terça-feira, 25 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19919: Historiografia da presença portuguesa em África (164): O reino de Fuladu, de Alfa Moló Baldé a Mussá Moló, da bacia do rio Gâmbia ao rio Corubal (1867 - 1936) (Cherno Baldé)


Mussá Moló (1845-1931), ao centro, sentado; de pé, à sua direita, Dembá Dançá, e à sua esquerda Maransará, cabo de guerra deste último (in: Francis Bisset Archer, The Gambia Colony and Protectorate: An Official Handbook, London,  St. Bride's Press, 1906, 364 pp., il.) (*)

Cortesia de Armando Tavares da Silva / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)


1. Mensagem de Cherno Baldé [, Bissau, nosso colaborador permanente, nascido c. 1960, faz anos a 20 de junho,l tem cerca de 190 referêmcias no nosso blogue]: 

Data - Quinta-feira, 20/6/2019, 17h32 

Assunto - O reino de Fuladu, de Alfa Moló Baldé a Mussá Moló, da bacia do rio Gâmbia ao rio Corubal (1867 - 1936) (Notas de leitura) 

Caros amigos Luis Graça e Carlos Vinhal, 

Venho pela presente agradecer a todos pela atenção e carinho de sempre e,  juntamente, envio um texto sobre o tardio e efémero reino de Fuladu (reino dos fulas em mandinga) que surgiu nos escombros do antigo reino mandinga de Kaabu ou Gaabu [, Gabu,] entre as bacias dos rios Gâmbia e Corubal. 

Aproveito, igualmente, agradecer o interessante trecho histórico sobre a deslocação do destemido ten Marques Geraldes até a Indornal, capital do reino de Fuladu e suas consequências (*). Da minha parte estão autorizados a publicar no Blogue, caso tenha interesse que o justifique, em atenção ao nosso ilustre historiador português, Armando Tavares da Silva. 

De Bissau, com saudações fraternais, Cherno Baldé. 


2. O REINO DE FULADU DE ALFA MOLÓ BALDÉ A MUSSÁ MOLÓ,  DA BACIA DO RIO GÂMBIA AO RIO CORUBAL (1867 - 1936) (Notas de leitura) 

por Cherno Baldé

Alfa Moló nasceu no início do séc. XIX na aldeia de Sulabali, região de Firdu (situado entre as duas margens dos rios Gâmbia e Casamansa). O seu avô paterno, Fali Culibali, de origem Bâmbara (Mali), tinha sido comprado por uma família nobre de Fulas pastores,  de apelido «Baldé». 

Mais tarde, entre Malal Culibali,  um dos filhos de Fali Culibali,  e Gueladio Baldé, seu senhor, ambos caçadores, desenvolve-se uma amizade e sobretudo uma cumplicidade que vai permitir a fusão das duas famílias com a adopção pelo seu filho, Moló Egué (futuro Alfa Moló), do apelido dos seus senhores e mestres, eliminando, desta forma, os traços da sua origem servil. 

« Entre o Malal Culibali e Gueladjo Baldé, todos eles grandes caçadores, detentores da mística do ofício, existiam fortes laços de 'badinn’ya' (#),  espécie de pacto de irmandade, de entreajuda e de lealdade,  unindo os membros duma mesma familia mas de linhagens e castas sociais diferentes »,  diz-nos o historiador e especialista da história de Fuladu, o Senegalês Mouhamadou Moustafa Sow (3), Professor de História no Liceu Regional de Kolda, Senegal, apoiando-se nas crónicas e memórias por ele recolhidas na região do antigo Firdu (Gloria Alex) (2). 

Segundo os cronistas, Moló Egué Baldé, com idade de 15 anos, vai a Timbo (Futa-Djalon), para aprender (memorizar) o Alcorão e os rudimentos da religião, convertendo-se ao islamismo. No seu regresso, obtém a permissão de casar com Cumba Udé, filha de Gueladjo Baldé, e futura mãe de Mussá Moló. Entre os Fulacundas de Firdu, Moló Egué e Samba Egué (filho de Gueladjo Baldé) encabeçam a rebelião contra os mandingas pagãos de Gabu, a partir da floresta de Ndorna (Indornal,  na versão portuguesa), onde construiram um fortim (Tata, em mandinga), uma espécie de praça forte, a que, de forma provocatória, designam em mandinga « Mban Ulém – Eu recuso absolutamente…». 

Com a generalização da guerra, enviam um mensageiro ao chefe da Província (Diwal) de Labé, Alfa Ibrahima, a fim de pedir ajuda na sua luta contra os mandingas pagãos de Gabu (Gloria Alex). De 1840 à 1850, intensificam-se em todo o espaço do reino, guerras internas de resistência contra o domínio dos reis mandingas de Gabu. Na sequência, o Alto e o Médio Casamansa transformaram-se em lugares de combates violentos. 

Convertidos ao islamismo, os grupos fulas de Fuladu procuram aliar-se aos Almames de Timbo (Futa-Djalon) para combater os mandingas de Gabu. E, por sua vez, os mandingas islamizados de Gâmbia e do Baixo Casamansa aproveitam-se para se revoltar contra os seus irmãos pagãos de Gabu. Assim, das margens do rio Gâmbia e da Casamança até ao país Gaabunké na Guiné-Portuguesa, os últimos e derradeiros clãs Soninques do império, caiem sob os assaltos dos Fulacundas (Fuladu) e dos Futa-Fulas (Futa-Djalon) assim como dos Marabus mandingas, formando uma verdadeira Confederação de forças muçulmanas. 

Em meados de 1850, os reinos pagãos mandingas (Soninquês) do Médio Casamansa acabam de desaparecer, corridos pelos muçulmanos e os chefes pagãos foram substituídos por Marabus, animados pelo desejo da guerra santa contra os não muçulmanos. Bercolon ou Berecolon (Sankolla), praça forte Soninquê de Birassu (Braço,  na versão portuguesa), é assaltado e destruido em 1852. 

A partir de 1854, a França entra em cena na região e inicia o processo de colonização em direcção ao interior do Sudão Ocidental com o Faidherbe – Capitão e Governador do Senegal (1854/1864). Em 1867, os Confederados muçulmanos, liderados por Alfa Ibrahima de Labé, conseguem tomar Cansala, capital do império mandinga, onde morre Djanké Waly, o último Mansa de Gabu. 

