segunda-feira, 24 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12895: Notas de leitura (575): "Como Fui Expulso de Capelão Militar", por Padre Mário de Oliveira (Mário Beja Santos)






Capa do livro “Como eu fui expulso de capelão militar”, por Mário de Oliveira (Edições Margem, 1995)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Outubro de 2013:


Queridos amigos,
São assim as surpresas da Feira da Ladra.
Estou já regalado com livros encontrados de leituras que fiz na meninice e que espero que venham a ser úteis para um livro que ando a congeminar sobre as minhas memórias de fedelho, eis quando uma bela capa me chamou a atenção.

Porque o Padre Mário não se faz rogado, capas só de grandes autores como Inácio Matsinhe e neste caso Roberto Chichorro, um dos nomes maiores da pintura moçambicana. O título tinha o seu picante, e a decisão ficou tomada quando vi que se tratava da memória dos quatro meses em que ele viveu na Guiné-Bissau como capelão.
Posso imaginar a turbulência que ele lá provocou, nos meios castrenses. Também assim se fez a história da Guiné, com padres revoltosos.

Um abraço do
Mário



Como fui expulso de capelão militar: O Padre Mário de Macieira da Lixa explica-se, mostra o seu diário

Beja Santos


“Como eu fui expulso de capelão militar”, por Mário de Oliveira (Edições Margem, 1995) é o testemunho do Padre Mário de Oliveira que em Março de 1968 foi expulso de capelão militar depois de integrar durante quatro meses um Batalhão na Guiné.

 Sacerdote polémico, vive desde Outubro de 1975 como padre sem ofício pastoral, dedica-se a um projeto denominado Igreja Popular e é jornalista. 

Antes de ser capelão militar na Guiné-Bissau, foi professor de Religião e Moral no então Liceu D. Manuel II e era assistente diocesano da JEC. Terão chegado queixas ao administrador apostólico da Diocese do Porto acerca do seu trabalho com os jovens, foi despachado para a Academia Militar para frequentar o curso de Capelões. 

Não guarda em grande conceito o Bispo castrense, D. António dos Reis Rodrigues. Tece comentários amargos à conivência da hierarquia da Igreja Católica com o regime de Salazar. Naqueles meses da Guiné escreveu um diário e explica as reservas utilizadas: 

“O diário propositadamente omite o nome das terras por onde passei. Tão pouco divulgo o número do Batalhão em que fui integrado e no seio do qual desencadeei a ação que culminou com o meu afastamento compulsivo”.

O diário começa no dia 28 de Outubro de 1967: 

“Não sinto saudades. Não chorei à partida. E não esforço. Mas costumou-se a separação. Só Deus me aguentou. Se Ele não fosse o ideal da minha vida, não teria saído”

No dia seguinte, o capelão do Batalhão celebrou Missa no porão do Uíge: 

“Não me satisfez a Missa. Está numa linguagem que não se entende. Celebrámos a Festa de Cristo Rei e ninguém terá entendido isso”

Percebe que não houve fraternidade, no final da Missa foram todos a correr para os bares. E no dia seguinte houve instrução, tece outro tipo de recriminações: 

“O major falava das moças pretas. E pude ouvi-lo a instruir como conhecer quando o soldado poderia usá-las sexualmente. E quando elas, por sinais já convencionais, deixassem perceber concordavam, que era só procurar um sítio para isso. Ouvi bem! Nenhum estímulo a saberem servir, a respeitar, a permanecer fiéis. Será isto civilizar? Será isto amar o preto, respeitá-lo?”.

A viagem prossegue maravilhosamente e a 1 de Novembro o Capelão apercebe-se que estavam perto da Guiné, aqui chegarão no dia seguinte. A 4 regista os muitos soldados que vê em Bissau, as viaturas do Exército e escreve: 

“Tenho a sensação de estar num país estrangeiro. Não se entende os que os nativos dizem entre si. Outro defeito grave do passado. Nem a língua comum se procurou dar ao nativo

A 8 marcha para o seu Batalhão, à noite aproximou-se do edifício das praças, encontrou muita gente na jogatina. Medita sobre o que poe fazer para a valorização pessoal, ali não há clima de virtude. Os dias que se seguem são de contacto com as unidades, desloca-se e celebra Missa num fortim: 

“Ali estão perdidos dias seguidos. Estiveram presentes. Também o que estava de vigia no ponto mais alto, pois ficava mesmo em frente do altar. Num cenário de guerra, Cristo nasceu. E falou”

Vai registando factos para si surpreendentes: um inimigo que fugiu da prisão; a chegada de uma companhia de uma operação, chegaram eufóricos porque mataram e feriram e não tiveram baixas; vai registando depoimentos, acompanha o tenente médico pelas tabancas.

