sexta-feira, 17 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14483: Notas de leitura (704): A contestação contra a guerra colonial: A radiografia das universidades em 1971 feita por uma organização ultranacionalista (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
A Feira da Ladra é sempre um alfobre de surpresas, ali encontrei um policopiado de 16 páginas da responsabilidade de um grupo ultranacionalista que inventariava a turbulência em meio universitário contra a guerra, dando conta do como e porquê.
Para melhor se entender a atividade desta Frente Nacional Integracionista, recomendo a leitura do documento que envio em pdf em que o investigador Riccardo Marchi nos dá uma panorâmica das direitas radicais em Coimbra até 1974. Só lendo esta documentação é que se pode ficar com a perceção da agitação estudantil e a sua importância para a criação de uma opinião desfavorável à continuação da guerra.

Um abraço do
Mário


A contestação contra a guerra colonial: 
A radiografia das universidades em 1971 feita por uma organização ultranacionalista

Beja Santos

Um investigador social, Riccardo Marchi, vem há anos a estudar a evolução das direitas radicais portuguesas nomeadamente nos anos contíguos aos da guerra que travávamos em África. A nota mais saliente que Marchi assinala é a exacerbação destes movimentos criticando o que eles apelidavam a pusilanimidade do regime de Marcello Caetano para contrariar as campanhas em meio universitário das esquerdas contra essa guerra. Para compreender melhor como as direitas radicais contestaram Marcello Caetano vale a pena ler o artigo de Riccardo Marchi publicado num número da Revista Análise Social, volume XLIII, 2008, intitulado “A Direita Radical na Universidade de Coimbra (1945-1974)”, que se anexa em pdf.(1)

Um feliz acaso levou-me a encontrar um documento produzido em maio de 1971 por uma intitulada Frente Nacionalista Integracionista. Para eles, o pesadelo começara com a vitória do comunismo e das democracias na II Guerra Mundial, surgira um aliado inesperado, os EUA, cujos dirigentes viam na saída dos europeus de África e da Ásia uma excelente oportunidade para encontrar novos mercados. Os outros países abandonavam cobardemente as suas posições em África, escreve a Frente, Portugal, guiado pelo génio político Salazar, mantinha-se indiferente à demagogia das Nações Unidas. Assim se fabricou o terrorismo. A Frente recorda o que dissera o Alferes Robles, por ocasião da manifestação de 27 de agosto de 1963, no Terreiro do Paço: “Nada mais pedimos senão que a retaguarda cumpra também o seu dever, como nós estamos cumprindo o nosso! Esta guerra nunca se perderá em África mas poderia perder-se em Lisboa!”. Alude-se seguidamente à propaganda comunista e como esta se infiltrou no nosso movimento associativo, tal como já acontecera em França, durante a guerra da Argélia.

Referem as campanhas de contestação, ao longo dos anos de 1968 e 1969, em que as faculdades foram inundadas de cartazes contra a guerra do Vietname. Depois, começaram a circular em diversas faculdades panfletos em grande parte emanados da Esquerda Democrática Estudantil, movimento marxista, embora de linha antissoviética, em que a defesa do Ultramar era apresentada como uma guerra destinada a servir os lacaios dos grandes monopólios internacionais. A Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa foi a primeira a tomar a iniciativa de atacar abertamente a guerra, ao afixar, em abril de 1969, no seu jornal de parede um recorte do artigo “Programa do Ministério da Defesa: fechar a universidade e mandar os estudantes para a guerra”.

A campanha eleitoral de 1969 levou à manifestação do movimento associativo, a mesma Faculdade de Ciências afixou um jornal de parede com uma mensagem dirigida por Amílcar Cabral em que incitava a nossa juventude a desertar das fileiras. E vem o remoque: “Durante alguns dias, este documento permaneceu afixado sem que as autoridades académicas o mandassem retirar”. A Frente dá também a saber que a linha maoista estava muito ativa, reconhecendo os movimentos de libertação e apelando ao seu apoio político. É a partir daí que vão proliferar artigos da maior violência contra a defesa do Ultramar. Surge mesmo um panfleto com “exigências da juventude”: fim da guerra; solução pacífica do conflito com a independência dos povos africanos. As faculdades de Medicina e Direito de Lisboa também afixam cartazes contra a guerra. Nova crítica da Frente: “Indiferença das autoridades académicas. O subdiretor da Faculdade de Direito chegou mesmo a afirmar que esse problema não lhe interessava absolutamente nada, tanto mais que não o considerava da sua alçada”.

A cabine da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico transmitia durante as horas das refeições programas subversivos, atacando o colonialismo português. Os estudantes de Direito quiseram realizar em 18 de fevereiro um colóquio “Política Colonial”, orientado por Salgado Zenha, Afonso de Barros e Arnaldo Matos. Comentário da Frente: “Felizmente que nessa ocasião o diretor da Faculdade se mostrou à altura das suas obrigações e proibiu o colóquio”. Em Coimbra, realizou-se em 9 de março, dentro das instalações da Universidade, um colóquio sobre o serviço militar, um dos pontos analisados era o serviço militar como castigo. Acabou por se debater a guerra colonial. No final do colóquio, aprovou-se uma moção que classificava o ministro da Defesa Nacional e o secretário de Estado do Exército como inimigos da Academia.