Na iminência da sua derrota, Djanké Waly manda incendiar o paiol de pólvora e acontece o morticínio conhecido em mandinga por «Turuban », ou seja,  o fim da sementeira (dos mandingas de Gabu). Em 1873, a guerra termina com a derrota dos mandingas pagãos de Gabu. Alfa Moló e seus companheiros assinam o tratado de paz com o chefe mandinga, Fodé Madja. 

Entretanto, no campo dos fulacundas há um forte desentendimento sobre quem deve tomar as rédeas do poder no novo reino de Fuladu. Por um lado posiciona-se Moló Egué e grande parte dos seus seguidores saídos das fileiras dos « Jiaábhé » Fulas-Pretos e, por outro, o Samba Egué, da linhagem Fula-Forro,  que pretende ser o detentor da nobreza e logo da condição natural e necessária para chefiar o novo reino que acaba de nascer. 

A batalha entre as duas partes desentendidas terá lugar na localidade de Boguel e termina com a morte de Samba Egué e a ascenção fulgurante de Moló Egué, o filho do antigo cativo (Malal Culibali) que, doravante, assume a liderança do que poderia ser uma dupla revolução ou uma dupla rebelião no reino de Fuladu : a rebelião contra o domínio dos mandingas pagãos de Gabu e também a rebelião contra os seus antigos senhores, da linhagem Fula-Forro. 

Dali para a frente as coisas nunca serão como dantes em Fuladu, e esta nova situação política vai alterar o cenário das relações económicas e sociais até aí estabelecidas no seio das duas categorias de Fulacundas, convivendo no mesmo espaço territorial e que, mais tarde, serão reforçadas pela decisão dos europeus de acabar com todas as relações de servidão entre os seus sujeitos. Mas, a morte de Samba Egué (filho de Gueladjo Baldé) e a consagração de Moló Egué (filho de Maalal Culibali), visto na óptica dos cronistas da epopeia de Fuladugu (terra dos fulas , em mandinga), configura uma violação do pacto entre as duas linhagens da família « Baldé », com origens diferentes mas consagradas pelo ritual de irmandade e de lealdade «badinn’ya». 

Alfa Moló divide o seu reino em cinco Províncias, entregues aos seus homens de confiança: 

(i) os territórios de Monting (Bankuton) e Madina Pakane foram entregues a Maudê Baldé;
(ii) a Provincia de Manda Serakholé – Daba Baldé e os seus descendentes actuais vivem em Bantantoh Thierno (situado a Oeste de Kerewane);
(iii)  Sintcha Suruel – Alanso Cumbirry, seus descendentes actuais formam a familia de Moulaye Baldé (Bâba Moulaye) em Velingará;
(iv) Kandiaye (koukane) – Faran Djabu;
(v) Kaone – Coly Embaló, seus descendentes vivem em Pathiana, actual regiao de Gabu (N’gaide Abdarahmane). 

A partir de 1882, com Mussá Moló (1845-1931), as relações com o Futa-Djalon deterioram-se e a hostilidade é permanente, facto que será bem aproveitado pelos Franceses, presentes na sua colónia do Senegal, onde actua o Governador Faidherbe, decidido a ampliar e pacificar a colónia francesa do Senegal. 

Mussá Moló, para fazer face à ameaça dos Almames de Futa-Djalon que, de facto, o consideram como seu vassalo, vai aproximar-se dos Franceses com os quais vai assinar, em 1883 (3 de Novembro), um tratado de amizade e de protecção (N’gaide Abdarahmane). Com esse acordo, Mussá Moló pensa poder proteger-se contra as pretensões expansionistas de Futa-Djalon e ao mesmo tempo, poder conservar e ampliar o reino legado pelo seu pai. A França, por seu lado, está satisfeita, pois com o acordo vai poder construir o caminho de ferro há muito projectado do Este a Oeste, eliminar todas as contestações da parte da Grã-Bretanha e Portugal sobre aqueles territórios do Alto Casamansa e abrir assim o caminho de acesso ao Futa-Djalon, o seu próximo alvo, já à partir de Noroeste (N’gaide Abdarahmane). 

Alpha Yaya, que sucede ao seu pai (Alfa Ibrahima), vai protestar junto do Governador do Senegal e da Guiné-Francesa contra o que eles consideram de secessão do seu vassalo de Fuladu, mas os Franceses fazem orelhas moucas e preparam-se para atacar o Futa-Djalon com a ajuda de Mussá Moló.

Em 1894 (Abril), Mussá Moló parte em campanha e, com o apoio dos Franceses, derrota o rei de Pakisse, vassalo de Alpha Yaya, mas estes não perdem tempo e apertam o cerco, propondo ao Mussá Moló a assinatura de um novo tratado (1896), entre outros pontos, o pagamento de impostos (metade dos impostos de Fuladu deviam ser entregues a França) e a construção de um posto militar em Hamdalaye, capital do reino de Fuladu, situado entre a bacia do rio Gâmbia e o rio Casamansa. 

Mussá Moló que se aproximara dos Franceses para se libertar da dependência de Labé (Futa-Djalon), e extender o seu território, escolheria assim a melhor forma de perder a sua independência, pois os Franceses encontraram nele o meio para assegurar as suas ambições coloniais naquela zona de Africa (N’gaide Abdarahmane). Em 1903, Mussá Moló, sentindo o peso insuportável de tutela da França, foge para a Gâmbia, junto dos Ingleses, pensando encontrar um tutor que fosse menos exigente. Antes de partir, mandou queimar todas as aldeias a volta da sua capital e foi acompanhado por uma multidão de seguidores. 

Os Ingleses receberam-no muito apreensivos e foi autorizado a ficar sob custódia inglesa, com a condição de mandar embora a sua gente. Decididamente, Mussá Moló tardou muito a compreeender que o tempo dos monarcas africanos tinha chegado ao fim. Morreu em Kesserkunda, sua última residência, em 1931, com 85 anos. Como tinha acontecido com o seu pai, Mussá não será sepultado na sua terra natal e muito menos no território que tinham conquistado e, em partes opostas, o pai, Alfa Moló, enterrado na fronteira Sul, em Dandum (território da Guiné-Portuguesa) e o Mussá na fronteira Norte (território da Gâmbia) deixando o reino de Fuladu dividido em pequenos regulados independentes. 

