sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...

Bilhete Postal > Guiné Portuguesa > 118 – Vista aérea de Bissau. Fotografia verdadeira – Reprodução proibida. Edição Foto Serra. C.P. 239 – Bissau… Impresso em Portugal. Sem data. Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (*). 

 Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


  1. Mensagem de Joana Beja Santos: Ao cuidado de Luís Graça: A pedido da minha mãe, Cristina Allen, remeto o texto "Em Bissau, controlado desespero", destinado à "Tabanca Grande", se achar oportuno. Cumprimentos, Joana Beja Santos 2. Os meus 53 dias brasa em Bissau (1) > Controlado desespero (I) por Cristina Allen (*) [Título da série e subtítulos a negrito no texto, da responsabilidade do editor L.G.]

Caro Luís Graça, seus co-editores, e ainda Torcato Mendonça e Hélder Sousa, Um agradecimento comovido pelos comentários que o meu texto suscitou (*). 

Que é isso, meus bravos? Uma mulher anónima diz: “Afinal, a nossa geração viu muitas coisas”. E Torcato Mendonça escreve um poema belíssimo (nunca ninguém se lembrou de me trazer à vida em poesia), o Luís Graça cita V. Briote em “As nossas mulheres (…)” e surgem, no Blogue, a fotografia da pequena catedral e mais uma fotografia minha, já olheirenta e profundamente angustiada, para além de mais um endereço de aerograma (**). 

Para os que coleccionarem informações soltas e, sobretudo, para os camaradas deste blogue que nasceram no Alto Alentejo e conheçam bem Évora, o arquitecto daquela igreja foi o alentejano José Pedro Cordovil, nascido no belíssimo palácio Cordovil (Rua da Mesquita n.º 7). Num imenso jantar de família, deu-me a sua direita e falou-me dessa obra de juventude, que não ficara muito a seu gosto… aos dezoito anos, nada me faria pensar que viria a casar ali. 

O mundo é redondo, dá muitas voltas, mas quer o acaso que, num ponto inimaginável do tempo, nos encontremos, fisicamente ou nos recônditos obscuros da memória, prontos a saltar em vivíssimos vislumbres. Como neste blogue. E também para os gulosos de azeitonas (grandes, verdes, retalhadas à mão!), que estiveram na Guiné e viram a Praça da Senhora da Candelária, em Bissau, aqui vai um errático e estimulante percurso – “Tigre de Missirá” – Cristina - Catedral – “azeitonas cordovil”. Espetem um palito, levem à boca este petisco e vereis o casal mais mal emparelhado que Bissau tão brevemente viu. E brindem aos vossos amores! Passados, presentes e… futuros. 

   Chegar a 15 de Abril, casar a 16...

Luís Graça, temos um problema (que não é seu). Ao fazer a citação de uma passagem que, creio, ser do segundo volume da obra do camarada Mário Beja Santos (distraído historiador) li: “A Cristina chegou a 18 de Abril (…). Durante os praticamente vinte dias que ela aqui viveu (…)”. 

Li e pasmei. É que eu não vivi só vinte dias em Bissau. Nem cheguei a 18 de Abril. Se estou certa, na tarde de 18 de Abril de 1970, estaria a assistir a um batuque em nossa honra, e recordo um incidente: nesse magnífico batuque, um dos dançarinos, com uma camisola às riscas verdes e brancas, atirou para o meu colo um grande trapo sujo e o Cherno atacou-o, fazendo-o desaparecer de imediato. 

 Quer mais provas? Reza assim a minha certidão de casamento, que tenho à frente: “Certifico que (…) às dezoito horas do dia dezasseis de Abril do ano de mil novecentos e setenta (…) perante mim, Padre José Afonso Lopes (…) compareceram os nubentes (…)”, etc. 

 Cheguei a Bissau a 15 de Abril, casei a 16, parti para Lisboa a 8 de Junho. Cinquenta e três dias. Se achar interesse a isto que escrevo, pode editar, pois já esclareci com o Mário esta questão. Terá havido uma semana e poucos dias de alegria e em todos os restantes, a quotidiana eternidade de desespero controlado. O meu marido sofria do que hoje chamamos, sem complexos, “stress de guerra”. E um súbito muro se atravessava entre nós. Não sei se o escreveu, mas, de olhos desmesuradamente abertos, mandava-me embora e dizia que queria morrer e ser enterrado em Missirá. Pior ainda, eu obrigara-o a casar e o nosso casamento não era válido porque não estava consciente. Doença de guerra, pura e dura. 

