quarta-feira, 20 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4388: As nossas mulheres (8): De um gigante com coração de passarinho para a Ti Pedrosa, com ternura (Joaquim Mexia Alves)

1. Texto do Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil da CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa) (1971/73):


Caros Carlos e Luís:

Anexo um texto saído da fragilidade deste "gigante com coração de passarinho", como um dia me chamaram. Fica à vossa disposição para fazerdes dele o que quiserdes, porque a mim já me encheu a vida tê-lo escrito!

Abraço camarigo do Joaquim Mexia Alves

Comentário de L.G.:

Joaquim: Agora é que me tramaste!... Que raio de género literário é este ? E em que série é que eu vou encaixar-te, com esse tamanhão todo ? Conto, poesia, blogpoesia, prosa poética, memorialística ? História de vida, estórias avulsas, blogoterapia, as nossas mulheres ?

Opto por esta série (*), onde caibem as nossas mulheres, todas as nossas mulheres, mães, madrinhas, tias, amas, criadas, avós, irmãs, sobrinhas, primas... mas também madrinhas de guerra, namoradas, noivas, esposas, amantes... Todas elas, de uma maneira ou de outra, foram nossos anjos da guarda, que velaram, rezaram, suspiraram, sofreram por nós... Que nos apaparicaram, que nos desejaram, que nos amaram, que nos ajudaram a voltar ao mundo dos vivos, aos lugares seguros da nossa infância, ou então a trilhar outros caminhos, os do futuro...

Como te fica bem, meu gigante com coração de passarinho, "esta lágrima de amor, esta gota de ternura, este gesto de carinho, esta memória, esta emoção, esta gratidão" por esta Mulher Grande que fazia parte da tua tribo, do teu clã, da tua família extensa.... E como estamos hoje muito mais pobres, pobres de afectos, de valores e de emoções, reduzidos às nossas famílias nucleares e, cada vez mais, às nossas famílias monoparentais, em que a única figura parental tanto pode ser uam mulher como um homem!...

Parabéns, Joaquim, por este belíssimo texto, tão ternurento, que me comoveu... que vai comover mesmo os mais empedernidos tugas da Guiné... Com ele dás mais vida à vida do blogue, dás mais grandeza às almas grandes que habitam a nossa Tabanca Grande... Que a Ti Pedrosa, lá do alto, continue a velar por ti e, já agora, por todos nós, tabanqueiros, teus amigos de jornada... (LG).


Uma memória, uma emoção, uma gratidão.
por Joaquim Mexia Alves

Quando eu era menino, aliás mesmo já antes de eu nascer, vivia em casa dos meus pais, uma senhora, sim uma senhora, que tendo sido empregada em casa dos meus avós paternos, (que nem a minha mãe os conheceu pois morreram no principio do século xx, com o surto, salvo o erro, da pneumónica) (**), nunca saiu de perto do meu pai, ficando assim a viver lá em casa.

Mais velha do que o meu pai, (que nasceu em 1899), nunca quis deixar de trabalhar e assim tratava sobretudo da capoeira e, lembro-me bem, era quem embebedava o peru para o Natal.

Era carinhosamente tratada por Ti Pedrosa, e recebia sempre dois beijos de cada um de nós, meninos estudantes em Lisboa, sempre que regressávamos a Monte Real para os diversos períodos de férias.

Era família, tão família como qualquer avó muito querida, e que, mesmo tendo um pouco de seu, e mesmo depois dos sobrinhos da Argentina a quererem vir buscar, nunca quis sair de nossa casa, pois era ali que era a sua casa, a sua família.

De quando em vez fugia-lhe a palavra para o antigamente e tratava o meu pai por menino Olympio, numa ternura incapaz de aqui reproduzir, sobretudo por ver aquele homem grande enternecido por aquele tratamento tão íntimo.

Neste momento, já perguntam os meus camarigos o que é que tudo isto tem a ver com a Guiné!

Perguntam, porque já não temos a mesma paciência que ela tinha em esperar pelas férias, para ver como tinham crescido os seus meninos e quase obrigar as galinhas a porem os ovos amarelinhos, (que agora já não existem), para nós comermos estrelados em azeite, numa frigideira tão velha que já tinha a gordura “incorporada”.

