por uns dias. O cheiro de que estávamos numa guerra e não de férias em África, era o ouvir de rebentamentos todas as noites em S. João, que ficava em frente a Bolama, e em Tite, e logo de seguida fazer a guarda de honra a um camarada que tinha morrido no rebentamento de uma bailarina em S. João e que foi enterrado no cemitério de Bolama.

(...) A minha estadia em Bolama, antes de ser colocado com o meu Pel Caç Nat 54 em Mansabá..., lembro-me bem daquela cidade já em degradação mas ainda com várias edificações em bom estado, como os correios, junto à piscina do Cabo Augusto onde se passavam os bons tempos de lazer, a casa do Governador e o Hotel, que estava em boas condições, onde muitos camaradas vinham descansar e passar férias.

(ii) Mansabá, setembro/outubro  de 1966

(...) No fim de Agosto, depois de ter terminado o treino operacional, seguimos para Bissau e depois para Mansoa, numa coluna enorme, onde se juntaram mais militares com destino a Mansabá.

A coluna até Cutia decorreu com normalidade, mas a partir daqui foram tomadas todas as precauções até Mansabá, onde se ouviram alguns tiros e aviso.

Em Mansabá estivemos 45 dias com a CCAÇ 1421. Aqui começa a nossa entrada na guerra. Logo nos primeiros dias fomos fazer um golpe de mão e, como tal, foi posta à prova a nossa impreparação para reagirmos debaixo de fogo. Quando se chegou ao objectivo, foi lançado o ataque pelo homem da bazuca e, debaixo daquele fogachal, eu de pé com as balas a assobiar sem saber o que fazer.

Aqui começa a minha preparação com os melhores operacionais, os meus soldados nativos, o meu cabo Ananias Pereira Fernandes, o homem que não gostava de G3 e só usava a Madsen, que me joga para o chão e me ensina a organizar e dispersar debaixo de fogo.

Lembro-me o que aprendemos em Vendas Novas com aqueles filmes da guerra da Argélia, no meio de dunas, e nós íamos para a selva, enfim ainda havia poucos formadores com experiência de combate.

(...) Voltando aos meus 45 dias em Mansabá... (Pena que não tenha fotos desta fase pois ardeu-me tudo no ataque em Missirá.)

Nos primeiros dias em Mansabá, ao cair da noite, começou o nosso obus 8.8 a cantar, vim até ao pé da bateria falar com o artilheiro um Fur. Mili. cabo-verdiano, perguntar o que se passava, dizendo ele que tinham informações que o Amílcar andava por ali.

Na semana seguinte foi feita uma operação em forte com a 5.ª CComandos, a CCP 121, a CCAÇ 1421 e o nosso Pelotão. Entrámos pelo Morés, os Comandos e os Páras fizeram o estrago e voltamos.
Um Sargº. Paraquedista trocou o seu camuflado com o meu, soube há pouco tempo que morreu com a doença maldita e que vivia aqui perto de Loulé.

Todas as semanas estávamos a sair sempre à noite. Nas progressões, até me habituar no escuro da noite, às grandes teias de aranha e aos terríveis bicos das Micaias, foi uma tortura.

Antes de sairmos, fomos montar uma emboscada no Alto de Momboncó com um Pelotão da 1421. Estava com o meu pelotão emboscado quando vejo os Fiat a picar sobre nós, deu para assustar, levantámos com as armas para o alto e vejo o asa a desviar, logo de seguida ouviu-se largar as bombas e o cheiro horrível de petróleo. Este era um dia não, e no regresso apanhámos com uma emboscada de abelhas, os nativos largaram as armas e toca a fugir. O Sargento Monteiro da 1421 ficou bem picado e ainda por cima tinha pouco cabelo, ficando num estado lastimável.

Desta CCAÇ 1421 lembro-me do Cap Carrapotoso, já falecido, e dos Furriéis Fernandes e Passeiro. (...)

(iii) Enxalé, novembro de 1966

(...) Os poucos dias que estive em Bissau, foi para tomar contacto com a cidade, um dos sítios de encontro era o Café Bento, conhecido pela a 5ª Rep, onde encontrei amigos que nem pensava que estavam por aqueles lados.

Neste café sabiam-se as novidades todas do mato e também as histórias que contavam aos piriquitos. Havia um pouco de tudo, aqueles que diziam que estávamos ali na guerra para defender os interesses da CUF que era representada pela Casa Gouveia, outros que diziam que ainda iam voltar situações piores que a Ilha do Como.

Os frequentadores assíduos do Café aconselharam-me logo que se quisesse bons livros era falar com o Sr. Bento, pois que certos livros a Pide ia lá buscar, mais tarde tive ocasião de presenciar.

Passados que foram estes curtos dias em Bissau, lá fomos embarcados nos barcos da Casa Gouveia, que iam levar abastecimentos a Bambadinca, e navegando rio Geba acima durante a noite, aconchegados da humidade no meio da carga.

Chegámos ao Enxalé pela manhã. As barcaças encostaram, não havia cais, fomos recebidos pela Companhia 1439 e pelo Pel Caç Nat 51 que já estava naquele aquartelamento.

Fui encontrar o pessoal da CCAÇ 1439 um pouco desmoralizado pois um mês antes, em outubro, tinha rebentado uma mina em Mato Cão, na ida houve um primeiro rebentamento que pulverizou um soldado açoriano, e na volta outro rebentamento que resultou na morte do furriel Mano.

Esta Companhia era comandada pelo Capitão Pires, um grande homem e um bom operacional.