Tendo durado apenas pouco mais de meio século (69 anos), o reino de Fuladu será um reino efémero (1867-1936). Aconteceu assim, dizem os cronistas, devido a violação de uma das partes (Alfa Moló), ao pacto de sangue, «Badinn’ya»,  celebrado entre Maalal Culibali (o servo) e Gueladjo Baldé (o senhor), aos quais unia uma verdadeira irmandade de sangue, para lá das condições e ditames sociais da época em que viviam.

Com a partida de Mussá Moló para a Gâmbia, a guerra e as razias que a acompanhavam tinham, finalmente, acabado no território de Fuladu e os chefes das províncias (Regulados), que muito o temiam pela sua crueldade e violência, acabaram por se sentir livres de celebrar alianças com os representantes locais das potências coloniais (França e Portugal), os novos senhores da situação que, com a Convenção Luso-francesa de 1886, tinham acabado de traçar as fronteiras que iriam separar os territorios das suas colónias. 
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Notas do autor:

# «Badinn’ya»:  termo mandinga que designa uma relação de irmandade outra que não consanguínia. As famílias e/ou pessoas ligadas por estas relações deviam considerar-se como irmãos de facto, com todas as obrigações e deveres de solidaredade e entreajuda a isso inerentes, e que nenhuma das partes podia violar sob pena de sofrer o castigo dos Irãs onde este ritual era celebrado. 

Referências bibliográficas : 

1. Ngaidé Abdarahmane : Le royaume Peul du Fuladu, de 1867 a 1936: L’Esclave, le Colon et le Marabout, 1997/98, Thèse de doctorat de troisième cycle en histoire, UCAD (Université Cheik Anta Diop, Faculté des Lettres et Science Humaines, Dakar, Sénégal. 

2. Gloria Lex : Le Dialecte Peul du Fouladou (Casamance, Sénégal): Thèse de doctorat en Linguistique et Phonétique. 

3. Mouhamadou Moustafa Sow, Professeur d’histoire, Lycée Régional de Kolda, Sénégal.

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(**) Último poste da série > 21 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19906: Historiografia da presença portuguesa em África (162): Ainda a viagem, ao Indornal (na atual Gâmbia), em março de 1883, do alferes Francisco António Marques Geraldes, cmdt do presídio de Geba, para ir resgatar duas mulheres cristãs, raptadas em São Belchior (Cherno Baldé / Armando Tavares da Silva / Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19918: (D)o outro lado do combate (51): a morte de Jaime Silva ("Guerra Mendes"), na versão de Bobo Keita


Jaime Silva (ou "Guerra Mendes", nome de guerra), morto em 14 de fevereiro de 1965. Tem hoje nome de rua na Bissau Velha: Rua Guerra Mendes, antiga Rua Dr. Oliveira Salazar... Foto do Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares. Com a devida vénia...



1. Guerrilheiros caídos no campo da honra

por Bobo Keita (*)

O Jaime Silva, mais conhecido por "Guerra Mendes", era o nosso rapazinho ali de Bissau. Ele era do Gã Geba. Foi tirar o seu curso na China e atribuiram-lhe a zona do Ntugal onde devia desenvolver as suas atividades de guerrilha.

Um dia, levantaram-se cedo para atravessar a bolanha do Ntugal, nos diversos patrulhamentos que faziam na região. Foram nesse dia detetados pela aviação portuguesa. Surpreendidos em campo aberto, ainda tentaram disparar contra o avião de caça que mergulhava na direção onde estavam. "Guerra Mendes" foi mortalmente atingido pelas rajadas do avião e caiu ali mesmo, sem vida. 

Isto deve ter acontecido em 1965 ou 1966, lembro-me que foi muito depois do Congresso de Cassacá. "Guerra Mendes" estava previsto para ficar como comandante daquela área do Ntugal.

(*) Fonte: Excerto de Norberto Tavares de Carvalho - De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011, pp. 237 e 240-241.


2. Nota do editor:

O topónimo "Ntugal" não me parece que exista, muito menos na Guiné-Bissau. Seria N'Tuane [ou Antuane?), povoação que existia, em 1961, entre Empada, a oeste, Buba, a nordeste ? (Vd. carta de Empada).

É possível que haja aqui um "lapsus linguae" do entrevistado ou do entrevistador. De qualquer modo, o mais importante é registar aqui a versão de Bobo Keita (ou Queita) (Bissau, 1939- Lisboa, 2009)sobre as circunstâncias da morte de "Guerra Mendes". O antigo comandante do PAIGC, Bobo Keita, foi entrevistado por Norberto Tavares de Carvalho, entre 2006 e 2008.

Segundo a versão oficiosa do PAIGC (carta de 'Nino' Vieira para Aristides Pereira, com data de 16/2/1965, e reproduzida pelo Jorge Araújo (*), o "Guerra Mendes" terá morrido em Bulel Sambá, a nordeste de Bedanda (Vd. carta de Bedanda, 1955), na sequência da Op Giro.

Ficamos, em todo o caso a saber algo mais sobre o Jaime Silva: (i) era mais novo (um "rapazinho") do que o Bobo Keita; (ii) era natural de Bissau, de Gã Geba;  e (iii) passou também pela China, onde fez a sua formação político-militar. 

Por  carta de janeiro de 1965,endereçada a Luís Cabral, e reproduzida pelo Jorge Araújo (*), verifica-se que era um jovem quadro com escolaridade.

Na altura em que morreu deveria estar na região de Quínara, como comandante, mas não chegou a "tomar posse" do lugar, por óbvias razões de disciplina... Não foi caso único, a liderança político-militar efetuada a partir do exterior (Conacri) levantava não poucos problemas disciplinares...Este terá sido um deles... Veja-se o raspanete que lhe passa o Aristides Pereira, dias antes de morrer:

(...) "Recebemos a tua carta [Jan65], mas continuamos a estranhar saber-te em Antuane, quando há tanto tempo contamos contigo em Quínara. Palavra que não compreendemos. Temos como indispensável a tua presença e o teu trabalho em Quínara. Esperamos que arrumes tudo aí, e que sigas o mais urgentemente para a tua área, a fim de efectuares o trabalho que te está determinado, e com o que contamos absolutamente." (...) 


