Cópia da capa do livro de Aristides Pereira, Guiné-Bissau e Cabo Verde, Uma luta, um partido, dois países. Lisboa: Editorial Notícias. Novembro de 2002.
Para quem se interessa por aquelas terras, Guiné-Bissau e Cabo Verde, Uma luta, um partido, dois países é uma obra a não perder. São páginas que nos ajudam a reflectir sobre a época de tempestades de que fomos protagonistas.
Os apontamentos abaixo descritos são transcrições e notas soltas (da responsabilidade do co-editor VB) respigadas da obra. Com a devida vénia, a Aristides Pereira e à Editorial Notícias.
V. Briote, co-editor
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"As páginas que se seguem constituem uma visão retrospectiva da História que reflecte anos de tempestade e de ciclones; anos quentes nos quais os debates das armas da razão precediam os combates da razão das armas. Assistimos, nesta retrospectiva, ao desfile de actores verdadeiros ou falsos, tendo como cenário o crepúsculo dos tempos de exclusão colonial e de marcha irreprimível dos povos." (Prólogo, texto do Professor Joseph Ki-Zerbo, Ouagadougou, Burkina-Fasso)
Aristides Pereira recusa o título de Memórias, que muitos achavam dever ser o título da obra.
Iva Cabral, filha mais velha de Amílcar Cabral, escreveu-lhe após as eleições de 1991:
"Agora que tens mais tempo e sossego, espero que comeces a escrever as tuas memórias, já que é um dever que tens não só perante a História mas também perante mim e todos os outros jovens que vocês criaram e que por isso estão ligados ao nosso passado. A história de amanhã será escrita, terá que ter o vosso testemunho. Senão corre-se o risco de ela vir a ser contada por gente que tem como objectivo diminuir, denegrir a vossa luta, que representa no teu caso a maior parte da tua vida."
Aristides Pereira chegou a Bissau em Outubro de 1948, para prestar provas de concurso para operador dos CTT, tendo sido colocado na estação dos Correios de Bafatá.
Naquele tempo, Bissau era a Amura e a parte conhecida por Bissau Velho, onde moravam os civilizados, um conjunto pequeno de casas onde viviam comerciantes portugueses, libaneses e sírios, que se estendia até ao barracão da Casa Gouveia e que era a única parte electrificada da cidade.
A catedral e o Palácio do Governador estavam ainda em construção, a avenida principal já estava delineada, com uma placa central e numerosas mangueiras a ladeá-la.
Depois havia os bairros indígenas, chão de papel, Pilum. Era uma cidade com muito pó no tempo seco e muita lama na época das chuvas, porque as ruas não estavam ainda alcatroadas.
Tendo sido colocado em Bafatá, fez a viagem à boleia na carroçaria de um camião de mercadorias de um comerciante libanês do Gabu. Tempos depois ficou seriamente doente, tendo sido evacuado de urgência para o Hospital Central de Bissau. Após um período de convalescença em Cabo Verde, voltou a Bissau em Novembro de 1949, onde se manteve até 1951.
Havia muito entusiasmo pelo futebol. A UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau) juntava os brancos de Bissau, o Benfica os colonos benfiquistas, embora fosse considerado o clube dos cabo-verdianos por ter muitos jogadores oriundos do arquipélago e o Sporting dos irmãos Peralta (proprietários de uma fábrica de telhas e tijolos), que se esforçavam por recrutar nativos.
É nesta altura que Aristides Pereira conhece a Dr.ª Sofia Pomba Guerra (1) e é também nesta mesma época que se iniciaram os contactos com Abílio Duarte, Fernando Fortes e muitos outros.
Destacado para Bolama, cedo constata que as pessoas tinham medo de falar de tudo o que cheirasse a política. Priva com José Lacerda, funcionário da Capitania dos Portos, Carlos Gomes, empregado da casa comercial Nososco e já na altura nacionalista convicto, James Pinto Bull que exercia as funções de administrador e de cujo círculo de relações fazia parte o médico, o comandante militar e alguns oficiais do exército.