Pois nos idos do mês de Abril de 1972, (mais para a frente ou mais para trás do dia 6, data do meu aniversário) (***), recebi no Xitole uma carta, cujo envelope escrito com caligrafia vacilante, tinha inscrito no remetente: Ti Pedrosa – Monte Real.

A letra não era dela, que não sabia escrever, mas de outra empregada que a seu pedido me dava os parabéns pelos meus 23 anos e servia de cobertura a uma nota de 20$00, para eu comprar o meu presente.

Calculam como o meu coração, já de si tão mole e sensível, enviou aos meus olhos a ordem para, com uma qualquer água, afastar o pó da Guiné e lubrificar a minha vista.

Claro que aquilo não era lágrimas, eram apenas os meus olhos a protestarem pela luz tão intensa da Guiné.

Foi um oásis de ternura, na brutalidade da guerra.

Mais tarde, uns meses mais tarde, julgo que ainda na Guiné, recebi outra carta, agora com a letra redonda e bem tratada da minha mãe, que me enviava, a pedido da Ti Pedrosa, uma fotografia sua, tirada nos seus oitenta ou noventa anos, que infelizmente a memória já não me deixa lembrar com precisão.

Dizia a minha mãe que a Ti Pedrosa tinha feito questão de tal envio e de que me dissesse da sua grande preocupação que o benjamim da família andasse por terras tão estranhas, a fazer coisas tão perigosas.

Que me cuidasse muito, tivesse cuidado com as temperaturas e que voltasse depressa e bem.

E porquê esta história agora?

Porque hoje tive uma insónia povoada de sonhos amargos, coisas da Guiné, e no meio da perturbação, da agitação, veio ao meu pensamento, (ou seria ao coração?), a imagem, a lembrança da Ti Pedrosa que lá no Alto olha por mim, tanto que pouco depois adormeci calmamente.

Claro que não podia deixar de lhe fazer esta homenagem, contando os seus gestos de ternura, que tanto amenizaram durante uns tempos, a dureza da minha vida na Guiné.

No meio das emboscadas, das minas, dos tiros, das dores, dos horrores, das horas amargas que aqui na Tabanca se vão desfiando, deixo-vos esta lágrima de amor, esta gota de ternura, este gesto de carinho, esta memória, esta emoção, esta gratidão.

Abraço-vos fortemente, meus camarigos, com um sorriso nos lábios, porque no peito de todos os combatentes, dos ex-combatentes, endurecidos pela guerra, empedernidos pela morte, ainda bate um coração sensível, que se alegra e enternece com os gestos de carinho, de amor, daqueles que por cá penaram a nossa estadia na Guiné.


Monte Real, 20 de Maio de 2009

_____

Notas de L.G.:


(**) Vd. postes anteriorea da série As Nossas Mulheres:

13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4027: As nossas mulheres (8): A uma mãe, a todas as mães, a todas as mulheres da nossa vida (Juvenal Amado)

6 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3848: As nossas mulheres (7): Eu, a NI e o Miguel em Biambe, para um almoço de batatas fritas (Henrique Cerqueira)

27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3803: As nossas mulheres (6): As minhas correspondentes e a minha mulher (José Colaço)

23 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3779: As nossas mulheres (5): Ni, uma combatente em Mansoa (1973/74)

16 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3748: As nossas mulheres (4): Recortes de imprensa de uma noiva (Luís Faria)

28 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3676: As Nossas Mulheres (3): Um poema da minha Mãe, Leopoldina Duarte (António Paiva)

24 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3667: As Nossas Mulheres (2): De Bissau a Lisboa, com amor (Cristina Allen)

22 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3662: As Nossas Mulheres (1): As que casaram com ...a Guiné. (Virgínio Briote)

(**) A pneumónica foi a pior pandemia de gripe do Séc. XX... Terá morto entre 20 a 40, se não mais, milhões de seres humanos, em todo o mundo...Mais de 60 mil em Portugal, numa época (1918/19) em que nós deveríamos ser seis milhões e picos... Para saberes mais, clica aqui, neste Portal de Saúde Pública...