 Levei-o ao Padre. Experiente conhecedor de almas, o Padre Afonso, muito calmo, tinha ali o livro de registos e foi dizendo que, se ele queria ir morrer a Missirá, que fosse. E, quanto ao casamento, abrira uma folha nova nos assentos, bastava arrancá-la… o nosso “Tigre” deu um salto, eu temi pelo Padre, mas tudo se acalmou. “Vão lá almoçar”, disse. Porém, discretamente, fez-me um gesto e percebi que ia telefonar. 

No dia seguinte, e de acordo com o que fora anteriormente combinado, o meu marido vadio ingressaria na ala de Neuropsiquiatria do Hospital Militar. Durante dois dias, eu não poderia vê-lo, já que o David Payne iria tentar pô-lo a dormir. Discretamente, o David passou-me para as mãos um frasco hospitalar de “Vesparax” (quem não dormia era eu…). 

Dançando o tango com o Caco Baldé 

 Começaram as tardes das visitas. Havia um autocarro, sempre cheio de pessoas, cabritos e cobiçadas galinhas. Acabei por arranjar um táxi, cujo motorista, João Carlos, me levava e, pontualmente, me aguardava para o regresso. Tínhamos feito um trato – em Bissau quase tudo se negociava. Apressava-me, na saída, não fosse encontrar Spínola, que, diariamente, visitava os seus doentes. Atrasei-me três vezes e três vezes me aconteceu encontrá-lo à porta de armas (chamava-se assim?) do hospital. Andávamos, ao que parecia, cronometrados… 

 Havia um toque (A recolher? Por causa dele? Nunca perguntei). Mas via aquele homem passar para a mão esquerda o pingalim, encostá-lo firmemente à perna, pôr-se em sentido, crescer, enchendo o peito de ar, o ventre liso, o braço direito, o cotovelo, a mão, na mais perfeita continência que jamais vi. Ficava desmesuradamente imenso, desmesuradamente rígido, só o monóculo coruscava. 

 Estarrecida, não sabia que fazer dos pés, das mãos, da mala, da mini-saia, parava, cruzava as mãos, endireitava-me (postura por postura, não baixaria a cabeça, olhava-o nos olhos, ou, melhor dizendo, no olho e no monóculo). Acudiam-me ideias bizarras – que o meu avô materno fora lanceiro e, certamente, teria sabido fazer aquilo mesmo; que ele, Spínola, escorregara em Missirá, numas cascas de batata e fora ao chão, pose, pingalim, monóculo e tudo, soltando palavrões… que aquele homem era o… “Caco Baldé”! Apertava os lábios para não me rir: este é o Caco, Caco Baldé… 

 Mas este era apenas o primeiro acto desta farsa. O segundo, começava com a questão “Passas tu ou passo eu?”. No terceiro, resolvia eu recuar, só então ele passava e, perfeito cavalheiro, punha-se de lado e cumprimentava: “Muito boas tardes, minha senhora”. E eu respondia-lhe: “Muito boas tardes, Senhor Governador”. Afinal de contas, era fácil dançar o tango com Spínola. Dobrado contra singelo, diria que, em seus tempos, o teria dançado na perfeição, sem pisar os pés do par… 

Deixemos, por ora, o Mário na sua cama, entre dois outros perturbados, que, continuamente, discutiam… Quando, escassos anos volvidos, leria atentamente Portugal e o Futuro, fecharia o livro, e, olhos cerrados, para mim mesma o interpelava: “Então, meu Caco, só agora?!” Para todas as coisas há o seu tempo. Nos anos de brasa que decorreriam, e, mais ainda, nos outros que vieram, ele seria, talvez, uma das mais contraditórias e inquietantes personagens. Recordo, hoje, os quatro majores que, num gravíssimo erro de cálculo – ou num quase infantil erro de cálculo – ele enviou para o martírio e penso em tantos jovens anónimos que perderam suas desgraçadas vidas. Nos estropiados, nos cegos, nos perturbados, nas nossas lágrimas. E, todavia, ele, feito Marechal António de Spínola, será sempre, para mim, a mais trágica figura do braseiro que outros atearam, sem ele, com ele, ou em seu nome. Que Deus e a História sejam clementes para com este homem. 

Em paz, na nossa 'Tabanca Grande'...Inch’ Allah!, amigos. 

 E agora nós, Luís Graça e Camaradas da Guiné, se a nossa geração viu tantas coisas, certamente teremos mais para ver. Estamos prontos? Vejamos, então. Todos nós temos televisão e esse meio, quer queiramos, quer não, de todos nós faz cidadãos do mundo. 

