quarta-feira, 7 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6127: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (17): Quem marca o destino é Deus

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 4 de Abril de 2010:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Anexado encontrarás mais um pouco da minha passagem pela Guiné. É uma história diferente, que fala por si.

Para ti e para todos os nossos camaradas um abraço amigo, desejando a todos muita saúde,
José Câmara



Memórias e histórias minhas (17)

Quem marca o destino é Deus


A patrulha avançava pelo emaranhado da mata, naquela que seria a última ronda antes de pernoitar e emboscar. O homem rádio deu sinal de mensagem.

- "O Manuel Veríssimo sofreu un acidente grave. Está a ser evacuado para Bissau. Não deve escapar!". Foi com esta crueldade que recebemos, ao cair do dia de 12 de Abril de 1971, a notícia do acidente que vitimou aquele soldado.

De repente as árvores tornaram-se mais grossas e o matagal mais denso. Com o cair da noite, o coração tirou tempo para lavrar muitas presses de esperança, e os olhos perdidos no firmamento contaram estrelas até ao amanhecer. Foi uma noite muito longa!

José Câmara em patrulha na Mata dos Madeiros

Aquele soldado, de seu nome completo Manuel Veríssimo de Oliveira, era natural de São Miguel, e os seus restos mortais foram enxumados no Cemitério da Lomba de São Pedro sua freguesia natal.

Não pertencia ao meu Pelotão, e os nossos contactos eram os normais dentro de uma Companhia de Intervenção. Lembro-me que era um jovem pouco alegre e de uma educação esmerada. Talvez a vida dura que levara na ilha, e o facto de ser o amparo da mãe e de uma irmã (à altura com cerca de 10 anos, se a memória não me falha) tivessem contrbuido para modelar a sua forma de estar na vida.

Soccorri-me das memórias do Furriel Enfermeiro Rui Esteves, que prestou os primeiros socorros ao infeliz Manuel, e ainda do Soldado Condutor, Manuel Borges da Silva que conduzia o Unimog, do qual o Manuel foi projectado, para mais detalhadamente me ajudarem a construir a história do acidente.

Mas afinal o que se passou?

O Manuel pedira ao capitão para ir ver um primo que se encontrava em Bassarel. Devidamente autorizado, foi escoltado até Teixeira Pinto, tendo passado a Páscoa com o primo. Na tarde do dia 12 de Abril de 1971, estava de regresso ao acampamento.

A escolta depois de, no Bachile, pegar o pão, correio e o demais necessário, prosseguiu para o local onde a Companhia estava acampada.

Ao longo da estrada nova que estava a ser construída era normal encontrarem-se, de um lado e do outro da mesma, montes de areia que servia para cobrir e enxugar o alcatrão. Segundo o condutor, foi esta situação que encontrou, com dois montes muito próximos um do outro.

Terraplanagem da Estrada Teixeira Pinto/Cacheu na qual o Manuel foi vítima mortal

O condutor ao desviar-se de um monte, de imediato teve que fazer contradesvio ao outro. Com o movimento brusco, o Manuel, instintivamente, tentou segurar os sacos do pão, acabando por ser projectado e indo bater com a cabeça no chão.

O Furriel Esteves, num email que me mandou debruçou-se sobre este assunto da seguinte forma:

O Furriel Esteves que prestou a assistência ao Manuel
Foto: © Rui Esteves (2005). Direitos reservados

"O Manuel Veríssimo de Oliveira foi socorrido por mim na estrada onde caíu.

Deviam ser cerca das 16 horas, estava no acampamento da mata dos Madeiros, aparece-me o alferes João Luís Ferraz a gritar por mim, desesperado, porque um soldado tinha caído do Unimog e estava inconsciente.

Peguei na mochila dos primeiros socorros e arrancámos para o local do acidente. Quando lá cheguei dou com o Manuel Veríssimo de Oliveira em estado de coma.

O soldado Manuel Veríssimo vinha a segurar o saco do pão e quando o Unimog passou por um buraco agarrou-se ao saco e caíu desamparado no chão, batendo de cabeça.

Morreu para salvar o pão da nossa Companhia.

Chamámos um helicóptero para a evacuação, mas dado que o dia estava quase a acabar, já não vieram buscá-lo. O que nós praguejámos contra o pessoal da Força Aérea!

Aqui já não me recordo bem do que aconteceu a seguir. Tenho a ideia que segui eu e um condutor e que levámos o desgraçado Manuel Veríssimo a Bissau. Isto pela noite fora, sem escolta, sem nada e que o deixámos em Bissau.

