Queridos amigos,
Há que dizer logo à partida que estes dois poemas pouco ultrapassam a mera curiosidade, um é francamente chocho, porém o outro, Rosa, tem vibração, há para ali sopro anímico, manifestamente um poeta que deixou de ter tempo para poetar. Mas há também uma outra leitura, o Cabral europeu, que acompanhou a atmosfera daquele tempo do pós-guerra, em que o neorrealismo parecia a panaceia para revelar o artista social, engajado com as dores do mundo. E dá para entender como a formação de Cabral se manifestou por toda a sua vida, ele era medularmente europeu, a África veio depois, por vontade revolucionária.
São essas duas pessoas numa que dão o peso da grandeza de espírito e dos chocantes paradoxos da obra.
Um abraço do
Mário
Dois poemas neorrealistas de Amílcar Cabral
Beja Santos
Pintor, poeta, romancista, ensaísta, tradutor, historiador, jornalista, antropólogo, politólogo, sociólogo, professor universitário, Alfredo Margarido (1928-2010) foi, segundo alguns estudiosos, uma verdadeira figura do Renascimento. Esteve em África, em S. Tomé e Príncipe e Angola, ficou-lhe o bichinho pelas literaturas destas e de outras regiões africanas. Entre a sua vastíssima bibliografia constam “Estudos sobre Literaturas das Nações Africanas de Língua Portuguesa”, editados por A Regra do Jogo, em 1980. O livro alberga ensaios, artigos e comentários consagrados à coisa literária africana. É a folhear a obra que encontro na secção de Cabo Verde dois poemas de Amílcar Cabral, texto que Margarido publicou no Diário Popular de 10 de agosto de 1978. Vale a pena reproduzi-lo no essencial. Tinha aparecido no número um da revista Vozes, de janeiro-fevereiro de 1976 a republicação de um pequeno trabalho de Amílcar Cabral sobre “A Poesia de Cabo Verde”. É de todos sabido que Cabral estudou até ao fim do liceu em Cabo Verde e publicou ficção. Mas a sua criação poética também foi acolhida em Lisboa. Margarido encontrou um poema na revista Mensagem, órgão da Casa dos Estudantes do Império, o segundo foi copiado pelo ensaísta Carlos Ervedosa para uma antologia da poesia de Cabo Verde que Margarido se propusera a organizar para a Casa dos Estudantes do Império. E Margarido deixou a sua observação no artigo de jornal: “É possível que haja outros poemas perdidos em pequenas publicações académicas ou ilhoas, mas não deve haver já muitos. Espera-se que os leitores atentos ou os arquivistas implacáveis sejam capazes de nos dar a ler o que ainda desconhecemos”. E explica mais adiante: “Os dois poemas que republico são de 1946 e 1949, e ambos estão marcados pela inquietação do inventário social e do protesto. Em ambos se sente a lição da poesia neorrealista portuguesa da época”. E fundamenta a sua observação: “Repare-se no poema intitulado Rosa Negra onde a palavra negra desloca o nome popular para um espaço novo, onde o inventário desta Rosa começa por reter os elementos físicos. A parte primeira do poema, os primeiros dez versos, é constituída por esse inventário. A adversativa ‘mas’ introduz um juízo do poeta, que, ‘teme’ a sorte desta Rosa na vida que esta vive, pois, após o momento efémero da beleza, virão as varizes e as dores do corpo. O elemento contraditório é introduzido nos últimos cinco versos, em que os pontos de suspensão desempenham um papel essencial”. O que o estudioso quer dizer é que no código neorrealista fica a promessa de futuro.
Vamos então aos poemas:
Rosa.
Chamam-te Rosa, minha preta formosa,
e na tua negrura
teus dentes se mostram sorrindo.
Teu corpo baloiça, caminhas dançando,
minha preta formosa, lasciva, e ridente
vais cheia de vida, vais cheia de esperança
em teu corpo correndo a seiva da vida
tuas carnes gritando
e teus lábios sorrindo…
Mas temo a tua sorte na vida que vives,
na vida que temos…
amanhã terás filhos, minha preta formosa
e varizes nas pernas e dores no corpo;
minha preta formosa já não serás Rosa,
serás uma negra sem vida e sofrente,
serás uma negras
e eu temo a sua sorte.
Minha preta formosa não temo a tua sorte,
que a vida que vives não tarda a findar…
minha preta formosa, amanhã terás filhos
mas também amanhã…
…amanhã terás vida!
(1949)
E o outro poema:
Quem é que não se lembra
Daquele gesto que parecia trovão
— É que ontem
Soltei meu grito de revolta.
Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra,
Atravessou os mares e os oceanos,
Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,
não respeitou fronteiras
e fez vibrar meu peito…
Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens,
Confraternizou todos os Homens
e transformou a Vida…
…Ah! o meu grito que percorreu o Mundo,
que não transpôs o Mundo
o Mundo que sou eu.
Ah! o meu grito de revolta que gemeu lá longe,
muito longe,
na minha garganta.
Na garganta-mundo de todos os Homens.
(1946)
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13574: Notas de leitura (629): "Quebo, Nos confins da Guiné", por Rui Alexandrino Ferreira (Mário Beja Santos)
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