A nossa primeira saída foi para ir a Bissá onde o BCAÇ 1888 queria fazer um destacamento.
Fomos direito a Porto Gole e depois seguimos para Bissá, era impressionante ver aquele aldeamento, no chão balanta, no meio de uma grande clareira com bastante gado e celeiros de arroz enormes.

Lembro-me do cap Pires dizer:

- Um destacamento aqui, no meio de um dos principais fornecedores do IN ? Vai correr muito sangue.

E foi verdade, entre 1967 e 1968 muitos morreram e muitos ficaram feridos.

Regressámos com gado comprado para a Companhia.

Nesta mês de Novembro a nossa missão era fazer colunas a Missirá e a Porto Gole e umas operações na zona. Lembro-me do alferes Zagalo de Matos que,  quando saía para as operações o seu ordenança trazia o camuflado impecável e as botas a brilhar, tinha que estar todo a rigor. Ainda há dois para três anos, quando o encontrei nas suas andanças teatrais, lhe falei nisto que ele recordou com saudade. (Já partiu).

Havia na companhia um Furriel que era professor, o Farinha, dava aulas aos militares, a maior parte madeirenses, alguns analfabetos, e dava aulas numa escola improvisada no aldeamento, não esqueço a fome de aprender daquelas crianças.

(iv) Missirá, dezembro de 1966:

(...) O Capitão Pires, da CCAÇ 1439,  querendo juntar o máximo da Companhia para passarem o ultimo Natal juntos, enviou o nosso Pelotão 54 para Missirá, todo o pessoal dizia que íamos passar umas férias, pois aquele destacamento não tinha problemas de ataques há muito.

Instalámo-nos e fizemos o respectivo reconhecimento. No dia 22 recebemos o correio,  via Bambadinca, com algumas encomendas de Natal e preparávamos o nosso primeiro Natal na guerra. Depois do jantar, e depois de verificar os postos, fomo-nos deitar. 

Na nossa palhota dormíamos os três furriéis. Enquanto o sono não vinha,  íamos falando até que, por volta das 10 horas da noite, começa a entrar pela nossa palhota uma metralha de fogo: explosivas, tracejantes e iluminantes de arma pesada, por sorte o fogo passava todo a um metro acima das nossas camas, foi agarrar nas armas como estavámos, já com a palhota a arder, e tentar organizar a defesa.

Eu fui municiar o meu cabo Ananias Pereira Fernandes , com a MG42,  para o abrigo e tentar pôr o pessoal a fazer fogo o mais rasteiro possível. O destacamento parecia Roma a arder e a pontaria deles era tão grande que conseguiram meter uma morteirada no bidão do azeite no depósito de géneros. O rebentamento deste parecia fogo de artifício.

No meio da gritaria e dos impropérios de um lado e de outro, ouve-se um grito de agarra-lo á mano, pois de certeza que vinham com cubanos.

Depois de quase uma hora de fogo, as morteirada estavam a cair junto ao refeitório onde estava o Unimog debaixo do embondeiro, o soldado condutor da CCAÇ 1439 foge e consegue pôr a viatura a funcionar, que estava com escape livre, para o retirar daquela zona de fogo. Julgo que eles pensaram que vinham reforços e debandaram, foi uma sorte porque as munições não eram muitas, principalmente as de morteiro 60 e bazuca.

Tentou-se a seguir ver se havia feridos, não havendo nada a registar entre os militares, mas acho que na população houve dois mortos e três feridos.

Hipótese de ajuda não tínhamos, nem de Finete, que era o destacamento mais perto, nem de Bambadinca, pois tinham que atravessar o rio. Só aguardando o pessoal do Enxalé.

Logo pelo nascer do dia veio o heli fazer as evacuações, o piloto era o Faísca, moço conhecido do Algarve. Assim que o heli levantou começamos a ouvir metralha, era o pessoal da CCAÇ 1439 e o pessoal do Pell Caç Nat 51 que estava a ser emboscado entre Mato Cão e Missirá. O IN retirou mas ficou emboscado, era lógico que viria ajuda.

Começámos então a olhar para a realidade, palhotas ardidas e grande destruição, dos nossos pertences só tínhamos a roupa vestida no corpo, o resto era tudo cinza. Guardo a única coisa que encontrei, uma moeda de 10 pesos toda queimada. No reconhecimento que fizemos, encontrámos bastante sangue e uma pistola. Era triste ver o destacamento com tanta destruição.

Com o depósito de géneros completamente destruído, pouco tínhamos para comer, fomos a Bambadinca buscar algumas coisas e tentar arranjar roupa.

Chega o dia de Natal, a comida não era muita, vem o meu cabo Januário e outro cabo Ananias dizer que iam dar uma volta para arranjar carne. Chegada a hora do almoço apresentaram um repasto de carne com arroz de xabéu , que estava uma delicia, findo o almoço o cabo africano Ananias chamou-me à parte e deu-me as caveiras dos macacos que tínhamos acabado de comer. Guardei uma como talismã que perdi quando vim da Africa do Sul em 1978. (...)

 (Selecção, reevisão / fixação de texto: LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 14 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25640: Elementos para a história do Pel Caç Nat 54, "Águia Negras" (1966/74) - Parte I: Temos dois representantes na Tabanca Grande, o algarvio José António Viegas (1966/68) e o açoriano Mário Armas de Sousa (1968/70)...



27 de novembro de  2012 > Guiné 63/74 - P10731: Memórias de Mansabá (26): Os meus 45 dias em Mansabá (José António Viegas)