Por vezes, espraia-se em dissertações sobre a evangelização em África, mas acontecimentos triviais ou inusitados são transcritos para o papel como aquele Pedro que estava louco de amores pela Mariana e atirou duas granadas de sopro que feriram a bajuda. Reflete sobre a Missa. 

Numa coluna que se deslocou a Bissau rebentou uma mina em plena estrada, o capelão ia num jipe, a tudo assistiu. Escreve sobre o Advento. A 8 de Dezembro, exalta Maria, mãe da humanidade. Visita a cadeia onde se encontra pessoal preso em operações, há ali também suspeitos. Sente-se nas suas reflexões que está a entrar num caldeirão emocional. Nunca esquece os soldados feridos, acompanha-os, reza com eles. Continua a visitar os destacamentos e as tabancas. Começou a preparação litúrgica do Natal, toma nota dos maus tratos dados aos nativos que se recusaram a fazer capinações. 

Escreve longamente na vigília de Natal e a 25 regista que chegaram dez feridos, um dos quais já sem pernas, mais uma mina anticarro. 

“Nunca passei uma noite de Natal tão esquisita. Estive no refeitório das praças, em confraternização geral, com oficiais da companhia que jantava e os comandos. Mas não estava bem. Nunca senti saudades de ninguém. Apenas sofria". 

A 26, é procurado por um alferes que manifestara vontade de se confessar e que pediu para comungar.

Já não esconde o seu estado de revolta, refere a situação desumana dos prisioneiros, as torturas a que são submetidos. Em 1 de Janeiro, houve um ataque ao aquartelamento onde estava o capelão. Morreu um soldado milícia e ele rezou a seu lado. Os textos ganham dureza: construímos a paz ou alimentamos uma guerra, o texto da sua homilia vai suscitar polémica. O seu chefe religioso de Bissau vai inteirar-se da situação. 

O seu diário é tão confuso quanto a sua incompreensão ao destino que lhe está reservado. Continua a celebrar Missa, percebe-se que o deixam andar pelos destacamentos, não o querem no Batalhão. Regista a 30 de Janeiro: 

“Vivo horas difíceis. Estou a ser rejeitado e mal interpretado. Deus é o meu apoio, a minha força, o meu refúgio. Soube, ontem, que veio cá ao quartel um agente da PIDE para falar com um dos comandantes. Foi pedido o meu cadastro. Será pelas homilias. Como português e como cristão, apenas quero dar o meu contributo para a solução do problema que nos mantém cá na Guiné”

No dia seguinte chega uma mensagem para se apresentar em Bissau. E escreve: 

“Mas que mal fiz eu? Será um crime pregar aos cristãos a Palavra de Deus com clareza e objetividade e querer que as relações em Batalhão e fora dele sejam mais realizadas no Amor uns aos outros?”

Sente-se caluniado, até admitiram a hipótese de ter vindo assalariado por um grupo de revolucionários do Porto.

As suas homilias são cada vez mais incómodas, o Padre Mário tira toda a incandescência possível das homilias: 

“Muita gente, mesmo de responsabilidade, confundiu o Reino dos Céus com a vida ultraterrena, à qual se chegava abandonando esta. Não sei mesmo como foi possível fazer da religião um conjunto de práticas de piedade que nada tinham a ver com a vida no mundo, quando o Evangelho de Cristo é todo ele atividade contínua e entusiasta no mundo”

Exalta a sociedade nova, critica os ociosos e recorda o cristianismo primitivo. A 17 de Fevereiro, o seu chefe religioso apareceu e falou-lhe em particular, perguntou-lhe se aceitava mudar de unidade, ir para outro batalhão, recomendou-lhe que usasse da prudência no futuro. A 22 de Fevereiro, volta a Bissau, encontra-se com o chefe religioso de Lisboa. E diz ao seu superior que não achava justo mudar de batalhão, não praticara qualquer crime. O seu chefe reagiu mal: 

“Há já um mês que queriam mandá-lo para Lisboa. Eu é que o fui segurando aqui. Mas, já que agora me fala dessa maneira, não muda de Batalhão: vai para Lisboa e lá vê-se o que se há de fazer”