A versão de Bobo Keita, sobre as circunstâncias da morte de "Guerra Mendes", é mais "heróica" do que a versão de 'Nino' Vieira: em campo aberto, em plena bolanha, completamente indefeso, o Jaime Silva enfrenta, de arma em punho, um caça-bombardeiro T-6 (ainda não havia o Fiat F-91, no TO da Guiné)...

Hoje tem nome de rua na Bissau velha, junto à zona portuária: Rua Guerra Mendes (, a antiga rua Dr. Oliveira Salazar). 


Mas será que os jovens guineenses de hoje conhecem a história deste "combatente da liberdade da Pátria" ? Não conhecem, nem a deste nem de outros, nem muito menos dos que combateram ao lado dos "tugas", têm necessidades mais prementes no presente do que conhecer o passado...embora não haja futuro nem conhecimento do passado. 

Hoje, passa-se fome em Bissau, ainda há dias recebi um pedido de ajuda pungente do António Baldé, nosso grã-tabanqueiro, que tinha um sonho, ser apicultor. [Pertenceu ao Pel Caç Nat 57 (São João, 1969/70) e à CART 11 (Paunca e Sinchã Queuto, 1970/71). Era 1º cabo art. ]




Guiné > Bissau > s/d [ c. 1960] > Rua Dr. Oliveira Salazar [, hoje Rua Guerra Mendes]. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 135". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte, SARL).
Colecção: Agostinho Gaspar / Digitalização e edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

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Guiné 61/74 - P19917: (D)o outro lado combate (50): a morte de 'Guerra Mendes' (Jaime Silva) em Bulel Samba, Buba, em 14 de fevereiro de 1965, na Op Gira - Parte I (Jorge Araújo)


Citação: (1963-1973), "Jaime Silva (Guerra Mendes)", CasaComum.org, Disponível HTTP:http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43473 (2019-4), com a devida vénia.




Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue; 


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE: A  MORTE DE 'GUERRA MENDES' EM BULEL SAMBA [S2-BUBA], A 14FEV1965, NA OPERAÇÃO "GIRA", UM ANO DEPOIS DE TER SUBSTITUÍDO RUI DJASSI (FAINCAM) NO COMANDO DA "ZONA 8" (QUINARA) POR DECISÃO DO I CONGRESSO DO PAIGC : "HERÓI DA PÁTRIA", TEM HOJE NOME DE RUA EM BISSAU  (Parte I)


1. INTRODUÇÃO

Depois de nas últimas narrativas ter percorrido "um pedaço do inferno", como foi o caso do Xime (*), local de muitas memórias para a vida daqueles que lá viveram durante as diferentes épocas ou períodos, regresso, de novo, à actividade operacional desenvolvida na região de Quínara, no ano de 1965, recuperando alguns acontecimentos que fazem parte da historiografia da Guerra, com recurso, uma vez mais, às informações obtidas "(d)o outro lado do combate", e da sua triangulação com os documentos "oficiais" das NT.

Como o título acima sugere, o presente texto, que será dividido em duas partes, terá como objecto de análise, o aprofundamento do contexto sócio-histórico que originou a morte do Cmdt da "Zona 8", Guerra Mendes [nome de guerra de Jaime Silva], ocorrida em 14 de Fevereiro de 1965, em Bulel Samba [S2-Buba], dois anos depois do início do conflito e um ano após ter substituído Rui Demba Djassi «Faincam», morto em 24 de Abril de 1964 na península de Gampará [P19532 e P19536], durante a «Operação Alvor». (**)


2. SUBSÍDIO HISTÓRICO DAS ACÇÕES DE 'GUERRA MENDES' APÓS SUBSTITUIR RUI DJASSI NO COMANDO DA ZONA 8 (QUINARA)  (***)


Nomeado na reunião de quadros do PAIGC (I Congresso) realizada em Cassacá, em Fevereiro de 1964, como novo responsável pela Zona 8 (região de Quinara) [P19433], em substituição do anterior Cmdt Rui Djassi (Faincam) (1937-1964), "Guerra Mendes" viria a tombar na área da sua intervenção, a 14 de Fevereiro de 1965, domingo, exactamente um ano após ter assumido esse cargo, no decurso da «Operação Gira», na qual participaram as seguintes unidades: CCaç 594, CCav 702, Pel Rec Fox 888, CCS/BCaç 513 e Pel Mort 979.

O modo como esta operação se desenrolou será abordado na Parte II.

Considerando o período em que decorreu o desempenho da sua missão, os subsídios históricos considerados para a elaboração desta narrativa são exclusivamente os que constam no espólio documental de Amílcar Cabral (1924-1973), existentes na Fundação Mário Soares,  disponíveis no portak Casa Comum, em particular a correspondência trocada entre si e alguns dos seus responsáveis directos.


Citação: (1963-1973), "Reunião de responsáveis do PAIGC com a população", CasaComum.org Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43984 (2019-4), com a devida vénia.


2.1. A PRIMEIRA CARTA - [JAN1965] ENVIADA DE ANTUANE: DE GUERRA MENDES PARA LUÍS CABRAL, DANDO CONTA DA ACTIVIDADE DESENVOLVIDA EM ANTUANE

Exmo. Camarada Luís Cabral

Em primeiro de tudo,  estimo que esta carta lhe vá encontrar em bom estado de saúde, ao lado da sua família.

Eu por cá vou indo bem de saúde,  enfrentando somente grande dificuldade que é para o bem do nosso povo.

Recebi as suas duas cartas a qual li e fiquei contente com a sua exposição e mormente com o meu estado em N'tuane [Antuane]. Por bem dizer posso-lhe afirmar que não me fixei em N'tuane [Antuane], ando por poda a parte da área que o Partido me incumbiu de controlar. Se estaciono em N'tuane [Antuane] é devido à análise da condição ou da decisão que os nossos inimigos tomaram a fim de fechar a linha de fronteira, e por essa razão a minha estadia em N'tuane [Antuane] é da possível necessidade a fim de dirigir camaradas.

Da minha estadia em Quínara que o Camarada Luís [Cabral] menciona, e que podia ficar descansado, porque tenho um camarada de grande confiança que é o Quemo Mané, e devido também os meios que já desenvolvi, tanto a politização da massa como bases novas que abri, tenho a certeza que tudo corre bem e há-de continuar. Mas contudo isso não passa um mês sem chegar lá, assim como a toda a parte que o Partido me ordenou de controlar.