Depois de ter estado em Portugal de férias, onde aproveitou para fazer exames médicos, regressou a Bissau, decidido mais que nunca a envolver-se em algo que modificasse a dominação e a exploração a que via submetidos os povos da Guiné e de Cabo Verde.
É então que conhece Amílcar Cabral, acontecimento que, diz Aristides Pereira, modificaria definitivamente o rumo da sua vida.
A acção do Partido Democrático de Guinée (PDG, Conacri), nos finais dos anos 50, contou com um numeroso grupo de militantes que, no território da então Guiné Portuguesa, trocava ideias sobre a unidade africana na luta pela independência.
Esta consciencialização fez-se sentir no sul da província, sobretudo em Cacine, vindo mais tarde a aparecer em Dacar o RDAG, que reclamava ser uma secção da RDA (2) que tinha por objectivo lutar pela independência da Guiné-Bissau.
Incidentes em 1942, no tempo do governador Vaz Monteiro, em que, diz-se, ocorreram mortandades, agudizaram a consciência da luta pela emancipação.
Elisée Turpin assegura que houve na Guiné, logo a seguir à 2ª Grande Guerra, uma organização liderada por José Ferreira de Lacerda, funcionário público em Bolama, que tinha alguma influência no governo colonial e que esteve quase a ganhar uma eleição para esse órgão, organização essa que acabou por ser reprimida pelas autoridades.
Nessa época, ainda segundo Elisée Turpin, embora não tenha havido um movimento estruturado, houve um que procurava, dentro do quadro das instituições então em vigor, introduzir alterações. Nessa eleição, em 1956, fizeram parte da oposição, Benjamim Correia, Armando António Pereira, João da Silva Rosa e Gastão Seguy Júnior.
Rafael Barbosa (1926/2007) fotografado por Leopoldo Amado (3) em 1989
Rafael Barbosa, refere numa entrevista (3), que em 1948 tinha sido fundado o Partido Socialista, fundado por José Lacerda, César Fernandes, Hipólito Fernandes, Ladislau Justado e por ele próprio. Esse Partido Socialista desapareceu porque, diz Barbosa, “o Hipólito e o César não estavam a gostar muito do trabalho do Lacerda, que queria influenciar as coisas segundo o modelo brasileiro”.
Foram, portanto, muitas as correntes que se opuseram ao regime colonial, nessa época mais na perspectiva de exigência de direitos dos povos guineenses do que propriamente na independência.
Após a 2ª Grande Guerra, alguns estudantes, organizados na Casa dos Estudantes do Império, falhada a tentativa de politização da Casa, criaram em 1951 o Centro de Estudos Africanos, com o objectivo de “reafricanizar os espíritos”, em que Amílcar Cabral desempenhou um papel histórico.
Hugo Azancot de Menezes, são-tomense, fora enviado pelos nacionalistas à República da Guiné (Conacri) com o objectivo de reagrupar os interessados em lutar contra o colonialismo português, de que resultou o Movimento de Libertação dos Territórios sob Dominação Portuguesa.
Com a protecção de numerosas organizações anti-colonialistas, a direcção do então fundado MPLA (com a ajuda de Amílcar Cabral) instalou-se em Conacri, nos finais dos anos 50, a que se seguiu o PAIGC em 1960.
Cópia da brochura do Recenseamento Agrícola da Guiné, Estimativa em 1953, de Amílcar Lopes Cabral
Amílcar Cabral regressou à Guiné em 1952, tendo sido encarregado pelo então governador do território para proceder ao recenseamento agrícola da Guiné, trabalho que executou ajudado pela então mulher, Eng.ª Maria Helena Rodrigues.
Esta tarefa permitiu-lhe contactar com gente de todo o território e conhecer de perto as populações e os seus problemas.
