1. Vamos apresentar nesta série algumas cartas que Carlos Geraldes (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), escreveu ao longo da sua comissão. Uma espécie de diário com todas as emoções do momento, de boa disposição, situações menos agradáveis, enfim, tudo aquilo por que todos mais ou menos passámos e que alguns conseguiram registar quase no momento.
A série terá duas partes, a primeira coincidente com a permanência da Unidade em Bissau, entre Maio e Outubro de 1964 e uma segunda com a permanência da CART 676 no mato.
Em pararalelo continuaremos com a série "Gavetas da Memória".
Apresentação:
Nas décadas de 60 e 70, em Portugal do séc. XX, houve a Guerra Colonial.
Primeiro em Angola, depois na Guiné e Moçambique.
O Império tinha acabado. Os povos subjugados reclamavam a independência.
Os nossos governantes, cegos como toupeiras, obrigavam o povo a mais um sacrifício inútil, enviando milhares e milhares de jovens para um destino inglório, premiado muitas vezes com a morte ou com alguma incapacidade atroz para o resto da vida.
Pertenci também a uma dessas levas. Em 1964, interrompendo uma carreira universitária de pouco êxito, fui enviado para a Guiné, como oficial miliciano, depois de treinado à pressa para uma actuação militar anti-guerrilha, que iria desbaratar um inimigo que não respeitava os nossos valores ancestrais (de roubo, violação e massacre?).
Como todos os outros tratei de me defender o melhor que podia, e regressar são e salvo para casa, para junto dos meus, procurando ser sempre, no entanto, o mais justo e compreensivo possível, para com aqueles que, supostamente, teria de combater e derrotar.
Durante dois anos, mais precisamente 23 meses (ou 90 semanas), fui escrevendo cartas e aerogramas para os familiares, que agora, passados quarenta anos, vim ainda reencontrar, miraculosamente intactos. Escolhi 62 dessas missivas contendo relatos que não dissessem respeito apenas aos casos familiares mais particulares, às saudades por exemplo, mas que contivessem algo mais, relatos breves de uma experiência de vida. Apesar do perigo da Censura, que na época pairava ameaçadora sobre as nossas cabeças, eu ia arriscando nessas cartas, em contar, mais ou menos veladamente, o que ia acontecendo e observando nos terrenos da guerra.
Além do mais, o sortilégio de Africa está também aí, retratado de alguma maneira.
Ficou sempre gravado profundamente na minha vivência. Marca que nunca mais se desvanecerá da minha memória. Por isso achei que era quase uma inconsciência, uma leviandade até, deixar esquecer estas, embora ingénuas, transcrições de um mundo que atravessou a minha vida, e talvez também, a de muitos outros jovens que, naquela época, viveram e sofreram a Guerra Colonial. Não pretendo fazer literatura, apenas quero deixar, com uns rabiscos toscos, um relato mais ou menos fiel do que naquela época vi, vivi e senti, perturbado por vezes, talvez, por uma falta de maturidade, própria de quem ainda é jovem demais, para poder ajuizar correctamente situações tão intensas, num cenário tão gigantesco
No entanto gostaria de fazer algumas ressalvas:
Alguns poderão pensar que estas Cartas dão uma visão demasiado branda do que foi de facto a guerra na Guiné. Mas a explicação é sucinta: nas cartas e aerogramas, que ia enviando de lá, era quase inevitável escamotear, adoçar, a realidade nua e crua para poupar a família de medos e angústias desnecessárias e prematuras. O perigo, o medo, o pavor da morte súbita, existia mesmo em cada momento ali vivido, a milhares de quilómetros de casa, mas para quê fazer com que a família, também o sentisse? Assim, de imediato, talvez fosse melhor disfarçar, tentar dar uma ideia que se tratava de mais uma drôle de guerre, umas férias forçadas é certo, mas que acabariam por vir a ser apenas recordações de um período memorável da nossa juventude.