Junto o portador agradecia enviar linhas de nylon e pilhas para fazer gerador eléctrico para instalar minas nos rios. Agradecia mandar-me oferecer jornais e livros de política.

Termino, esperando com toda a esperança o seu favor. Sou Guerra Mendes.

[Revisão / fixação de texto: JA]




2.1.1.  ORIGINAL DA PRIMEIRA CARTA






Citação: (s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34412 (2019-4), com a devida vénia.


Fonte: Casa Comum; Fundação Mário Soares. Pasta: 04613.065.092. Assunto: Explicações sobre o facto de permanecer em N'tuane. Estadia em Quinara; politização de massas e abertura de novas bases. Solicita material para um gerador eléctrico. Remetente: Guerra Mendes. Destinatário: Luís Cabral. Data: s/d. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.




Citação: (1963-1973), "Dois combatentes do PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43751 (2019-4), com a devida vénia.



2.2. A SEGUNDA CARTA - [09FEV1965] ENVIADA DE CONACRI:  DE ARISTIDES PEREIRA  PARA GUERRA MENDES SOLICITANDO A ESTE A SAÍDA DE ANTUANE, CINCO DIAS ANTES DA SUA MORTE

Caro Guerra [Mendes]

Saúde e bom trabalho.

Recebemos a tua carta [Jan65], mas continuamos a estranhar saber-te em Antuane, quando há tanto tempo contamos contigo em Quínara. Palavra que não compreendemos. Temos como indispensável a tua presença e o teu trabalho em Quínara. Esperamos que arrumes tudo aí, e que sigas o mais urgentemente para a tua área, a fim de efectuares o trabalho que te está determinado, e com o que contamos absolutamente.

Tomamos devida nota das notícias, mas torna-se necessário mais pormenores nelas.

Regressam os camaradas que vieram buscar medicamentos e artigos escolares. Levam o que é possível, conforme as notas de que são portadores.

Quanto à questão de Bolama que pões, assim como outro qualquer assunto militar ou político local, deves pô-lo ao 'Nino' [Vieira], e discutir com ele o melhor caminho a seguir. Deves, pois, pôr esses problemas ao 'Nino', para ele decidir.

Continuamos recebendo cartas tuas sem assinatura, o que não nos permite identificá-las. Chamamos a tua atenção para esse facto, que já se vem repetindo e que pode trazer prejuízos à identificação das cartas que vêm do interior.

A questão do comércio está sendo devidamente estudada e a nossa Secção encarregada desse assunto ocupa-se inteiramente do caso. Assim, podes estar descansado que tudo irá pelo melhor nesse campo. O encarregado do Depósito dos Armazéns do Povo nessa zona deve dirigir-se à sua sede e expor os problemas que há, pois tu tens que te mexer e ocupar de muitos outros assuntos, embora devas ajudar sempre na medida do possível.

Esperamos é que possamos receber dentro em breve as tuas notícias, mas vindas de Quínara, conforme dissemos acima.

Saudações de todos os camaradas, com votos de saúde e o melhor trabalho possível.

Abraço amigo do camarada, Aristides Pereira.

[Revisão / fixação de texto: JA]


2.2.1. ORIGINAL DA SEGUNDA CARTA





Citação: (1965), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35306 (2019-4), com a devida vénia.


Fonte: Casa Comum; Fundação Mário Soares. Pasta: 04618.082.030. Assunto: Instruções para sair de Antuane indispensável a sua (Guerra Mendes) presença e trabalho em Quinara. Remetente: Aristides Pereira. Destinatário: Guerra [Mendes]. Data: Terça, 9 de Fevereiro de 1965. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência dactilografada (Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral para os Responsáveis da Zona Sul e Leste). Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.





Mapa da região de Antuane, com indicação dos nomes das tabancas referidas nos documentos consultados. Sinaliza-se, ainda, o local onde o Cmdt Guerra Mendes morreu [Bulel Samba].



2.3. A TERCEIRA CARTA - [16FEV1965] ENVIADA DE SALANCAUR:  DE 'NINO' VIEIRA PARA ARISTIDES PEREIRA, DANDO CONTA DE UMA OFENSIVA DAS NT [OPERAÇÃO GIRA] E DA MORTE DE GUERRA MENDES E MAIS DOIS ELEMENTOS


Caro camarada Aristides Pereira

A continuação da vossa saúde, assim como a dos c/ [camaradas] são os m/ [meus] maiores desejos. Nós bons.

Tenho a informar-vos que no dia 13 e 14 [Fev65], as tropas portuguesas desencadearam uma grande ofensiva nas áreas de Antuane, donde eram apoiados de 2 aviões de caça e 2 de reconhecimento armado. Conseguiram avançar até Indaliel, Banta e Bulel Samba. Os n/ [nossos] camaradas conseguiram aguentar esse duro ataque de 48 horas, onde conseguiram pôr fora de combate dezenas de soldados inimigos, além de feridos. Como prova disso o helicóptero aterrou 3 vezes para transportar cadáveres e feridos.

Por infelicidade n/ [nossa] perdemos o n/ [nosso] camarada Guerra Mendes, Infaly e Isnaba Naberiaguebandé. Estes camaradas foram mortos pelas tropas que avançavam por Bulel Samba. [H]ouve também 3 dos n/ [nossos] camaradas que ficaram feridos: Imbaná Sambú, Bien Naína e Beínha Natchandi. […]

[Revisão / fixação de texto: JA]


2.3.1. ORIGINAL DA TERCEIRA CARTA




Citação: (1965), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39148 (2019-4), com a devida vénia.