“Em cada tabanca deixava uma palavra como só ele sabia dizer, embora o povo só viesse a interpretá-la devidamente quando lá chegasse a palavra de ordem do Partido para a luta”, escreve Aristides Pereira.
Em 1954, Amílcar, para disfarçar as actividades políticas que vinha desenvolvendo, tentou criar um clube recreativo e desportivo, juntamente com Carlos Silva Júnior, João Vaz, Ricardo Teixeira, Pedro Mendes Pereira, Inácio Alvarenga, Paulo Martins, Julião Correia, Martinho Ramos, Vítor Fernandes e Bernardo Máximo Vieira.
Luís Cabral (4) diz “(…)o projecto de associação começava a tomar corpo e a ter aceitação, enquanto o Amílcar provava não estar disposto a recuar diante das dificuldades. E a denúncia surgiu (…)”.
Vítor Robalo, em entrevista a Leopoldo Amado: “(…) aquilo morreu, mas o Amílcar não parou. Depois, veio a ideia da criação de uma cooperativa (…). Era uma cooperativa de sociedade por quotas de 500 escudos na altura. Cada cooperativista entrava com o que tivesse até completar aquilo, que era para ver se as coisas marchavam”.
Este processo culminou com a fundação do PAIGC em 1956, tendo o encontro, segundo Luís Cabral, “reunido à volta do Amílcar os cinco elementos que estavam em Bissau (...).
Foi no fim da tarde de 19 de Setembro, no número 9-C da Rua Guerra Junqueiro, na casa onde moravam Aristides Pereira e o Fernando Fortes”.
Ainda, fazendo fé em Luís Cabral, "primeiro chegaram o Amílcar e o Luís, depois o Júlio Almeida, tendo Elisée Turpin sido o último. E assim foi fundado o PAI"
Em Fevereiro de 1956 houve uma greve dos trabalhadores do porto de Bissau.
Amílcar, proibido de permanecer na Guiné, foi trabalhar para Angola, tendo ainda passado pela Guiné em Setembro de 1959, afim de se reunir com os seus camaradas.
Em Fevereiro desse mesmo ano, tinha ocorrido o que ficou conhecido como o “massacre do Pindjiguiti”.
Em 1958, Rafael Barbosa, José Francisco Gomes “Maneta”, Ladislau Justado, Epifânio Souto Amado, Tomás Cabral de Almada e Paulo Fernandes fundaram em Bissau, o Movimento de Libertação da Guiné (MLG), criando ainda mais dificuldades ao projecto de unidade que Amílcar perseguia, a par do incremento das perseguições policiais.
O MLG, segundo Aristides Pereira “cedo hostilizou Amílcar, a quem alcunhou pejorativamente de cabo-verdiano”, acusava os cabo-verdianos de serem os homens de mão das autoridades colonialistas, e que pretendiam substituir os portugueses quando estes se fossem embora.
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Notas de vb, co-editor:
(1) Activista, com ligações ao PCP. Deportada para Moçambique, acabou por ir parar à Guiné, onde, segundo Aristides, "desenvolveu uma acção importantíssima na mobilização e consciencialização dos jovens que mais tarde vieram a adeir à luta de libertação nacional. "
(2) Ressemblement Democratique Africain
(3) Leopoldo Amado, historiador bem nosso conhecido, e membro da nossa tertúlia, é amplamente citado por Aristides Pereira
(4) Luís Cabral, meio-irmão de Amílcar, 1º Presidente da Guiné-Bissau (1974/80), foi deposto em 14 de Novembro de 1980 por um golpe militar liderado por Nino Vieira. Luís Cabral e outros membros do PAIGC foram acusados por alguns militantes de dominarem o partido. Esteve preso 13 meses, tendo sido exilado para Cuba, que se tinha oferecido para o receber, até vir para Portugal, onde ainda reside, depois do governo português lhe proporcionar condições para viver com a família. Regressou para uma visita à Guiné-Bissau, em 1999, quando Nino foi desalojado, também por um golpe militar.