segunda-feira, 7 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12942: História da CCAÇ 2679 (67): Requerimento, talvez inédito (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Abril de 2014:

Olá Carlos!
Muito obrigado pela publicação de um bilhetinho entre o maioral de Bajocunda, e este amanuense que às vezes dá trabalho.
Refere o texto publicado que "iam-se gramando, até que deixaram de gramar-se".
De permeio ainda decorreram uns mezitos, que na África quente e escaldante, às vezes por nossa culpa, pareciam anos.
Por causa daquela frase pensei antecipar a estória da circunstância em que "deixaram de gramar-se".
Aqui vai ela, e espero que a pressa não tenha omitido algum facto relevante.

Um grande abraço, extensivo ao tabancal
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

67 - REQUERIMENTO, TALVEZ INÉDITO

Tinha passado a noite na mata em emboscada noturna, depois de um dia de patrulha de combate, no âmbito das acções operacionais que a Companhia levava a cabo para controle militar da região.
Na ocasião, para além dos quatro pelotões operacionais, alguns já com défice acentuado de pessoal, havia ainda em rotina, adstritos à Companhia, um ou dois pelotões de Pirada, e o Pel Caç Nat 65, mas a área era extensa, e havia duas aldeias onde pernoitava um pelotão para cada uma delas, Amedalai, e reforço em Tabassai.
Em Bajocunda ficavam dois ou três pelotões operacionais durante a noite, enquanto dois estavam em permanência no destacamento de Copá, e na aldeia de Tabassai.

Com muita frequência, um pelotão passava a noite em emboscada. A aldeia de Amedalai, apesar de ter sido atacada uma vez, era a sede do regulado, pelo que teria ligações mais acentuadas com a população, e ao PAIGC não interessaria implicar demasiado com a tradição politico-juridica da influência do régulo.
Também lá estava em permanência um pelotão de milícias, que dava um ar de estreita relação com a autoridade portuguesa, participava em escassas acções, ora da exclusiva competência, ora em companhia de pelotões do exército.

Tudo isto decorria durante um período de relativa paz, e o PAIGC limitava-se a colocar uma ou outra mina nos itinerários, e a flagelar duas ou três vezes por mês os aquartelamentos. Faltava cerca de quatro meses para terminarmos a comissão.
Naquele dia, depois do almoço, o capitão chamou-me para dar indicação de que teria que sair ao entardecer para montar uma emboscada. Ora, era costume, que depois de uma acção como tivera na véspera, o pelotão ficaria de folga, muito menos se pensava em passar duas noites consecutivas no mato, e a comer ração. Protestei com estes e outros argumentos, mas ele afirmava outras razões, que me pareceram de total incompetência para comandar a tropa, e não saía dali; eu é que teria que sair, face às circunstâncias por ele aduzidas.

Não havia meio, os meus sucessivos argumentos não alteravam nada a decisão do comandante Trapinhos. Muito relutantemente fui informar a malta para estar preparada, e tive que arguir com alguma fantasia para evitar acirrar os ânimos.

As noites de mato, com o céu aberto mostravam a maravilha de míríades de pontos luminosos, e a malta entretinha-se a assinalar diferenças entre estrelas cadentes, pirilampos e "very-lights".
Naquela noite eu, pelo contrário, estava inquieto com a teimosia do capitão, que de algum tempo àquela data, insistia em embirrações comigo, que provocavam alguma perturbação à vida e normal desempenho do pelotão. Por vezes o pessoal queixava-se, e aventava, que era por não ter um oficial a comandar, que o Trapinhos andava a abusar e seria necessário tomar uma posição colectiva.

A tudo eu conseguia argumentar, que aqui ou ali poderíamos ser prejudicados, mas que não nos lembrávamos das acções dos outros para cotejo, e que não haveria nenhuma acção colectiva sem que eu autorizasse, na medida em que isso poderia constituir quebra da minha autoridade. O pessoal aderiu sempre aos meus argumentos, e tinha a convicção do meu bom desempenho na defesa do interesse colectivo. 

Durante a noite desassossegada, congeminei inúmeras possibilidades para responder em forma à tontearia do capitão. Ponderei no que podia reflectir-se contra mim, numa espécie de "deve" e "haver", cuja contabilidade era, no meu entender, favorável ao que eu estava a pensar adoptar.
Pensei muito no pelotão, nas amizades ali alicerçadas, nas vantagens que pudessem resultar para o pessoal, portanto, não seria desleal da minha parte. Seria uma decisão íntima. E ganhei confiança.

Quando entrei em Bajocunda fui tomar o pequeno-almoço. Comportei-me como se nada me afectasse, e não referi nada sobre as minhas preocupações. Se calhar, alguma brincadeira ainda me favoreceu a executar descontraidamente a decisão tomada. Depois dirigi-me à secretaria, pedi uma daquelas folhas de papel azul, que algumas vezes decidiam judiciosamente sobre nós, e redigi um requerimento a SExa. o Comandante-Chefe. Nele, depois de me identificar, resumia a matéria a um curto parágrafo: o pedido de transferência de Companhia por incompatibilidade com o comando.
Entreguei-o logo. Continuei a não referir o que fizera, e a levar a vida tão normal quanto era costume.

