domingo, 13 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6584: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (34): Diário da ida à Guiné - 16/03/2010 - Dia treze


1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2010:

Caro Carlos:
Da próxima vez enviarei o último relato da minha visita à Guiné-Bissau e estou com sensação semelhante à que tive lá, quando os quinze dias estavam a chegar ao fim.

Um abraço
Fernando Gouveia



A GUERRA VISTA DE BAFATA- 34 

Diário da Ida à Guiné – Dia Treze (16- 03-2010)

Ainda antes do Sol nascer e do Xico se levantar, fui ver a armadilha que tinha montado num trilho bem marcado, de um qualquer bicho pequeno. Embora o que viesse a apanhar se destinasse aos empregados que, como já referi, não recebiam qualquer remuneração há cinco ou seis anos, verifiquei que o bicharoco passou por baixo do laço. Reposicionei-o e vim tomar o pequeno almoço com o Xico que a seguir tinha que ir a Bissau. Desta vez não fui com ele e ainda fui (sem resultado algum) ver se apanhava alguma ave grande para o Maurício, o José e o Kekuta. O Moro, o chefe, vivia em Bula e aparentemente não tinha as necessidades dos outros guardas.

O carreiro que tantas vezes percorri para apreciar a mata, os palmeirais e toda a bicharada que aí vivia.

Aproveitei o resto da manhã para fazer uma já programada entrevista formal ao chefe dos “empregados” do Anura Club, que foi guerrilheiro do PAIGC. Foi registada em filme mas passo a reproduzi-la em texto.

O Moro Sissé.

FERNANDO GOUVEIA – Vou tentar fazer uma entrevista a um ex-guerrilheiro do PAIGC que, como quase todos os seus camaradas, se encontram actualmente integrados na vida civil. Excepto os cerca de onze mil comandos africanos das NT que já cá não estão, todos os outros combatentes, dos dois lados, vivem agora em plena harmonia, o que por mim foi constatado nas visitas a grande parte da Guiné-Bissau: de Varela a Bafata, de Mansabá ao Saltinho, passando por inúmeras tabancas. Invariavelmente encontravam-se em lugares de relevo, como chefes de tabanca e chefes religiosos, antigos combatentes das NT. Também, do ex-guerrilheiro ao alto dirigente, se verificou o generalizado sentimento de “pró-portugalidade”. Vamos pois falar com um ex-guerrilheiro que se chama…

MORO – Moro Sissé.

FG – Idade, etnia…

MORO – Tenho cinquenta e seis anos de idade, sou de etnia mandinga, nasci em Farim e sou agricultor, além de ser chefe dos guardas aqui no Anura Club.

FG – Considera-se um grande agricultor?

MORO – Sou pequeno agricultor. Cultivo caju. Actualmente produzo, por ano, cerca de uma tonelada, mas as plantações estão a crescer e espero vir a produzir muito mais.

FG – Além do aproveitamento da castanha o que fazem ao resto do fruto?

MORO – Faz-se vinho de caju mas só para os não muçulmanos. O sumo poucas pessoa o bebem. A maior parte do fruto, exceptuando a castanha, é deitado ao lixo.

FG – Embora fazendo serviço aqui no Anura Club não mora aqui…

MORO – Moro em Bula a seis quilómetros daqui, com duas mulheres.

FG – Mudando de assunto, pode-me dizer em que altura foi combatente?

MORO – Quando começou a luta armada eu ainda era muito novo para pegar em armas. Só entrei na luta em 1968.

FG – Foi também quando eu vim cá para a Guiné. Estivemos pois os dois ao mesmo tempo na guerra. Em que zona é que combateu?

MORO – Comecei na zona de Canjambari, depois andei por todo o Morés e também pela zona fronteiriça de Faquina. Aí vinham viaturas do Senegal trazer material e munições sendo nós que fazíamos o transporte para as zonas de combate.

FG – Que armas é que usou?