Regressámos no dia seguinte e passados dois ou três dias recebemos a informação que o nosso soldado tinha morrido.

Passados estes anos todos confesso que ponho em dúvida se foi mesmo assim, se fomos mesmo a Bissau com ele. Se foi - foi uma grande loucura e tivemos muita sorte em ter percorrido tanto quilómetro sem nos acontecer nada!

A ideia que eu tenho é nós a avançar pela noite fora, os faróis do Unimog a iluminar a estrada e eu e o condutor a ver que estávamos metidos num grande sarilho se nos apareciam os homens do PAIGC."


O Manuel viria a falecer no dia 23 de Abril de 1971. Constituíu a única baixa fatal da CCaç 3327 no TO da Guiné.

Fui designado para prestar assistência à família do nosso militar sinistrado, tendo trocado vária correspondência com a sua mãe.

Aos meus olhos o Manuel era um herói. Não dos tiros, mas da educaão, da participação, do trabalho, da camaradagem, do cumprimento do seu dever militar. Esta foi a mensagem que tentei passar àquela pobre mãe.

Mais tarde, inesperadamente, recebi uma carta daquela mãe onde dizia, sensívelmente as seguintes palavras:

“ Eu era uma mãe triste por perder o meu filho, mas feliz por saber que ele tinha morrido como um herói. O Senhor mentiu-me. O meu filho morreu bêbado. Hoje não tenho nada."

Fiquei estarrecido. Não conseguia compreender aquelas palavras, até que se fez luz no meu cérebro. O Manuel tinha ido visitar um primo a Bassarel e era muito natural que tivesse tomado uns copos com este.

Infelizmente, foi a mensagem que chegou aos Açores e àquela pobre mãe. Em nome da verdade, quando o acidente aconteceu o Manuel estava, segundo os camaradas que o acompanhavam, perfeitamente sóbrio. Aliás, ele levava uma vida bastante regrada. Poupava para mandar o máximo possível para a sua mãe.

Respondi àquela angustiada mãe. Infelizmente não recebi resposta.

Mais tarde, o soldado José Medeiros (se a memória não me atraiçoa) depositou nas minhas mãos, versos de homenagem ao Manuel. Perguntei-lhe quem tinha escrito aqueles versos, respondendo ele que isso não interessava. E acrescentou:

- Nós queremos que o meu furriel guarde esses versos. Nós sabemos que o senhor saberá o que fazer com eles.

É verdade. Sempre soube o que fazer com eles. Infelizmente, nunca tive a oportunidade de me encontrar com a mãe do Manuel. Tão pouco sei se ainda vive e o que é feito da irmã, hoje uma mulher na proximidade dos 50 anos.

Aqui deposito estes versos simples, escritos na Mata dos Madeiros, por um desconhecido da CCaç 3327. O seu valor moral vai muito para além do valor literário. Essa é a melhor homenagem que podía prestar ao Manuel Veríssimo de Oliveira. Tenho a certeza de que os elementos da CCaç 3327 estão comigo neste momento.

Tal como me foram confiados, limitando-me a corrigir algum erro ortográfico.

Cópia parcial dos versos que me foram confiados


Versos sobre um rapaz que morreu na Guiné

I
Peço ao Senhor do Altar
e à Virgem Santa Maria
forças para vos contar
o que sucedeu neste dia

II
Vou-vos contar com fé
que neste mundo de enganos
morreu um rapaz na Guiné
que tinha 21 anos

III
Era boa criatura
este infeliz sem sorte
que caíu de uma viatura
que lhe causou a morte

IV
Foi no dia 12 que isto se deu
tudo o que estou a contar
e pelo seu nome chamei
e ele sem nunca acordar

V
Manuel Veríssimo de Oliveira
era o nome da criatura
que lutou pela Bandeira
e agora jaz na sepultura

VI
Ele saíu cá do cimo
com imensa alegria
para ir visitar o primo
que já há tempo não via

VII
A Teixeira Pinto se deslocou
e um adeus disse à gente
e no outro dia se lembrou
de voltar ao acampamento

VIII
Mas coitado não sabia
não podia adivinhar
que aquele era o dia
que nos ia largar

IX
Ele na viatura entrou
para vir para o acampamento
foi o Mestre que o chamou
naquele dia de repente

X
E o carro começou a andar
e pela estrada corria
e nós vinhamos a cantar
com imensa alegria

XI
Neste momento o carro entrou
na curva com um trambolhão
e o pobre não se aguentou
e foi atirado ao chão

