quarta-feira, 9 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13380: Manuscrito(s) (Luís Graça) (35): Viva o po(l)vo!

Viva o Po(l)vo!

por Luís Graça 
[foto à direita]



Agora o polvo, o povo,
Serve-se
Com batatas assadas
A murro,
Pum!,
Anuncia o cozinheiro
Mor
Do reino.
Já lá vai o tempo das favas contadas,
Do bico calado e pé ligeiro,
A era do cheiro a esturro,
O regime do come e cala-te.
Agora a dieta é chique, é mista,
Cale-te e não comas,
Muito menos fillet mignon,

Nem sequer rosbife,
Que já não há almoços grátis,
Avisa o vedor,
Ameaça o almoxarife,
Aconselha o dietista.

Urra!,
Sim, senhor,
Pois se o reino é porco e glutão,
E se o tesouro está sem tostão,
Então que viva  o polvo, o povo,
À lagareiro,
Alarve, 
E que à sobremesa
Se sirvam passas
Do Algarve,
Manda sua alteza
El-rei,
De todos o primeiro
Cãocidadão.
Mas agora quem está no pedestal,
E mija de alto,
É o banqueiro,
Croupier do casino real.

Viva o povo dos polvos,
O terceiro estado da nação,
Morra o polvo dos povos,
Sem eira nem beira,
O polvo apanhado nos covos,
Nas minas e armadilhas

Dos senhores da terra e do mar,
E depois afogado
Em puro azeite virgem de oliveira,
No caldeirão de todas as batalhas
Travadas e por travar.



O polvo, o povo, 
Apanhado nas malhas
Da história,
Em contramão,
Nos buracos negros da memória,
Nas falhas da terra opaca,
Nas marés rasas.
Sem honra,
Sem glória,
Sem grandeza!
Bom povo, 

Grande besta de carga,
Pobre polvo,
Cuja rede neuronal tentacular
É comida à mesa, de garfo e faca,
P'lo pregador predador.
Resta-te a triste consolação
De seres tema de quinzena
Patriótica e gastronómica.
E quiçá a vitória amarga
De ires à mesa
Do senhor comendador,

Industrial de exportação,
Que fez do globo uma banda filarmónica.
Acabaram-se os privilégios do sangue,
Morte ao arroz de cabidela,
Morte ao frango,
Morte ao capão,
E que o coelho não se zangue
Por ser roubado e despromovido
No tacho e na panela.
Ladrão mais finório é larápio,
Diz o léxico do tempo novo
Que aí vem,
Viva o funcho e a beringela!

E vai de frosques, o senhor doutor,
Dos cânones e das leis,
Que de fraque senta-se o regedor,
No chão do piquenicão,
Onde quem mais ordena 
É o polvo, o povo,
No cardápio,
Democrático, do barracão do petisco.
Mas, atenção, 

Mais vale prevenir o risco
De o poder cair na rua
Sob o tentáculos do inteligente polvo
E os alvoroços do estúpido povo.

Produto gourmet,
Produto manufaturado
De todas as maneiras e feitios,
Batido,
Dançado,
Algemado,
Açoitado,
Degradado,
Exportado,
E outrora (em)bebido
Em sangue suor e lágrimas.
Povo desalmado,

Acéfalo,
Povo (en)cantado,

Afadistado,
Cefalópode,  
Grelhado
Alimado,
Escalado.
Escalfado,
Esfolado,
Escalpelizado,
Salteado
Em fricassé
E até enlatado
Em óleo vegetal
Na ração de combate
Do soldado da guerra colonial
Na Guiné.
Ou era óleo de fígado de bacalhau,
Camaradas ?
Que a gente sempre ouviu dizer mal

Do rancho, 
Do vaguemestre,
E do comandante,
Mas quem diz, ufa!, 
Que  não aguenta, 
Na tropa amocha,
Na terra ou no mar
Que, quando bate na rocha,
Quem se lixa é o polvo, o polvo!

Enchamuçado,
Encapuçado,
Emboscado,
Enforcado,
Fatiado,
Espalmado em filhós,
Embrulhado em pataniscas,
Frito,
Fuzilado,
Seco ao sol no telhado,
Teso que nem um carapau,
E até, imagine-se, pizzado!
Sim, muitas vezes pisado,
Humilhado e ofendido.
Que o polvo, o povo,

Pouco esquelético mas mimético,
Na ausência de espinha (dorsal),
Adapta-se bem à nouvelle cuisine
E aos caprichos dos novos chefs.

Mas, o que mais irrita,
O amigo secreto do polvo, do povo,
Que não tem limousine
E anda  a pé, 
São os donos da cozinha, os magarefes,
Mal entroikados,
Que falam em nome dele, o povo,
E que, de garfo e faca em riste,
Ou até à espadeirada,
O imolam pelo fogo,
E o guarnecem, com a batata frita
De Bruxelas!...
Abaixo o fascismo sanitário,
Viva o cardápio proletário!
Glória ao arroz de polvo, 
Malandrinho,  
De coentrada...
E saúde e longa vida para o povo,
Agora pobrezinho,
Que dantes também comia 
Iscas... com elas!