O Inferno anda à solta em Gaza, em Jerusalém, nos túneis que se abrem no Egipto e, ao que consta, no Irão. O epicentro deste horror situa-se numa terra que foi berço dos três mais velhos credos monoteístas deste mundo, raízes das nossas crenças, nossas lendas, nossos hábitos, superstições, pequenos gestos. No nosso sangue correm, misturados, laivos do sangue dessa gente que se bate. Quem são, de que lado se batem esses “turras”? Os nossos “irmãozinhos”, diriam os muçulmanos, os nossos “irmãos”, dizem judeus e cristãos. 

Algures na Alemanha, o mais jovem dos meus primos (33 anos!), piloto da Nato, já fez Kosovo, Afeganistão, Iraque e está em “estado de prontidão”. Idade suficiente para ser um filho nosso. Lembrai-vos desse menino alentejano, que, aos comandos, vai ir para qualquer sítio, atravessando os ares carregados. Estamos em paz na nossa “Tabanca Grande”. E, acima de nós, escreveu Kant, “o céu estrelado (…)”. “Inch’ Allah!”, não só “talvez”; literalmente é “Queira Deus!” “Inch’ Allah!”, amigos. Cristina Allen 

 _____ 

Nota: esqueci-me de que deixei o meu ex-marido em “banho de maria” no hospital. Há mais, ainda mais para vos contar. Lisboa ainda está longe de Bissalanca. Nem vi, sequer, do alto, a quase poética brancura de Dakar.

____________ 

 Notas de L.G.: 



10 comentários:

Anónimo disse...

Por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher. A Cristina Allen é uma grande Senhora, com todos os ÉSss grandes do mundo.Escreve melhor do que ex-marido
e, talvez sem querer, fornece mais dados singulares para a curiosa biografia do Mário Beja Santos, autor de um Diário da Guiné, em dois volumes, 2008. Também escrevi um Diário da Guiné, editado em 2007,ou seja alguém copiou o título do meu livro, um plágio intelectualmente reprovável.
Mas é importante conhecermo-nos melhor.
Uma saudação forte à Cristina Allen,
um abraço a todos os camaradas da Guiné, incluindo o Mário Beja Santos.
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Texto lúcido, inteligente e esclarecedor.
E engraçadíssimo!
Venham mais, minha Senhora.
Com os meus cumprimentos,
Alberto Branquinho

Luís Graça disse...

Amigos e camaradas:

A Cristina Allen é, de pleno direito, membro da nossa Tabanca Grande. Sentiu-se útil e acarinhada por todos nós, ao apreciarmos o seu gesto (generoso e corajoso) de facultar ao seu ex-marido as cartas e aerogramas que ele lhe escreveu durante dois anos de comissão militar na Guiné. E não foram poucas: algumas centenas...

Quem já lê os dois volumes do Diário da Guiné, do nosso camarada e amigo Beja Santos, sabe quão preciosas foram, para ele (e nós, seus leitores em primeira mão), essas cartas e aerogramas, como fonte de informação minuciosa sobre a actividade diária, operacional e não operacional, primeiro em Missirá e depois em Bambadinca, à frente do Pel Caç Nat 52, entre meados de 1968 e meados de 1970.

A Cristina Allen, pelo que já nos foi dado ler e perceber, é uma mulher, de inteligência viva, de grande cultura e com um sentido de humor mordaz... É um privilégio, para nós, ela querer partilhar as suas emoções que sentiu e experiências por que passou no curto espaço de tempo (53 dias) que em (sobre)viveu em Bissau, entre Abril e Junho de 1970.

... "Dias de brasa", chamei-lhe eu, com alguma propriedade.

A Cristina não nos pediu, mas isso está implícito: "Meus bravos, saibam-me ler, nas linhas e entrelinhas"... A Cristina não é nossa camarada, mas é doravante uma amiga nossa (e da Guiné). Precisa também do nosso afecto e carinho, na véspera de uma intervenção cirúrgica a que vai ser submetida. Vamos desejar-lhe que tudo corra bem. E que volte rápida e bem, e sempre que o desejar,ao nosso convívio.