Além disso as Cartas são também o reflexo da vivência de um privilegiado, um oficial miliciano que embora sofrendo as agruras da guerra como qualquer militar, sofreu-as certamente com outra suavidade do que a de um simples soldado, este sim, obrigado a conviver quase sempre com a mais abjecta das condições humanas. Embora as carências sentidas fossem muito distintas, tanto físicas como intelectuais, isso não invalida que a dimensão moral deste testemunho não seja, na verdade, muito menos pertinente, embora também, não menos importante.
Depois a nossa compreensão, dos factos e das coisas, é também embotada pela distância no tempo. O que agora lemos, foi o que eu senti e escrevi à quarenta anos atrás, num mundo totalmente diferente, um mundo em que não havia computadores pessoais, telemóveis e muitas outras coisas tão banais nos dias de hoje. O entendimento do mundo era muito diferente, não havia o que agora chamamos de conceito da aldeia global.
Tudo era medido, analisado e compreendido à nossa pequena escala, à escala do nosso corpo, da nossa casa, da nossa família, da nossa rua, da nossa pequena cidadezinha de província, do nosso país semi-rural e quase analfabeto.
Mas, mesmo assim, aqui fica como um testemunho, ou apenas um relato, talvez ingénuo, mas realista, do fim da aventura africana, que na década de 60, ficou gravada a sangue e fogo na nossa memória, nos modelou o carácter e nos fez crescer mais depressa.
Viana do Castelo, 2005
Carlos A. Geraldes
P.S. Evidentemente que todos os nomes das personagens (europeias) são pseudónimos.
Prólogo
(Excerto de uma carta escrita, durante uma longa marcha efectuada pelos contrafortes da Serra de Sintra, nos exercícios finais do Curso de Oficiais Milicianos realizado de Agosto a Dezembro na Escola Prática de Infantaria de Mafra)
Silveira, 12 Dez 1963Aproveito agora para vos escrever.
Esta carta esteve para ser começada em Manchôa, Torres Vedras, mas aconteceu que o tempo que calculei para esperar pela emboscada foi muito menor e tive de largar a escrita precipitadamente, para agarrar na espingarda.
A guerra tem andado boa, apesar de eu andar estafado dos pés. Já estamos no fim de quinta-feira e quase tudo me parece impossível. O tempo voa!
A nossa primeira etapa foi até Encarnação, uma vila ao norte de Mafra. Acampámos num pinhal e choveu durante toda a noite. As tendas, improvisadas com quatro panos de tenda do equipamento individual, mal davam para nos abrigarem. Ficámos com os pés de fora! E como dormimos com as botas calçadas, para que estas não ficassem ensopadas com a chuva, remediámos a situação embrulhando-as com mantas. Mesmo assim quase não se pregou olho toda a noite a segurar na tenda para que esta não fugisse com a fúria do vento e da chuva.
Levantámo-nos de madrugada e depois de uma trôpega fila para uma caneca de café a ferver temperado com um golo de aguardente, fizemo-nos de novo ao caminho. Só parámos às cinco e meia da tarde, perto de Torres Vedras, nas termas dos Cucos, onde ficámos acantonados, distribuídos por alguns pavilhões vazios.
Apesar de agora ficarmos deitados em esteiras espalhadas pelo chão, a coisa foi muito melhor que na noite anterior. No dia seguinte, mais descansados, fizeram-nos percorrer montes e vales por mais de 30 quilómetros. Nunca chafurdei em tanta lama junta! As botas metem água por todos os lados e até já mudei de meias uma vez. Creio que ainda hoje voltarei a mudar. Passaremos a noite em Silveira em alojamentos que ainda não conheço, arranjados pelo abade da freguesia.
