domingo, 4 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10619: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (1): A morte do quarteleiro

O Ricardo Almeida (ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) pediu-nos para juntar os seus textos (prosa e verso) numa só série... Vamos fazer-lhe a vontade, até por que é um direito que lhe assiste, como membro da Tabanca Grande que nos honra com a sua colaboração ativa e continuada... 

Chamámos à série Prosas & versos do Ricardo Almeida". E aqui vai o primeiro poste, "Heranças de guerra"... O editor, contudo, achou por bem arranjar um título mais concreto e sugestivo: "a morte do quarteleiro". (LG)

1. Prosas & versos > Heranças de guerra (1)
por Ricardo Almeida



Dia inesquecível aquele em que um batalhão de caçadores [, o BCAÇ 2879,]  deixa Portugal a caminho da Guiné (ex- ultramar), já tão calcada e espezinhada por milhares de jovens que,  deixando outrora sua família e seu lar, vão enfrentar o caminho da guerra, que lhes foi predestinado, e que deixa nos rostos de cada um expressões de mágoa, de dor e até de ressentimentos, que transportavam nos seus corações. 

Neste monótono turbilhão de coisas que me deixam atordoado, eis que exprimo toda a minha amargura e desagrado por tudo o que vivi com camaradas excepcionais, com outros mais desonestos, mais desumanos, mas, enfim… é tropa e a nada disto se pode fugir quando se cumpre uma missão.

Perante estes factos, destaco um jovem militar que, pelo seu comportamento, não chegou a conquistar a amizade dos seus companheiros, dada a sua personalidade baixa, modos insuportáveis, desordeiros e irrequietos, mas que cumpria a sua missão como tantos outros.

Dispenso-me de citar o seu nome.  
Com a especialidade de condutor auto, foi destacado para a arrecadação, municiando-nos de material quando saíamos para a mata. 

Valeu-lhe aquela colocação a alcunha de Hipócrita.  
Certo dia tive problemas com ele, mas a crise passou e tudo esqueci. Mais tarde de regresso de uma operação no capim, senti como que uma fraqueza infindável e baixei à enfermaria. Ai estive dez dias, até que fui transferido para o hospital de Bissau e seguidamente evacuado para a metrópole. 

Esperava-me o HMDIC [, Hospital Militar de Doenças Infeto-Contagiosas, em Lisboa, Belém,]  e o Caramulo. Resultado:  
“Tuberculose pulmonar”. Moral: desfeita! 

Já em período de restabelecimento e em data que de momento não recordo, após o jantar, entretia-me a ler um pouco para tentar afogar pensamentos horrorosos que tentavam afluir-me à memória.
Um colega, uma triste noticia, um abraço. 
- Almeida, sabes quem está aqui com a morte quase no goto? 
- Não, quem é? Morre-se todos os dias, na frente, na retaguarda e até no Hospital. -  conclui. 

O colega foi directo e espontâneo e com voz rouca, disse:
- “O Hipócrita”da arrecadação de material! 

Apesar de tudo, considerava-o humano, tal como eu, e desloquei-me à enfermaria onde ele se encontrava. A enfermaria 2 era uma espécie de cubículo, onde os “esqueletos vivos” se amontoavam, jogando-se forte na vida.

Espiei-os e encontrei o que procurava. Estava a oxigénio afim de lhe facilitar a respiração. Pronunciei o seu nome mas ele não me ouviu. Tinha os olhos fechados, a boca um pouco  a
berta e a resposta saiu-lhe dos lábios, como que arrancada lá do fundo: 
- Morro...Água! 

Eu não podia suportar aquele drama doloroso. Um homem a debater-se com a morte apesar de tantas ter visto, mas aquele era diferente. Aproximei-me e perguntei-lhe:
- Queres água? Não me conheces? 

O som das minhas palavras abriu desmesuradamente os olhos e num esgar de dor, respondeu:
- Não! 

Não era para admirar, pois que nem eu, às primeiras impressões, o reconheci. Estendi a mão e disse-lhe quem era. Apesar do choque, já refeito, as lágrimas afloraram-me aos olhos, não podia já olhar aquele corpo já inerte, só com a pele a segurar-lhe os ossos e a recordar como mo conheci: Forte, esbelto e saudável. 

– Água, Almeida. Tem dó de mim! 

Ensopei um bocado de algodão em água e coloquei-lho nos lábios, que já me parecia moribundos. 
Consegui mexê-los e, de repente, tentou suprimir todas as dores naquele bocado de algodão introduzido agora na boca.  Retirei-lho e tentei acalmá-lo, mas inutilmente. As lágrimas apareceram-lhe nos olhos e pediu-me perdão. 
–  Estás perdoado,  amigo. –  respondi. 

Fui-me deitar não consegui conciliar o sono nessa noite.  Os dias iam passando e a minha companhia era inseparável da sua cabeceira. Até que chegou o momento mais doloroso para mim, apesar de viver a guerra e estar habituado a ver coisas que os meus olhos nunca sonharam ver, mas que forçosamente eram obrigados a aceitá-las. 