Já agora deixem-me, como leitor, dizer que este pedaço de prosa é de antologia. O próximo biógrafo de Spínola não o poderá ignorar. Ora releiam o modo como a Cristina, em duas pinceladas, fez um soberbo retrato-robô do nosso Com-Chefe:

(...) "Havia um toque (A recolher? Por causa dele? Nunca perguntei). Mas via aquele homem passar para a mão esquerda o pingalim, encostá-lo firmemente à perna, pôr-se em sentido, crescer, enchendo o peito de ar, o ventre liso, o braço direito, o cotovelo, a mão, na mais perfeita continência que jamais vi. Ficava desmesuradamente imenso, desmesuradamente rígido, só o monóculo coruscava.

"Estarrecida, não sabia que fazer dos pés, das mãos, da mala, da mini-saia, parava, cruzava as mãos, endireitava-me (postura por postura, não baixaria a cabeça, olhava-o nos olhos, ou, melhor dizendo, no olho e no monóculo). Acudiam-me ideias bizarras – que o meu avô materno fora lanceiro e, certamente, teria sabido fazer aquilo mesmo; que ele, Spínola, escorregara em Missirá, numas cascas de batata e fora ao chão, pose, pingalim, monóculo e tudo, soltando palavrões… que aquele homem era o… 'Caco Baldé'!

"Apertava os lábios para não me rir: este é o Caco, 'Caco Baldé'" (...)

Anónimo disse...

Companheiros:
Há já muitos dias que não escrevo , mas leio, a nossa TABANCA GRANDE.
Um particular OBRIGADO à Cristina Allen. Permitam-me que assim a trate.

Texto magnífico.

Um reparo último para o Graça de Abreu que misturou as partes.
A
Eu também tenho Um Diário da Guiné, só que nunca foi publicado. Todos temos..., aqueles que por lá passaram.

Desejos de:
Um grande ANO de 2009.

Carlos Marques dos Santos
Mansambo - 68/ 69
Perto das Terras dos Soncó e muitas noites de Mato de Cão.

Luís Graça disse...

Grande camarada, membro da primeira geração do então Blogue-Fora-Nada, amigo Carlos Marques: É bom saber de ti. Vejo que esse coração está rijo. Bj para a Teresa. Tenho coisas tuas para publicar!!! Que vergonha... LG

Anónimo disse...

Para uma Grande Mulher,
De um alentejano, simplesmente as palavras de outra Grande Mulher:

"A AMIZADE VENCE A FUGA VELOZ DOS ANOS E DURA SEMPRE ATRAVÉS DO SORRISO E DAS LÁGRIMAS.

Catarina II da Rússia"

Parabéns Mulher (Mãe Coragem).

Como crente farei uma oração ao meu Deus, para que tudo corra pelo melhor.

Receba Cristina Allen Camarada desta Tabanca Grande,

Um abraço do tamanho do Cumbijã!

Com toda a consideração,

Mário Fitas

Anónimo disse...

Meu caro Carlos Marques dos Santos
Referi apenas a edição de dois (três) livros com o mesmo título,
Diário da Guiné.
É verdade que milhares de soldados portugueses escreveram diários da Guiné, diários de Moçambique, diários de Angola. Se um dia decidirem publicá-los devem ter cuidado com o título em livro para não termos o diário da Guiné do António, o Diário da Guiné do Mário, o Diário da Guiné do Carlos,
o Diário da Guiné do Francisco,etc., etc. Isto lança alguma confusão.
Basta chamar-lhe por exemplo 1970/1972 Os Dias da Guiné, ou 27 Meses na Guerra da Guiné, etc. De resto existe um outro diário da Guiné publicado há uns anos atrás que creio (alguém pode ajudar-me?) tem o título Guiné, um Diário de Guerra.
Um abraço,
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Carissímo Graça de Abreu:

Aquilo que quiz diser e demonstrar é que Díário da Guiné é um título global.
O Título do Beja Santos é Diário da Guiné - 1968/ 1969 " Na Terra dos Soncó" e é só do BEJA SANTOS.

Não houve usurpação, nem plágio.

DEIXEMO - NOS de POLÉMICAS e quezílias.

Boas Vendas para os DOIS.
Até ao próximo ENCONTRO.

UM ABRAÇO,

CMS

Anónimo disse...

Amigo Luís:

Não tens que pedir desculpa de nada.
Eu é que me petencio por estar "nada" activo, mas estou atento.

Próximo encontro ESTOU DISPONÍVEL para o que quer que seja.

UM ABRAÇÃO a TODOS da TABANCA, não grande, nas ENORME.

CMSantos (Mansambo)

Anónimo disse...

Força Cristina! Gostei muito. Quero, queremos mais...
Abraço
Jorge Cabral