Fonte: Casa Comum; Fundação Mário Soares. Pasta: 04613.065.078. Assunto: Informa sobre a ofensiva das forças portuguesas na área de Antuane, tendo avançado até Indaliel, Banta e Bulel Samba. Lista de combatentes mortos. Destruição de uma grande quantidade de arroz e casas. Solicita opinião sobre a substituição do Guerra [Mendes] em Quinara, propõe o Saco ou o Arafam. Remetente: Marga (Nino Vieira). Destinatário: Aristides Pereira. Data: Terça, 16 de Fevereiro de 1965. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos responsáveis da Zona Sul e Leste). Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


[Continua…]

Nota:

Em função da extensão da presente narrativa, e como referido na introdução, darei conta na segunda parte do modo como decorreu a «Operação Gira», de que resultou a morte de 'Guerra Mendes' [Jaime Silva] e de mais alguns guerrilheiros.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

27Mai2019.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste  de 24 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19822: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (IV e última Parte)


segunda-feira, 24 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19916: Notas de leitura (1190): "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo General José de Figueiredo Valente; Âncora Editora, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
O que é verdadeiramente impressivo na singeleza dos relatos do General José de Figueiredo Valente é a compreensão do outro, o sentido do cuidado, o saber tirar partido de um episódio burlesco, contá-lo a preceito e remetê-lo para as dádivas da cultura. São relatos serenos, não escondendo a saudade pelo feitiço africano e o seu espírito de missão junto das populações.
Convido o leitor para uma leitura muito atenta do que ele nos diz sobre o Grupo Especial de Milícias Balantas e aos acontecimentos que levaram à morte heróica do Capitão João Bacar Djaló.

Um abraço do
Mário


No Quínara, 1970-1972, pelo General José de Figueiredo Valente

Beja Santos

Em mais um volume de Programa Fim do Império, a Âncora Editora publicou recentemente "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo general José de Figueiredo Valente. Algo nos toca nos seus dados biográficos. Cumpriu duas missões em Angola e comandou um Batalhão na Guiné; entre outros desempenhos relevantes esteve à frente do Comando da Zona Militar da Madeira e foi Director do Colégio Militar. Após a sua comissão na Guiné, acolheu no seio familiar dois irmãos Balantas e educou o filho de um chefe Fula, hoje Capitão do Regimento de Comandos. Durante cerca de 10 anos, foi voluntário junto de duas instituições, uma de cegos e outra de pacientes de paralisia cerebral.

As suas memórias timbram por isso mesmo: pelo sentido da compaixão, uma intensa vontade em compreender e lançar as pontes para o diálogo entre as culturas, a ponderação e flexibilidade na liderança, o sentido da reflexão nas encruzilhadas do destino, uma rara capacidade de aceitação.

Primeiro em Angola entre 1962 e 1964, no BART 2346, em Uíge, viagem um tanto tormentosa no Niassa. A descoberta de África, aquelas formigas devoradoras e construtoras, invasoras como a marabunta, mas também as cobras e as gazelas. Aponta certos ridículos do mando, inebria-se com as paisagens angolanas, com a beleza do Cuango, ironiza com o espírito de certos oficiais farristas, capazes de se desenvencilhar com a burocracia dos relatórios; recorda com saudade Ambrizete, era aqui que estava instalado o Comando de Agrupamento, tinha a responsabilidade uma enorme região com 30 mil quilómetros quadrados, a atividade operacional era orientada com prioridade para o interior da região e para o Norte, junto ao rio Zaire. Registou mais descobertas como as tartarugas que vinham aqui nidificar, bem como os caranguejos que, numa derradeira viagem, atravessavam as ruas da povoação para se dirigirem para o interior, a fim de alcançarem umas lagoas, lagoas essas onde pousavam centenas de flamingos. Recorda perdas e situações embaraçosas como uma médica a quem levou um mulatinho doente tê-lo criticado pelo mau estado da criança, pensava que se tratava do pai.

E assim chegamos a Quínara, é agora Segundo Comandante do BART 2924, a partir de Dezembro de 1970. Apanha problemas graúdos, o de apaziguar uma situação de grande tensão entre elementos da população civil e a milícia de Tite. As jovens mulheres Balantas que tinham sido vendidas a maridos velhos sentiam forte atração por aquela rapaziada que lhes falava mais ao coração, ele teve que presidir a “julgamentos” de casos delicados de velhos maridos que exigiam ressarcimento pelas suas jovens mulheres que os repudiavam. Quínara significava atividade constante como a guerrilha omnipresente: Nova Sintra, S. João, Tite e Fulacunda. Mas não resiste a tirar partido do sal da vida desde roubos de galinhas a pratos de morteiro engolidos pelos canais feitos pelas formigas. Formou milícias, um grupo especial de milícias só com Balantas, que foram organizados, fardados e equipados com armamento capturado à guerrilha. Há a guerra e a contingência de diferentes acidentes. Foi o caso de um incêndio no destacamento do Enxudé, que servia essencialmente de testa-de-ponte da guarnição militar de Tite e era igualmente o eixo de ligação fluvial com Bissau e Jabadá. Aqui permanecia uma guarnição de 25 homens. Em dia e hora em que se iria iniciar um espetáculo em Tite chega uma mensagem de que no Enxudé se tinha declarado um incêndio. Coisas que quem viveu a guerra sabe não ser fantasia:
“As causas do incêndio foram descritas desta forma: um dos rapazes da tabanca que ali trabalhava tinha ido ao recinto dos bidões de combustível para atestar um candeeiro Petromax. Por casas desconhecidas mas talvez por ter querido fazê-lo sem apagar o candeeiro, ao procurar enchê-lo derramou combustível que entretanto se incendiou, ardendo à volta dos bidões dando origem ao incêndio com risco de fazer explodir os bidões. Cansados e sujos lá regressaram a Tite e não puderam assistir ao espetáculo do “Conjunto Musical do QG”…

José de Figueiredo Valente conheceu o Capitão João Bacar Djaló, que comandou a 1.ª Companhia de Comandos Africanos, que foi atribuída em reforço ao seu batalhão para ali realizar o seu treino operacional. Relata a morte do Capitão João Bacar Djaló que ocorreu em circunstância que puseram em evidência a sua coragem e dedicação. E assim relata:
“Após o início da ação de fogo IN, o Capitão João Bacar retirou a cavilha de segurança de uma das granadas de mão que transportava e preparava-se para a lançar quando um dos seus homens caiu ferido. Procurou trazê-lo para o abrigo de um morro de bagabaga e nesse esforço e talvez devido a uma explosão mais próxima, soltou a granada descavilhada que ao explodir iria atingir os seus homens. Para os proteger, procurou ainda agarrá-la para a lançar para longe quando a sua explosão o matou".

