segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2580: Notas de leitura (8): Braço Tatuado-Retalhos da Guerra Colonial, de Cristóvão Aguiar (Victor Dores / Amaro Rodrigues)




Sobre Braço Tatuado - Retalhos da Guerra Colonial, de Cristóvão de Aguiar (1)

Senhor Director,


A Guerra Colonial (1961-1974) constituiu uma das mais trágicas encruzilhadas da História portuguesa e é ferida que ainda não cicatrizou na memória dos que a viveram. Não foi só o caudal de feridos, estropiados, desaparecidos, desertores e mortos que essa guerra provocou. Foi também a memória de um tempo em que o medo, a angústia, a crueldade e a intolerância foram postos ao serviço dos mecanismos repressivos do Estado Novo.

A "Síndrome do Stress-Pós-Traumático da Guerra" não é mera figura de retórica é uma enfermidade que atinge hoje milhares de ex combatentes (há estudos que apontam para cerca de 140.000), com reflexos directos nas suas famílias, havendo mesmo psiquiatras que afirmam tratar-se de um problema de saúde pública.

Os que ontem eram jovens na flor da idade, vivem hoje o trauma e o recalcamento dessa guerra escusada e inglória. Na guerra aprenderam a amar melhor a paz. Vendo a morte a rondar por perto, aprenderam o valor excepcional de viver. E, porque calaram durante longos anos a indignação, têm vindo a dar testemunho dos horrores vividos e sentidos.

Nesta matéria, e no âmbito da produção literária, há autores incontornáveis que, através da escrita, fizeram (e continuam a fazer) catarse e exorcismo da memória: Álamo Oliveira, António Lobo Antunes, Cristóvão de Aguiar, Fernando Dacosta, Fernando Assis Pacheco, João de Melo, José Martins Garcia, Manuel Alegre, Mário de Carvalho, entre outros.

Por outro lado, o cinema português tem vindo também a dar importantes contributos na revisitação desse conflito armado, havendo a destacar filmes como O mal Amado (1974), de Fernando Matos Si1va; Um Adeus Português (1985), de João Botelho; Inferno (1999), de Joaquim Leitão; Preto e Branco (2002), de José Carlos de Oliveira; Os Imortais (2003), de António Pedro de Vasconcelos, entre outros.

Mais recentemente, dois excelentes comentários televisivos vieram avivar a memória dessa guerra e lançar novas formas de compreensão da mesma: As Duas faces da Guerra, de Diana Andringa; e A Guerra, de Joaquim Furtado.

É neste contexto que surge o livro Braço Tatuado - Retalhos da Guerra Colonial (Dom Quixote. 2008), de Cristóvão de Aguiar, agora reeditado em nova versão.

Este romance começou por constituir uma das partes de Ciclone de Setembro (1985), tendo sido mais tarde autonomizado com o título O Braço Tatuado (1990). E esta é uma atitude de coerência de Cristóvão de Aguiar, na medida em que estamos perante um escritor que, contínua e continuadamente, reescreve os seus livros.

O autor, cumprindo serviço militar obrigatório, viveu uma experiência traumática de dois anos no pior palco da guerra colonial: Guiné. E, por isso mesmo, faz uma “digressão retrospectiva” (pág. 28) a vivências, perplexidades e amarguras dos dias incertos dessa guerra - feita de ataques, flagelações, emboscadas, contra-emboscadas e outras atrocidades...

Os soldados da companhia 666 vivem o jogo da vida e da morte num quotidiano povoado de angústias e medos. As ciladas e as armadilhas espreitam a cada momento. E, nas páginas deste livro, ecoam rajadas de G-3, explosões de granadas, minas, morteiros, rockets, canhões, armas ligeiras e semiautomáticas. Há ordens insensatas, missões absurdas e relatórios hipócritas. Há picadas de incerteza, montes baga-baga e "rios secos de angústia" (pág. 34).