(Um magnífico palheiro cheio de palha seca e quentinha que nos transportou ao Paraíso…)
Presentemente estou a escrever-vos sentado atrás de um canavial, onde estou com outros camaradas, a preparar uma emboscada ao pelotão que nos tem seguido até aqui. Só existem duas balas (de madeira, claro!) para realizar o simulacro e vou ser eu quem vai dar um dos tiros.
Por todo o lado, em que temos passado, é uma festa para a miudagem que, até fogem da escola para nos ver, meter conversa e correr atrás de nós.
E se não fosse uma água-pé que, pelo caminho, uns camponeses nos ofereceram, creio que não teríamos chegado até aqui tão animados
Amanhã teremos um percurso menor e portanto um maior descanso.
(O tempo decorrido entre esta carta e a anterior, foi passado principalmente no Quartel do antigo RAP 2 em V.N. de Gaia, onde fui colocado após a conclusão do curso de oficiais milicianos, com a patente de Aspirante a Oficial. Aí dei instrução a um pelotão de recrutas, integrado numa Companhia Independente destinada a embarcar para… Moçambique, Namaacha, destino que depois não se cumpriu para grande aflição nossa. Os altos mandatários da Nação começavam já a manobrar febrilmente os peões sobre o tabuleiro de jogo, sem que se vislumbrassem resultados concretos. A juventude de um povo servia de carne para canhão…)
A bordo do “Uíge” – 12 Maio 1964
Em Lisboa não vi ninguém da família e, por conseguinte, não vi também ninguém de quem me despedir.
Chegámos a Lisboa de comboio por volta das oito horas da manhã. Meteram-nos logo em camionetas e levaram-nos para o cais de embarque em Alcântara. O barco é o "Uíge" como já sabem e vai servir apenas para o transporte das tropas. Mais de mil soldados, contando connosco, tudo com destino… à Guiné.
Sim, vamos para a Guiné e isso era a outra coisa que tinha para vos dizer e que, tinha mantido em segredo. Afinal já não vamos para Moçambique como estava prometido de início. À última hora mobilizaram-nos para a Guiné, como aditamento aos soldados enviados agora para lá.
A viagem de navio vai demorar seis dias, sem escala em qualquer porto de mar. Só de vez em quando é que passa por nós outra embarcação lá muito ao longe.
Os oficiais vão todos instalados nos camarotes de 1.ª classe. Eu e o Cardoso ocupamos um, com quarto de banho privativo, ar condicionado, ventoinha, etc., todos os requintes de conforto, mesmo junto ao camarote do comandante do navio. As refeições são excelentes e constituem, por assim dizer, uma ansiada quebra na rotina diária. À noite há cinema ao ar livre, pois o navio é tão pequeno que nem sequer tem uma sala de cinema. Os filmes são, quase todos, comédias ligeiras e dois deles, já os tinha visto há dois ou três anos.
O gira-discos não funciona porque, com a pressa, nem me lembrei de comprar as pilhas. Mas não faz mal porque há altifalantes espalhados por todo o convés sempre a vomitar música estridente.
Nos dois primeiros dias enjoei um bocado, mas agora ando perfeitamente à vontade. Gosto imenso da vida no mar. Sabendo ocupar o tempo não há vida melhor. Logo que desembarque enviar-vos-ei esta carta, para que não estejam mais aflitos. Estou bem, não me falta nada e, principalmente, estou cheio de boa disposição. De todos nós, sou até o mais bem-disposto. Veremos depois.
Digam ao Zé que ele havia de gostar de fazer esta viagem e conhecer estas paragens. Ainda hoje vi peixes voadores formidáveis.
CG
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Nota de CV:
Vd. poste de apresentação de 6 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4787: Tabanca Grande (170): Carlos Adrião Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca (1964/66)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caro Carlos Geraldes
Curiosamente ao ler os aerogramas que fui trocando com a familia, também sou levado a chegar á conclusão que a guerra da Guiné era um mar de rosas, mas era de tal maneira que nem os familiares acreditavam.
Como nós haverá muitos camaradas que o fizeram.
Um abraço
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