Dia 21 de Outubro daquele ano de 1970.  
Encarando a realidade e sem coragem de me despedir dele, soube que tinha falecido.  Poucas horas decorridas e inesperadamente, vi-o, pela última vez, envolto num lençol, aquele farrapo humano, transportado em maca, pelo corredor de acesso à casa mortuária, onde deveria entrar naquela maldita “urna”, oferta exclusiva do Exército Português! Envolto nos meus pensamentos e alheio até ao lugar que ocupava, dei uma palmada no caixão, como que a implorar-lhe vida: 
 Acabaram-se as tuas forças, as tuas reguilices, a tua fraca reputação. Apesar de tudo eras humano, por isso te rendo homenagem com o coração destroçado e como teu amigo que era, me despeço até um dia…  – Balbuciei!!! 

Ricardo Marques de Almeida
1.º Cabo 089225/68

10 comentários:

Luís Graça disse...

Ricardo: Não queres ser mais explícito e dizer-nos de que é que morreu o teu quarteleiro ? Doença ? Acidente ? Ferimentos em combate ? ... Diz-me se gostas do título para tua série... e se efetivamente chegaste a estar nos sítios todos da tua companhia: Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem... Um abraço. LG

Unknown disse...

Parabéns honorável António Teixeira pelo cabalístico sétimo aniversário do HDA .
Cumprimentos
A.Dias

Unknown disse...

O comentário anterior foi aqui postado por engono (erro meu).
As minhas desculpas ao LG e a todos os tabanqueiros.Muita saude para todos nós.
A.Dias

Antonio Melo disse...

Camarada li com muita atençao o que escreves, aparte da dor que sempre me causa ler algum tema sobre a morte de um camarada quer seja na frente de combate ou na retaguarda, num hospital como e o caso, doi muito porque sempre nos aviva tempos passados nos traz a memoria o duro que foi a nossa juventude,quando deveriamos disfrutar da vida , tivemos que beber os tragos mais amargos da nossa vida ,mas enfim nos tocou viver esse tempo e nao a volta de folha ,mas ao que ia tus linhas demonstram o humano que es nao eramos bons ou maus eramos familia pois outra ai nao tinhamos, me passou e a raiva ainda hoje a levo por dentro porque depois de termos de passar por esse mau trago nao nos deram outra alternativa que seja a de nos calarmos perante a morte de nossos camaradas e sofrer en silencio
cumprimentos ao grande ser humano que es.
Antonio Melo

manuelmaia disse...

Caro Ricardo Almeida,

Gostei da cadência que deste à tua história.
Apenas faço reparo,como aliás já o Luís Graça formulou,e que se relaciona com a omissão da razão da morte do teu camarada.~
abraço.

manuelmaia disse...

Caro Ricardo Almeida,

Gostei da cadência que deste à tua história.
Apenas faço reparo,como aliás já o Luís Graça formulou,e que se relaciona com a omissão da razão da morte do teu camarada.~
abraço.

Anónimo disse...

Caro Ricardo Almeida:
Estiveste muito bem. Foste grande.
Ser «grande» é quanto basta, sobretudo num tempo em que proliferam, como cogumelos, seres humanos muito «pequeninos».

Um abração

Carvalho de Mampatá

Hélder Valério disse...

Caro camarada Ricardo Almeida

As recordações que normalmente nos vêm ao pensamento, principalmente as que se relacionam com os falecimentos dos que mais próximo de nós estiveram, acabam quase sempre por se transformarem em homenagens às suas memórias.
É natural que assim seja.
Este teu caso não foge à regra e embora tivesse sido perceptível que o comportamento corrente desse teu camarada não fosse susceptível de capitalizar as simpatias gerais, acabas por honrar a sua memória e dás mesmo conta que da tua parte, fosse lá o que fosse que ele te fez, lhe concedeste o teu perdão e, acredito, morreu com esse conhecimento.
Abraço
Hélder S.

José Marcelino Martins disse...


“– Acabaram-se as tuas forças, as tuas reguilices, a tua fraca reputação. Apesar de tudo eras humano, por isso te rendo homenagem com o coração destroçado e como teu amigo que era, me despeço até um dia… – Balbuciei!!!

Ricardo Marques de Almeida 1.º Cabo 089225/68”

Bem-vindo à Tabanca Grande. Cá esperamos por mais contos.

Fixei as tuas últimas linhas, que reproduzi. Também, não balbuciando mas dizendo em alta voz, queremos honrar e homenagear o teu/nosso camarada JOSÉ ALMEIDA E SILVA. Foi o único camarada da Guiné que tombou no dia 21 de Outubro de 1970. Repousa no Cemitério de Lageosa do Dão.

Que repouse em paz!

Tony Borie disse...

Olá Ricardo.
Foste um combatente, com o maior coração do mundo.
Os teus colegas, devem sentir orgulho de ti.
Um abraço, Tony Borie.