O grupo especial de milícias deu-lhe imprevistos trabalhos; estava organizado em dez equipas de cinco homens, devidamente comandadas, o que permitia uma grande flexibilidade no seu emprego tático. As missões atribuídas ao grupo incluíam a realização de diversas ações contra objetivos identificados ou a montagem de emboscadas nos itinerários de acesso. Foi exatamente numa dessas emboscadas que na manhã do dia seguinte foi procurado por um soldado intérprete Beafada dizendo que estavam lá fora uma rapariga e a sua tia para apresentar queixa, a bajuda tinha sido violada naquela noite por vários elementos da milícia, que ela afirmava terem sido dez, dos quais poderia até identificar os dois primeiros. É uma descrição extraordinária, o oficial faz interrogatório em privado ao primeiro que havia sido apontado pela bajuda, a negação é perentória. O comandante do grupo pede autorização para interrogar o homem e recorre a uma grossa palmatória de madeira, ao fim de muita palmatoada o acusado admitiu que fora ele o primeiro, o primeiro indiciou o segundo e assim sucessivamente. Houve que fazer uma sessão pública a que compareceu o chefe Beafada noivo da bajuda.

O último relato refere-se a um soldado maqueiro, José da Purificação dos Santos, o Zequinha. O Zequinha era irmão do palhaço Quinito e o Zequinha possuía uma certa veia artística como o irmão, com a sua viola e as suas canções era um franco animador. Mas era instável e muito suscetível, com manifestações agressivas. Quando ia a Bissau para a consulta médica de psiquiatria, desaparecia, e este procedimento irresponsável repetiu-se. Conversando com o Zequinha, apurou tratar-se de filho de pai incógnito e de uma artista de circo mais prostituta que artista, vivera uma infância errante, desregrada e sem padrões morais. Pendiam sobre o Zequinha dois autos por deserção e um auto de insubordinação, Figueiredo Valente procurou remediar e atenuar a gravidade das consequências. Apanhou uma pena de prisão muito limitada e regressou à Metrópole. Voltaram a encontrar-se, esporadicamente. Em 1986, já Diretor do Colégio Militar, é procurado, o Zequinha estava muito doente e internado no Hospital de Santa Maria, queria vê-lo. Estava já numa fase terminal, com um cancro nos pulmões. “A sua alegria em me ver e o conforto que a minha presença e as minhas palavras lhe deram nos últimos dias da sua vida evidenciaram a sua gratidão pelo que eu por ele fizera. E num dia em que de novo fui visitar, soube que já ali não estava. Partira mais uma vez, já não como vagabundo errante, mas para num lugar onde permaneceria finalmente em paz”.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19907: Notas de leitura (1189): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (11) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19915: Parabéns a você (1644): António Branco, ex-1.º Cabo Reab Material da CCAÇ 16 (Guiné, 1972/74) e Vasco Joaquim, ex-1.º Cabo Escriturário do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72)


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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19911: Parabéns a você (1643): João Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 5 (Guiné, 1973/74)

domingo, 23 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19914: Manuscrito(s) (Luís Graça) (156): Quando eu morrer vou ter saudades da... Tabanca de Candoz





















Marco de Canaveses >  Freguesia de Paredes de Viadores e Manhuncelos > Candoz > Quinta de Candoz > 15/ 22  de junho de 2019 > 


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2019. Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não sei quantos habitantes tem a Tabanca de Candoz, entre indivíduos das diferentes  espécies da fauna e da flora, do grilo à andorinha, sem esquecer o "homo sapiens sapiens"... que cultiva a vinha e cuida da horta...ou  do javali que  de vez em quando desce dos montes.


Vou lá meia dúzia de vezes por ano, pelo Natal, Carnaval, Pàscoa, Festa de Nossa Senhora do Socorro, vindimas, Festa da Família (31 de agosto)... e pelos batizados, casamentos e funerais. Fica a 400 quilómetros de Lisboa (itinerário: IC 17, A8, A17, A25, CREP, A4, Marco de Canaveses, Paredes de Viadores, Candoz...). De Candoz vê-se Cinfães, o rio Douro, o Porto Antigo, a serra de Montemuro... 

Tenho uma grande ternura pela Tabanca de Candoz, e sobretudo pelas suas gentes, incluindo bichos, árvores e plantas...Fui lá há dias, casou-se um sobrinho querido, do Porto. Fiquei lá mais uns dias...Há sempre coisas novas para descobrir na Tabanca de Candoz, e outras para confirmar: o amor, a amizade, a ternura, a solidariedade (, coisas estas que são mais difíceis de captar pela máquina fotográfica)...

Quando eu morrer,  vou ter saudades de muitas coisas e gentes, a começar pela Tabanca de Candoz onde fui feliz...  Foi lá que aprendi coisas que não existiam nos lugares da minha infância, no Oeste Estremenho, como comer as cebolinhas do talho com presunto e um naco de broa de milho, acompanhadas com o vinho  verde tinto bebido pela caneca  de porcelana, para não falar do anho assado com o arroz de forno ou da dança do fado ao som da rebeca... Ou ver o avô a brincar com o neto macho,  sentado nos joelhos, e a cantarolar: "O fadinho é bonito, os c... ao pé do p...". Ou conhecer a rota do românico...
  
Tem de se passar vários testes até se ser aceite na Tabanca de Candoz, ainda para mais quando se é mouro, se usa barbas e cabelo comprido ... Fui lá pela primeira vez no verão quente de 1975, quando o meu país estava a arder... Percebo agora  melhor a história deste país que nasceu entre dois vales apertados, o do Sousa e o do Tâmega...
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de junho de  2019 > Guiné 61/74 - P19866: Manuscrito(s) (Luís Graça (155): (i) "as noites" (2010), de Teresa Klut, "que mora numa ilha"... poemas escolhidos; (ii) fotomontagem: para o Rui, a Cristina e a Sara,que moram na mesma ilha

Guiné 61/74 - P19913: Agenda cultural (690): Rescaldo da Sessão de autógrafos de José Ferreira da Silva, na 89.ª Feira do Livro de Lisboa, onde esteve com o seu livro "Memórias Boas da Minha Guerra", vol III


As “MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA” 
estiveram na Feira do Livro de Lisboa, através do vol. III

Não, não foram feixes de vassouras de giesta feitas pela Ti’Alice de Labercos; não foi o carrego de cestos de vime, encastrados, feitos pelo Ti’Manel do Engenho; nem, tão pouco, foi a giga de nabos, couves, grelos ou de cebolas da T’ímilia do Canto, que chegou para vender na “Feira dos 10”, em Lourosa. Nada disso! Nem foram outros artigos do antigamente, fabricados na minha aldeia, à qual me sinto umbilicalmente ligado.
Foi outra coisa, outro produto rural, com origens idênticas que, desta vez, teve o condão de chegar mais longe. Imaginem! Chegou à Feira do Livro de Lisboa!