Lourinhã, 

Quinzena Gastronómica do Polvo, 
10 de junho de 2014,
data, por enquanto, patriótica

___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13360: Manuscrito(s) (Luís Graça) (34): Aerograma para a Sophia que me emprestou o Livro Sexto, quando o T/T Niassa me levou para longe da minha praia

7 comentários:

Anónimo disse...

Um "Skål" para o teu Polvo-Povo,e um sincero "Tack" pelo teu poema.
Abraco do José Belo.

Luís Graça disse...

José, querido régulo da her´pica e solitária Tabanca da Lapónia: que bom saber de ti que, és esguio, furtovo e inteligente como o polvo, nunca sei em que "buraco" apanhar-te...

O meu pobre sueco de praia diz-me que "Skå" quer dizer qualquer coisa "Urra, urra, à nossa!" e "Tsck" obrigado...

Pois que viva o polvo-povo lusitano! E obrigado pelo teu incentivo ao pobre do poeta (que continuando versejando)...

Na minha região, o polvo foi sempre foi "suplemento proteico" dos pobres e sempre esteve associado ao povo que o ia (vai)"apanhar à mão" nas marés baixas...

Mandei-te um mail (ou melhor sete, para cada um dos teus sete "buracos") a dizer que os Melech Mechaya vão estar a 2 de agosto em
no festival de Urkult, em Urkult, Suécia...

Este fi«om de semana, estão já na Filândia a 10, no festival de Jyväskylä, e a 11, em Kaustinen, no Kaustinen Folk Music Festival.

http://melechmechaya.com/

Um alfabravo fraternp para ti, meu e do João.

Luís Graça disse...

Meu caro José, ainda em complemento do que eu escrevi, o polvo e a navalheira eram comida dos pobres, no meu tempo de infância, juntamente com o tremoço, as pevides e o copo de vinho tinto... Nas "tascas" que os "fascistas sanitários" sempre perseguiram e continuam a perseguir, hoje como no antigamente...

Anónimo disse...

Com a devida vénia à página do Aquário Vasco da Gama, o nosso velhinho, centenário, Aquário Vasco da Gama, que eui visitei, deslumbrado, quando vim pela primeira evz a Lisbnoa, aos 7 ou 8 anos (LG)...

______________


Aquário Vasco da Gama > Factos curiosos, animais conhecidos > Que vida tão curta a da Polvo


O polvo existe em quase todos os mares e oceanos, nas zonas tropicais, subtropicais e temperadas, tendo uma distribuição que se estende desde a linha da costa até profundidades da ordem dos 100 m. É um molusco da classe dos cefalópodes, que representa o máximo da evolução destes invertebrados.

Normalmente o polvo rasteja sobre o fundo, utilizando as ventosas dos seus oito tentáculos, e escondendo-se no fundo ou entre as pedras. Quando se sente ameaçado, pode nadar velozmente por propulsão, expulsando água da cavidade paleal, pelo "funil", um tubo situado ao lado da cabeça.

Um dos aspectos mais interessantes da sua biologia diz respeito ao ciclo de vida que é extremamente curto: de 12 meses até um máximo de 3 anos. Põe esta razão, o desenvolvimento do polvo é extremamente rápido, podendo o animal atingir 10 Kg de peso no decorrer desse período.

O macho morre após a reprodução e a fêmea deposita a postura, cujo número de ovos varia entre 100.000 e 500.000, em cavidades rochosas, conchas vazias, etc. Deixa então de se alimentar e passa a cuidar dos ovos até ao nascimento dos pequenos polvos (que pesam em média 0,001g), morrendo em seguida.

O polvo é uma espécie muito abundante na costa portuguesa onde é intensamente pescado. A arte de pesca mais utilizada, principalmente na costa algarvia, é designada por "alcatruzes" e, apesar de milenar, ainda hoje é rentável.

http://aquariovgama.marinha.pt/PT/profs_alunos/factos/Pages/Polvo.aspx

José Botelho Colaço disse...

Comida dos pobres. (Navalheira,Canivete ou Lingueirão) que se foi aburguesando, lembro que por volta dos anos 70 quando ia passar férias a Monte Gordo bastava ir um pouco antes do sol nascer e principalmente quando a maré estava a vazar e fazer-se acompanhar do balde e a colher do talher para facilitar cavar a areia ao lado onde eles estavam era só apanhar e meter no balde e assim tinha-mos petisco para à tarde confraternizar e acompanhar a cerveja.

Um abraço
Colaço

Luís Graça disse...

Malditas gralhas!...

(i) Não é "Tsck", é "Tack"... obrigado, em sueco.

(ii) Este fim de semana, [os melecha mechaya] estão já na Finlândia a 10, no festival de Jyväskylä, e a 11, em Kaustinen, no Kaustinen Folk Music Festival.

Torcato Mendonca disse...

Gosto muito do teu polvo. Polvo e Povo e polvos que se usam e abusam cá pelo reino da indecência.

Perfiro com arroz malandrinho e coentros...nas feiras e romarias do Alentejo havia (haverá ainda ?)um polvo seco que as patas eram grelhadas. Duro na mastigação e nem o tinto ajudava o trajecto até ao estomago.Saboroso e geralmente era pouca carne para tanto liquido...

Estas tuas poesias deviam estar bem guardadas. Talvez estejam. Abraço Luís Graça do Torcato que dos octópedes e detesta os de duas pernas só...