XII
E a queda foi tão forte
que logo inerte ficou
e mais tarde veio a morte
que consigo o levou

XIII
Estou como vendo agora
quem lhe criou com tanto brilho
a sua mãe de outrora
que tanto chora pelo filho

XIV
Muito que a mãe chorou
e no seu pranto dizia
já não tenho quem me ganha
o pão nosso de cada dia

XV
Tive dó da mulherzinha
digo isto mesmo a fundo
porque o único amparo que tinha
já estava no outro mundo

XVI
Era natural de São Miguel
Lomba de São Pedro a freguesia
deste pobre Manuel
que morreu neste dia

XVII
Manuel rapaz novo
que morreu neste dia
era estimado pelo povo
da sua freguesia

XVIII
Pobre infeliz sem sorte
era um bom militar
desgraçada seja a morte
que deixa uma mãe a chorar

XIX
Foi no dia 23
que a morte o foi buscar
e já deu contas a Deus
que este o tenha em bom lugar

XX
Quem marca o destino é Deus
até à hora chegar
rezem por este português
que era um bom militar

XXI
E quem estes versos um dia
os puder ler em paz
no fim reze uma Avé-Maria
por alma deste rapaz

XXII
Agora vou finalizar
e vejo que faço bem
bem me queiram desculpar
os erros que aqui tem

XXIII
Tudo isto aqui se encerra
onde há terra também há pó
toda a gente no mundo erra
quem não erra é um Só
.

Hoje, passados que são trinta e nove anos sobre este acontecimento, continuo a escrever como então:

Minha Senhora,
Tenha a certeza de que o seu filho faleceu no cumprimento do seu dever militar. No meu sentir, e no de todos os seus camaradas, ele faleceu como um herói. Que estas palavras possam ajudar a suavizar a sua dor que todos nós, militares da CCaç 3327, sabemos ser imensa, e de que também partilhamos.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros

8 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro José da Câmara

De facto é (parece ser) uma história diferente...
Mas está na mesma perpassada do habitual toque humanista que costumas imprimir aos teus relatos.
Por isso, não é diferente!
É uma bonita e sentida homenagem a uma camarada que encontrou a morte longe da sua família natural, perto dos seus camaradas.
Um abraço
Hélder S.

rui esteves disse...

Grande post Zé Câmara,
Estás cada vez melhor a recordar a nossa saga na Guiné.
Se ao principio -- nos primeiros posts -- se notava que estavas um pouco esquecido do português, agora estás com um domínio primoroso da escrita.
Parabéns e obrigado por incluíres a minha mensagem sobre este episódio.
Abraço,
Rui Esteves

MANUELMAIA disse...

CARO JOSÉ CÂMARA,

HOUVE SITUAÇÕES MUITO SEMSLHANTES QUE SE REPETIRAM NA GUINÉ.

TAL COMO O TEU CONTERRÂNEO VERÍSSIMO QUE MORREU DA QUEDA DE UM UNIMOG,TAMBÉM OS MEUS AMIGOS FURRIEIS AFONSO DE TRANSMISSÕES, E JOÃO MANUEL QUENTAL COSTA LIMA, OPERAÇÕES ESPECIAIS,TEU CONTERRÂNEO DE S.MIGUEL,MORRERAM
IGUALMENTE DE UMA QUEDA DE UM UNIMOG DEPOIS DE NUM BURACO DA ESTRADA O BANCO TRASEIRO DE DOIS LUGARES ONDE VIAJAVAM SE TER RECOLHIDO( TALVEZ POR ESTAR MAL COLOCADO E PRESO...).
SEI QUE O PAI TINHA UM STAND DE AUTOMÓVEIS EM S.MIGUEL,E QUE ADOPTARAM E EDUCARAM UM EX-FAXINA,HOJE HISTORIADOR A TRABALHAR NA CÂMARA DE S.MIGUEL,CHAMADO ARMANDO.

UM ABRAÇO AMIGO

MANUELMAIA

Anónimo disse...

Amigo José da Câmara

Uma estória bem descrita, de infelicidade e dor,como tantas e tantas outras que aconteceram, por capricho da hora,do destino,sem sentido,o que choca ainda mais.

Tambem tivemos a nossa dose por causa de uns buracos na estrada de Bula-J.Landim. O Fontinha que diga do sofrimento!

Por algum motivo te “elegeram” como fiel depositário de um documento que me parece poder ser importante, já que é demonstrativo da estima que os Camaradas de Armas tinham pelo Manuel Veríssimo.