Aqui encontras um resumo de uma tese de doutoramento sobre a Pneumónica (ou gripe espanhola), com especial incidência no concelho... de Leiria.

A Pneumónica de 1918 em Portugal Continental - Estudo Socioeconómico e Epidemiológico com particular análise do concelho de Leiria... O autor é João José Cúcio Frada, Médico, Professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Resumo de: Frada J. - A gripe pneumónica em Portugal Continental - 1918. 1ª edição, Lisboa: Setecaminhos, 2005

http://www.saudepublica.web.pt/TrabFrada/Pneumonica_JFrada.htm

(***) Vd. poste de:

6 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4146: Parabéns a você (3): No dia 6 de Abril de 2009, ao camarigo Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp, Guiné 1971/73 (Editores)

8 comentários:

Anónimo disse...

Estava aborrecido. Abri o blogue e ia ler um comentário que fiz e não o devia ter feito.
Li a tua Ti Pedrosa e fiquei um tempo parado.
Valeu a pena ler e relembrar certo passado.

Obrigado Camarigo e o melhor para ti.
Ab do TM

Vasco da Gama disse...

Estes tiros, são os tiros que eu gosto de ouvir..Os tiros disparados por um grande coração solidário.
Obrigado Mexia Alves pela forma mas sobretudo pelo conteúdo.
Um abraço amigo
Vasco

Anónimo disse...

Mexia Alves, por vezes a minha companheira vem ver o que "faço" no PC "a estas horas" e volta e meia diz-me: outra vez a chorar!!
Porra, digo eu, é da luz do computador, tenho que diminuir o brilho...
Ela não acredita.
Que lhe vou dizer agora se aparecer por aí?
A tua TI Pedrosa foi recordada. Valeram a pena os 20 mil Reis que te enviou.
Um abraço Jorge F´lix

António Matos disse...

Caro Mexia Alves, ele há coisas engraçadas !
Acabei de mandar um post para publicação após o que vim ao blog.
Vejo este teu texto ( de temática semelhante ), soberbo e pleno de sentimento e apresso-me a cumprimentar-te.
Fiquei a gostar da Ti Pedrosa e recomenda-me "quando falares com ela", ok ?
Um grande abraço,
António Matos

Anónimo disse...

Joaquim!
Toma cuidado, a máquina já não "ausguenta".
Quantas "Ti Pedrosas" choraram pelos seus meninos? Sim!... porque para essas maravilhosas mulheres. Mesmo de barba branca, esses homens eram sempre os seus meninos, pulsar do seu coração.Leio as palavras do Luis:
Junto as palavras do Torcato aos tiros do Vasco da Gama e como Madalenas já somos dois com a cara molhada e a pinga a cair do nariz.

Dorme!... Dorme sossegado menino da "Ti Pedrosa" porque ela estará de certeza num local que ainda zela por ti.

O velho e forte abraço como o tamanho do Cumbijã!

Mário Fitas

Anónimo disse...

Grande Homem,Grande Coração!

Para ti aquele Abraço!

Mas também para a tua Ti Pedrosa e para todas que cá nos acompanharam lá e já partiram.

Devem estar a preparar o nosso último Abrigo.

Até dia 20.

Jorge Cabral

Anónimo disse...

Lindo!
J.D.

Anónimo disse...

Meus amigos!

Volta, não volta, venho dar uma volta pelo Blogue.
Como se faz com a Bíblia, escolho, muitas vezes ao calha um poste e leio, como desta vez, um trabalho do amigo Mexia Alves, anterior à minha entrada na Tabanca, que se anunciava pleno de emoção.
Amigos,garanto-vos que é um prazer, ler tanto os que escrevem, como os que comentam!
Os vossos sentimentos, são a garantia de que para além de homens da guerra, são a cima de tudo os meninos da Ti PEDROSA, emotivos e sensibilizados por gestos tão puros e sentidos como os daquela Sra., que protegia e continua a proteger os seus Meninos.
Homens bons, capazes de reconhecerem o sofrimento dos que ficaram esperando o vosso regresso.

Um abraço fraterno para todos. (Editor, autor e comentadores, e todos os que foram motivo de preocupação e saudade).

Felismina Costa