Como sabem, assumi escrever as “Memórias boas da minha guerra”. Não é mais que um rol de histórias vividas por mim durante o período da guerra do ultramar. Agora, ninguém quer saber dessa guerra maldita que nos marcou e que muito parece envergonhar os nossos governantes. Todavia, há uma particularidade inédita que vem dando algum realce às minhas histórias: - o facto de assinalarem "memórias boas… da guerra”.

Talvez por se tratar já do III volume, a Editora Chiado levou a obra à 89.ª Feira do Livro de Lisboa e “obrigou-me” a ir lá rabiscar uns autógrafos tipo imitação de verdadeiros escritores. E eu, para não chegar à Feira de mãos a abanar, lembrei-me de levar duas dúzias de garrafas de Porto Reserva, rotuladas com o cartaz do lançamento do III volume, que me haviam sobrado daquele evento.

E foi por isso que logo chegado à Feira, aos pavilhões da Chiado, aproveitei para abrir a primeira garrafa nos “bastidores” (quer dizer, nas traseiras…) e promover uns brindes (in)oportunos


com os camaradas que foram chegando. Levei copos azuis e outros vermelhos (não havia verdes), para que cada um pudesse brindar sem restrições ou inibições clubísticas.


Cinco Combatentes da Guiné: (Eu, Hélder Valério, Nelito, Branquinho e Carlos Silva. Na segunda posição, outro Combatente (Eugénio Alves) da guerra contra o fascismo (esteve em Caxias em 1972).

O Mestre Branquinho é um dos nossos. Vive lá em Lisboa mas nunca renega as suas origens nortenhas, as quais exibe orgulhosamente, como Bom Português. Desde o IV Curso de Rangers de Lamego (já lá vai mais de meio século!), que nos condenaria a fazer a guerra da Guiné (integrados na Cart 1689), que mantenho uma óptima relação com o nosso Alfero Branquinho (hoje, Escritor e Advogado).

Embora prejudicado pelo tempo ocupado pelo escritor que me antecedeu, mandaram-me sentar num cadeirão, ao lado de outro vazio que seria ocupado pelos interessados no meu livro. Eis-me devidamente instalado no Pavilhão A50 da Chiado Editora, 89.ª Feira do Livro de Lisboa, para iniciar a Sessão de Autógrafos.

O meu cunhado Eugénio Alves, que vive em Lisboa, esse sim, um Homem de Letras muito ligado ao jornalismo, fez questão de receber a primeira dedicatória. Porra! Foi preciso este acontecimento para que estes dois Crestumenses se encontrassem por “terras de São Sebastião da Pedreira”, onde foi colocada a maior bandeira de Portugal e um grande carago do João Cutileiro!

O Diniz é o Bandalho que nos representa na corte lisboeta. Amigo do peito, mantém ligação permanente às actividades do Bando. Para além do agradecimento ao Diniz Faro, convém referir a simpatia que merecemos da funcionária Vânia. Infelizmente não é todos os dias que sentimos assim o calor dos nossos jovens.

Um abraço especial para o Melro Maior, Gondomarense Carlos Silva, que embora a exercer advocacia em Lisboa, muito se tem dedicado no apoio à Tabanca Amiga, aos Guineenses e à implantação do nosso Museu em Fânzeres (Choupal dos Melros).

O Hélder veio de Setúbal para nos abraçar e mandar mais umas larachas acerca dos “morcões lá do norte”, nomeadamente contra os seguidores do nosso “Papa”.


Quando ele começa a dissertar justificações sobre os assuntos melindrosos da Capital do Império, especialmente daquelas trapacices da Catedral, mais me vale estar caladinho, feito morcão, à espera que o tempo "bire".
Benfiquista ferrenho, o Hélder recusou brindar com copo azul.


Brincalhão, o Helder veio a responder:
- Não foi bem "recusar"... havia alguma suspeita de que pudesse estar "armadilhado", com toupeiras ou coisa assim, ou então com algum produto para "virar gostos e opiniões" mas, disse que o vinho era muito bom! E, além disso, o "ferrenho" é só para os "ferrenhos" e enquistados portistas....

Uma dupla “à maneira”; um a rabiscar umas sentidas dedicatórias e o outro a fazer de repórter com uma máquina sorteada na farinha Amparo. Grande abraço ao nosso incansável e insubstituível Presidente vitalício, Jorge Teixeira, mais conhecido por Jotex.

O camarada Eduardo Amaral, vindo de Cascais, foi o que recebeu mais apoio da lindíssima funcionária Iurky, mesmo sem saber uma palavra de japonês.

Acusado de aparecer nas funções de “emplastro” e não a de tradutor, o camarada Hélder justificou:
- É verdade, o “emplastro” está "quase" em todas, mas neste caso eu tentava, apenas, explicar ao Eduardo que a japonesinha (de ascendência) era brasileira.


Tive também a oportunidade de conviver um pouco com a escritora de renome Adelaide Vilela. Com um currículo notável, esta portuguesa, a viver em Montreal, no Canadá, percorre o Mundo mostrando o que faz de bom da língua de Camões. Senti-me muito honrado com a sua atenção e simpatia.

Resta-me agradecer a toda a malta que me visitou e ajudou neste evento. Para além da agradável surpresa que senti no seu aparente sucesso, registo a camaradagem, a satisfação e a amizade que me envolveram.

José Ferreira (Silva da Cart 1689)
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Notas do editor

Vd. poste de 7 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19867: Agenda cultural (688): Convite do autor e da editora: dia 14 de junho, sexta-feira, às 20h00, no Espaço Chiado, Parque Eduardo Sétimo, Lisboa, 89ª Feira do Livro de Lisboa; Sessão de autógrafos: José Ferreira da Silva, "Memórias Boas da Minha Guerra", vol III

Último poste da série de 16 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19893: Agenda cultural (689): Lançamento do livro de Mário Leitão, "Heróis Limianos da Guerra do Ultramar", Museu da Farmácia, Lisboa, dia 17 de junho, às 18h30