Foi uma responsabilidade nada fácil que te confiaram na certa por mereceres essa confiança, José da Câmara.Isso é BOM

Um abraço
Luís Faria

Anónimo disse...

Caro José Câmara,
Mais uma História tristíssima, mas cheia do Humanismo que te está na Alma. Não temos que julgar ninguém. E quem atormentou aquela mãe com notícias infundadas deve ter-se arrependido. Oxalá tenha, posteriormente, conseguido desfazer junto da Senhora o mal que lhe fez.
Mas só mais uma coisa, esta para o MANUEL MAIA. Como sou aqui professor de História Contemporânea na Universidade, é natural que, de há cerca de 25 anos para cá, praticamente todos os que completam o curso de História (e alguns outros cursos) tenham sido meus alunos. Fiquei curioso sobre quem seria este guineense. No blogue
macua.blogs.com/moambique_para_todos/.../jack_brama.doc

vem lá a história dele. Foi meu aluno. É do tipo que considero "um belo ponto". Sempre lhe achei muita piada, até porque é uma pessoa muito alegre. Julgo que, entretanto, já terá concluído a licenciatura, que foi fazendo à medida que o trabalho permitia. Não me parece (mas posso estar enganado) que trabalhe na área de história.
Um abraço,
Carlos Cordeiro

MANUELMAIA disse...

CARO CARLOS CORDEIRO,

MAL LI O TEU COMENTÁRIO,FUI DE IMEDIATO TENTAR ACEDER AO BLOG QUE CITASTE MAS NÃO CONSEGUI ENTRAR.
SERÁ QUE É EXACTAMENTE AQUELE?
SE PUDESSES FAZER O FAVOR DE CONFIRMAR,AGRADECIA.

CREIO QUE É MESMO O ARMANDO,POIS AQUI HÁ DOIS OU TRÊS ANOS NUM ALMOÇO DE COMPANHIA ELE APARECEU PARA NOSSA ALEGRIA,APERCEBENDO-ME ENTÃO DA SUA HISTÓRIA DO PÓS-GUINÉ.

SE CONSEGUIRES O SEU MAIL,AGRADECIA

ABRAÇO

MANUELMAIA

Jorge Fontinha disse...

É um pouco doloroso relembrar o que se passou comigo que foi mais ou menos semelhante, entre Bula e João Landim.Já que o Luis Faria o mencionou no seu comentário, e porque já contei essa Estória no "Post" < P3888 em Março de 2009> falta só mencionar que também me coube trocar correspondência com a família mas felizmente consegui resultados mais positivos.
Aquele abraço.

JORGE FONTINHA

Anónimo disse...

Caro Camarada José da Câmara

Dado ainda não pertencer a esta Tabanca peço licença aos responsáveis pela mesma para comentar o teu post.
Como já referi num anterior comentário, devemos ter-nos cruzado no CISMI em Tavira, dado que fiz lá a recruta e a especialidade de 06/04/70 a meados de Novembro do mesmo ano, e por coincidência também fui parar à Guiné. Tendo chegado a S. Domingos a 13/05/1971, incorporado na C.CAV 3365. Fui posteriormente transferido para a C.Caç. 16, no Bachile, em rendição individual. Quando lá cheguei já a estrada a que te referes se encontrava concluida. Cabendo depois à Companhia Africana a que passei a pertencer a tarefa da capinagem e outros trabalhos de conservação da referida estrada.
Em Abril de 1972, testemunhei um acidente identico ao que descreves, que ainda hoje tenho gravado na minha memória. No regresso de uma deslocação a Teixeira Pinto, de Unimog, que transportava cerca de 9 militares da referida Companhia Africana, sendo eu o Furriel, e unico elemento branco, à saida de Teixeira Pinto no entroncamento para o Bachile, quando o condutor descreveu a curva, para virar na direcção do Bachile, a velocidade reduzida, o meu camarada 1º Cabo Upa Gomes, desequilibrou-se do Unimog e caíu desamparado no chão batendo com a cabeça no alcatrão, tendo tido morte imediata. Fiquei estarrecido perante a ocorrência, pela perda de uma vida por uma pequena queda. Depois de ter pedido socorro e confirmada a morte, coube-me a mim a triste missão de, juntamente com outros camaradas africanos, informar os familiares residentes em Teixeira Pinto, donde este militar era natural e onde residia. Ainda hoje retenho na memória o choro dos familiares e os rituais manjacos aquando da recepção desta triste notícia.
Um abraço
Bernardino Parreira
Faro