Talvez no dia seguinte, cruzei-me com o Trapinhos, sem testemunhas, que insinuou haver de ler o meu diário. Respondi-lhe com ironia, que se tinha amor à vida, devia fazê-lo, com certeza. Ele fez uma risada esperta, e acrescentou algo assim: sabe, parece que vai ser transferido para os Comandos Africanos.
Não me impressionei, e respondi com desfaçatez: antes com pretos decentes, que com alguns brancos ordinários.
E a coisa ficou por ali, mas bem mais definida do que antes, pensei eu. Não voltaria a ser voluntário para resolver problemas do capitão, e ele ficou incomodado, talvez molestado.

 Provavelmente ao terceiro dia, estava a fazer "O Jagudi" na secretaria, entrou um "foxtrot" a convidar-me para o acompanhar.
Quando transpus a porta fiquei surpreendido. Sobre o "submarino" (um paiol com formato de submarino construído junto do edifício do comando e secretaria) alinhava o pelotão, e com o pessoal bem ataviado para o que era costume. Um dos cabos dirigiu-me a palavra, que o pessoal estava incomodado com o que soubera, e queriam ouvir de mim, se sim, ou não, ia sair da Companhia.
Referi que não sabia ainda, e expliquei a minha diligência e os termos, que eram a incompatibilidade com o comando. Expliquei que esta frase tinha a ver com as dificuldades que sentia no relacionamento com o comando, mas que aguardava ser inquirido, ou instruções para consumar a transferência.
Pedi serenidade, e para não anteciparmos um qualquer resultado. Então o cabo que usava da palavra, referiu sobre a compreensão do meu argumento, mas colocou a questão do pessoal, em termos sentimentais e operacionais, pois ao longo dos meses tínhamos cimentado uma forte amizade (que ainda hoje prossegue com aqueles de quem tenho contacto), que depositavam em mim grande confiança, e que, se a transferência se consumasse, provavelmente ficariam sujeitos ao comando de um "piriquito", e o ambiente poderia desmoronar-se.
Voltei a referir que não tinha ainda qualquer informação a prestar sobre o requerimento, e reafirmei todo o gosto e sentido de camaradagem que tinha estabelecido com o grupo durante os meses da comissão, e que já faltava pouco para o termo da nossa obrigação na Guiné, pelo que dificilmente adviriam alterações importantes à vida do pelotão, e eu estava certo de que preservar o espírito "foxtrot" seria o mais importante para saber resistir a qualquer dificuldade.

Não houve despedidas, obviamente, mas todos estávamos sensibilizados. Pensei neste acontecimento durante algum tempo, nas dificuldades e demonstrações de solidariedade por que tínhamos passado, e senti um grande orgulho pela coesão que o grupo sempre manifestara. De alguma maneira, e eles expressaram isso mesmo, iriam sentir-se abandonados, o que não correspondia à verdade, mas era-me difícil de explicar melhor a minha posição.

Tomei então nova decisão.
Dirigi-me ao capitão e referi que não retirava o requerimento e estava apto para qualquer consequência, mas dava-lhe o arbítrio de fazer com ele o que entendesse. Nem reagiu, que me lembre. Por mais nada ter a dizer, nem ele, saí.
Compreendi que lhe tinha dado uma prenda, mas também fiquei com o pressentimento de que não arriscaria voltar a usar o pelotão como uma muleta salvadora, nem recorreria a excessos e litigâncias como era costume.

No final da comissão não perguntei pelo requerimento, pelo que não sei se o destino terá sido a "cesta secção", sem ter saído de Bajocunda.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12660: História da CCAÇ 2679 (66): "O Jagudi", o jornal de Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro Zé Dinis

Um jogo perigoso.
Sempre tiveste essa tendência para "jogar forte" e não há dúvida que a máxima dos "comandos" de "a sorte protege os audazes" se poda aplicar-te.

Admito que estivesses farto, fartinho, dos jogos de poder do "Trapinhos", dos seus abusos, mas subestimaste os 'teus homens', aqueles que, afinal, e apesar de tudo (aqui incluem-se os famosos pontapés no cu educadores...), dependiam de ti, na sua coesão, na sua eficiência, enfim, na sua capacidade de viver (literalmente) o dia-a-dia.

O papel foi. O papel não foi.
De qualquer modo, na prática, tudo ficou como dantes, excepção feita à tal prepotência do teu 'estimado Trapinhos', parecendo assim que o principal efeito foi conseguido.

Ou seja, e usando mais uma frase feita, "tudo está bem quando acaba bem"!

Abraço
Hélder S.