MORO – Primeiro tive uma carabina chinesa, mais tarde uma Hk e cheguei a ter uma pistola Magaroff.

FG – E armas pesada, RPG…

MORO – Nunca usei, mas vi utilizá-las aos meus camaradas.

FG – Fale-me de alguma acção importante em que tenha entrado.

MORO – Um dia, penso que em fins de 1968, saímos de Canjambari às oito da noite e na zona de Cantacunda, uns quinze quilómetros a leste de Cambajari, fomos emboscados pelo inimigo. Tivemos três mortos e um desaparecido pois como não conhecia aquela mata deve ter-se perdido.

FG – E ataques?

MORO – Muitos, lembro-me de um ataque que fizemos a Mansabá, talvez em 1971. Já não recordo bem pois nessa altura não tínhamos condições para fixar datas. Atacámos às nove da noite pois não podia ser mais tarde para termos tempo para fazer a retirada.

FG – Durante as emboscadas era frequente haver soldados nossos que, por medo ou não, se atiravam para o chão e disparavam para o ar. Com os guerrilheiros também acontecia isso?

MORO – Acontecia, nessa situação cada um pensa só pela sua própria cabeça e para salvar a pele havia alguns que faziam isso.

FG – No princípio de 1970 ouviu falar na rendição de um grupo do PAIGC da zona do Chão Manjaco mas que acabou com a morte de três Majores, um Alferes e dois condutores negros?

MORO – Sim, quem comandava esse grupo era o André Gomes. Quem estava também na lista para ser apanhado era o Dr. Fernando Estaca.

FG – Era simples soldado ou tinha outra patente?

MORO – Não havia patentes, éramos todos iguais, guerrilheiros.

FG – Uma última pergunta, Moro: - Dentro do seu grupo pensava-se que iam ganhar a guerra?

MORO – Sim, sim, com toda a certeza, não tínhamos dúvida alguma.

FG – Obrigado Moro, foi um prazer falar consigo. Vou levar este filme para Portugal para mostrar aos camaradas que costumam vir cá e aos que não vêm.

Entrevistando o ex-guerrilheiro Moro Sissé. (Fotograma de filme).

Como o Xico devia estar a chegar de Bissau fui adiantando o almoço. Havia uns ovos cozidos que não se podiam deixar estragar e com carne que tinha sobrado fiz mais um arroz delicioso. Havia a habitual sopa que estava óptima.

Depois foi a sesta e ao fim da tarde ainda fomos, a pedido do camarada Álvaro Basto, ao Centro de Recuperação Nutricional Infantil em Bula. Lá, pedimos à Irmã que nos atendeu para fazer um relatório com as carências que tinham.

Pátio interior do Centro de Recuperação Nutricional Infantil de Bula.

Uma das dependências do Centro. O mais bem arranjado de muitos Centros de Saúde e Hospitais que visitei. Era gerido por freiras italianas.

Jantámos, vimos o noticiário na TV com o relato da sujeira do negócio da TVI, mandámos desligar o gerador e cama.

Até amanhã camaradas.
Fernando Gouveia
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6555: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (33): Diário da ida à Guiné - 15/03/2010 - Dia doze

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Fernando

As tuas reportagens continuam bem vivas. E desta vez até deu direito a entrevista....
Só a armadilha é que parece que não resultou!
Também eu, como leitor, já estou a antecipar o fim das mesmas, o que é lamentável.
As tuas fotos também são imprescindíveis para um melhor enquadramento nos vários locais.
Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Desculpa Fernando,mas falar de onze

mil comandos africanos,só pode

tratar-se de um manifesto lapso...

Abraço.

Jorge Cabral

Fernando Gouveia disse...

Caro Jorge: (e demais camaradas)

Agradeço a tua dupla correcção. Irei corrigir o lapso logo que faça umas pesquisa sobre o assunto. Desculpem todos.

Abraços.
Fernando Gouveia