E há a ração de combate, a leitura expectante de cartas e aerogramas. E há a loucura do capim, o desespero do cacimbo, a miséria dos autóctones, os efeitos do paludismo, as densas matas, as extensas bolanhas, a violação de mulheres indefesas, as sevícias sobre os prisioneiros... E, enfim, o horror de matar e ver morrer e uma contundente chamada de atenção para o desrespeito pela vida humana.

Braço Tatuado - Retalhos da Guerra Colonial denuncia a hierarquia "castrense e castradora" e o regime político que sustenta uma guerra sem fim à vista.

O livro desenrola as teias do delírio e da loucura, este aspecto, é bastante significativo e sintomático o suicídio de Niza - tatuado com os dizeres AMOR DE LENA, a sua amada que o trocaria por outro...

Anti-heróis, inadaptados numa guerra onde o que conta é manter-se vivo, as personagens (humaníssimas) deste livro entregam-se com sinceridade a contar o tempo que lhes falta para o definitivo adeus às armas, aguardando, com impaciência, que o navio Uíge ("em sua colonial majestade" - pág. 131) os transporte de regresso a Portugal.

Como aspecto positivo da guerra, ficarão apenas as amizades que se construíram, as cumplicidades que se aprofundaram, as experiências de grupo que se viveram.
De salientar que Cristóvão de Aguiar percepciona a guerra não só sob o ponto de vista de ex-combatente, mas também na perspectiva do próprio povo africano, afinal tão vítima como nós dessa guerra escusada e inglória. Os portugueses lutavam pela sua sobrevivência, tal como os guerrilheiros do PAIGC lutavam pela sua libertação. Há aqui um olhar humano e uma consciência crítica sobre o logro da guerra colonial.

Escrito com desenvoltura narrativa. Braço Tatuado - Retalhos da Guerra Colonial é um murro no estômago. Urge lê-lo, sabido que é curta a memória dos homens.


Victor Rui Dores
Horta, Açores

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Com a devida vénia ao Victor Rui Dores e os agradecimentos ao Amaro Rodrigues por nos ter alertado para esta carta ao leitor, também ela um notável testemunha sob a pele de uma recensão ao livro Braço Tatuado - Retalhos da Guerra Colonial, do Cristóvão de Aguiar.
vb
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(1) Cristóvão de Aguiar nasceu na ilha de São Miguel em 1940. Frequenta Filologia Germânica, em Coimbra, curso que interrompe para tirar o Curso de Oficiais Milicianos (COM). Em 1965 parte para a Guiné, deixando o livrinho de poemas, Mãos Vazias, publicado. Regressado em 1967, conclui o curso, lecciona em Leiria e volta a Coimbra para apresentar a sua tese de licenciatura, O Puritanismo e a Letra Escarlate.

Foi redactor da revista Vértice, colaborador, depois do 25 de Abril, da Emissora Nacional com a rubrica "Revista da Imprensa Regional" e leitor de Língua Inglesa na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra.

A experiência da guerra forneceu-lhe material para um livro, incluído inicialmente em Ciclone de Setembro (1985), de que era uma das partes, e autonomizado mais tarde com o título O Braço tatuado (1990) e que agora reedita em nova versão.


Da sua obra, por diversas vezes premiada destacamos:

Raiz Comovida I - A Semente e a Seiva (1978), Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa,

Relação de Bordo I - Diário ou nem Tanto ou talvez Muito Mais (1964-1988), Grande Prémio de Literatura Biográfica da APE/CMP,
Raiz Comovida: Trilogia Romanesca (2003), Trasfega - Casos e Contos (2003), Prémio Literário Miguel Torga/Cidade de Coimbra
e Nova Relação de Bordo - Diário ou nem Tanto ou talvez Muito Mais (2004) e Marilha (2005), os quatro últimos publicados na Dom Quixote.

Em Setembro de 2001 foi agraciado pelo presidente da República com o grau de Comendador da Ordem Infante Dom Henrique.

Texto extraído das Publicações D. Quixote. Com a devida vénia.

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Nota de VB

(1) Vd. vídeo promocional em http://youtube.com/watch?v=MdzdDo0fnoA

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