No fim de Fevereiro recebe instruções para embarcar para Lisboa. E conclui:

“Ouvi do meu bispo as piores referências! Não quis ouvir-me. Não me deu oportunidade de o informar, pormenorizadamente, do que se tinha passado. Não se mostrou interessado em conhecer a mensagem que anunciara no correr dos quatros meses”

É considerado irrecuperável para determinadas atividades sacerdotais. E daqui parte para casa dos pais, em Lourosa, onde chegou pela meia-noite. Era dia dos seus anos.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12864: Notas de leitura (574): "Pai, tiveste medo?", por Catarina Gomes (Mário Beja Santos)

4 comentários:

JD disse...

O relato ao menos acabou com uma situação boa e inesperada: foi passar o aniversário com os pais. Grande alegria que lhes terá dado.
Nas picardias que vão relacionando militares do QP com milicianos e civis, já aqui se registaram alguns depoimentos, concordantes e discordantes.
A tropa não foi a escola de virtudes que imporia ter sido, e quando se diz que "fez bem ir à tropa", é muitas vezes no sentido da aprendizagem pela convivência com o mundo sacana, perverso.
Em ambiente de guerra, também a agressividade parecia receber estímulos, e a animalidade só não podia ser evidenciada.
Na minha companhia houve da parte dos QP, muita displicência, muito deixa-andar, e a pseudo-formação foi na base das porradas.
Por isso, saúdo aqueles do QP, milicianos e civis, que intuiram a guerra com humanidade e respeito pelos adversários, ou "inimigos" da linguagem estilizada, como pelos civis que viviam à mercê dos dois lados litigantes.
Abraços fraternos
JD

Luís Graça disse...

Em toda história da guerra colonial, no CTIG, houve dois casos de capelões militares que foram "expulsos"...

Não sabemos ao certo por quem: o bispo castrense, a hierarquia militar ou a polícia política... Eu diria antes que foram dois erros de "casting" (sem que isto nada tenha de ofensivo)...

Um deles é o padre Mário de Oliveira, que será sempre até morrer, o padre Mário da Lixa... Foi capelão do BCAÇ 1912 (que esteve sediado em Mansoa, 1967/69)... O outro foi açoriano Padre Puim (que deixou, de resto, o sacerdócio em finais dos anos 70): foi em capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

Curiosamente, os dois são membros da nossa Tabanca Grande... Mas quando capelães passaram pela Guiné ? É uma boa pergunta, a que não sei de momento responder...

Mas temos mais capelães no blogue... A minha pergunta, de momento, é: quem expulsou o Mário de Oliveira ?

Antº Rosinha disse...

Um dia alguém explicará a importância da(s) igreja(s) na guerra colonial portuguesa, francesa e inglesa e belga.

Foi tão importante nesta «nossa guerra» que no caso de Angola, início do «princípio»da guerra de 13 anos, que foram os padres e pastores que a começaram.

A 4 de Fevereiro de 1961, o Cónego Manuel das Neves estava ligado ao ataque à Casa da Reclusão, soube-se na hora com pormenores, e ainda recentemente nesse aniversário a RTP transmitiu um dos últimos testemunhos que a propaganda era organizada na Missão de São Paulo.

Também Holden Roberto era pastor das missões Evangelistas e foi nessas missões que foram estudados e pregados os massacres racistas e tribais da UPA em Março de 1961.

Não «devemos» falar aqui dos cristãos e mouros, do Kénia, Nigéria, Congos etc. que já não se sabe onde está a política, religião ou tribalismo.

Quem nunca quis saber de religiões foram os russos!

Ainda hoje o Putin nem se benze!

Anónimo disse...

Caros Camaradas


Não pretendo ofender ninguém...

Declaro que sou agnóstico..seria sobranceria dizer que sou ateu..logo eu que até andei no Seminário em Santarém (1 ano e 3 meses)..nasci numa família católica apostólica romana..com um tio Padre..etc..

Nunca entendi,percebi...melhor fingia que percebia...os capelães na tropa...muito menos na guerra...seria para não se ter a consciência pesada..dando legitimidade à coisa..podia-se matar com a "benção" de Deus..seria !

Em Gadamael..nunca lá vi nenhum..

O Pe. Mário de Oliveira apenas foi coerente com a sua consciência religiosa...o que por si só diz tudo sobre o seu valor de carácter..

C.Martins