A frente também está atenta ao que fazem os alunos do ensino secundário, registam um boletim do Liceu Nacional de Gil Vicente e fazem troça dos estudantes liceais nacionalistas: “A vossa comunicação distingue-se das demais pela contestação vigorosa e justa, pela mensagem válida aos corações portugueses de têmpera, que em África defendem o nosso património, regam as florestas a napalm, aquecem as palhotas dos negros com lança-chamas, engordam os corpos com chumbo, desmentindo assim os boatos de que as populações das nossas províncias ultramarinas estão subalimentadas e subdesenvolvidas…”. Também o Instituto Comercial de Lisboa incitava contra a guerra colonial. Preso o estudante Saúl Noronha da Costa, decretou-se greve às aulas, pediu-se a demissão do direito do Instituto, os estudantes fizeram uma manifestação de apoio que decorreu no Chiado e na Baixa.

Em Coimbra, uma multidão de associativos apedrejava quem saia do Teatro Gil Vicente onde nacionalistas e seus simpatizantes assistiam à representação de uma peça de Paul Claudel. A Frente não esconde a sua preocupação com o facto de que a partir de 1970 quase todas as associações propõem que se reflita sobre a libertação do Ultramar. O grupo cénico do Instituto Superior Técnico pretendia mesmo fazer um espetáculo sobre o colonialismo. Na Faculdade de Letras de Lisboa era distribuída a letra da balada de Manuel Alegre "Romance de Pedro Soldado", que visava criar na população sentimentos de derrotismo. No anfiteatro I, algumas centenas de estudantes, pouco antes do natal de 1970, discutiram a invasão da República da Guiné, classificando-a como um ato de agressão preparado pelo colonialismo português. Nesse mesmo mês de Dezembro, houve em Coimbra um convívio com Zeca Afonso, gritou-se contra a guerra colonial e aplaudiu-se entusiasticamente um texto de Amílcar Cabral intitulado “A Força das Armas”. E comenta a Frente: “O ambiente atingiu o paroxismo quando dois cabo-verdianos, após entoarem algumas canções nativas, leram uma poesia contra a guerra no Ultramar, tudo isto no meio de estrondosas ovações”.

A Frente explica porque procedeu a este levantamento: para demonstrar o espírito de traição que reina no associativismo estudantil e a necessidade que há de pôr termo a essa atividade bem como à benevolência com que é encarada por quase todas as autoridades académicas. Insistentemente, a Frente refere que as autoridades académicas têm sido negligentes a tomar medidas para que estes pasquins prontamente desaparecessem das paredes dos edifícios que a nação entregou à sua guarda.

Riccardo Marchi tem razão: estes grupos ultranacionalistas estavam ativos e identificavam os focos de contestação que se iam espalhando sobretudo nas universidades de Lisboa e Coimbra. Bom seria conhecer o trabalho destes grupos em 1972, 1973 e 1974. Pelo menos ficaríamos com uma ideia da temperatura da contestação universitária contra a guerra.
____________

Notas do editor

(1) - O PDF referido pelo nosso camarada Mário Beja Santos vai ser enviado à tertúlia

Vd. último poste da série de 14 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14468: Notas de leitura (703): Sinopse do livro "Guerra na Bolanha", por Francisco Henriques da Silva

3 comentários:

Vasco Pires disse...

Saí de Coimbra em 69, indo para Mafra.
Realmente o "circo" estava montado, os dois lados com um discurso "datado"
Os grupos de direita eram francamente minoritários, lembremos que a "moda" à época, era estar à esquerda.
Forte abraço a todos.
VP

Luís Graça disse...

Currículo do investigador Roccardo Marchi... Com a devida vénia, do sítio do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa:


http://www.ics.ul.pt/instituto/?ln=p&pid=158&mm=2&ctmid=3&mnid=3&doc=31809901190

Nasceu em Itália, na cidade de Pádua, em 1974.

Diplomado pelo Liceu Clássico "Tito Lívio" em 1991, ingressou na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Pádua, no ramo de especialização histórico-política.

A formação histórico-filosófica adquirida no Liceu e a abordagem política na Universidade despertaram, desde muito cedo, o interesse pelas história das doutrinas políticas, principalmente nas suas vertentes radicais e pela narrativa dos movimentos sociais, com particular atenção aos de cariz anti-sistema.

No ano de 1998-1999 estudou em Lisboa, na Universidade Lusíada, no âmbito do programa Erasmus. Desta experiencia surgiu a posterior investigação para a tese de licenciatura, subordinada ao tema da crise do Estado Novo e a queda do Império português entre 1945 e 1974. A monografia foi discutida na cadeira de História da Europa Ocidental, em Março de 2000, na Universidade de Pádua.

O encontro entre o aprofundamento da história contemporânea lusitana e os seus antigos interesses de investigação, levaram à procura, também em Portugal, no contexto do regime autoritário, dos vestígios das subculturas políticas radicais europeias, com particular interesse pelas direitas radicais e pelas suas matizes mais “intervencionistas”: desde o nacionalismo revolucionário ao neo-fascismo às “terceiras posições”.

Esta área de estudos, ainda virgem na historiografia portuguesa, permitiu a tradução das investigações num projecto de doutoramento, coordenado pelo Professor António Costa Pinto no departamento de História do ISCTE de Lisboa. Projecto financiado, desde 2005, pela Fundação da Ciência e da Tecnologia (FCT).

O resultado desta investigação foi apresentado a 10 Março de 2008.

Durante os anos de doutoramento, foram desenvolvidas investigações, em Sevilha (Universidade Pablo de Olavide), ao abrigo do programa “Marie Curie European Doctorate” (Janeiro-Abril de 2007).

A estadia em Espanha permitiu uma abordagem do tema das componentes revolucionárias e fascizantes do falangismo espanhol no pós-guerra e, numa perspectiva comparada, fez surgir o interesse pelos legados dos regimes autoritários ibéricos no desenvolvimento das direitas radicais nacionais nas transições e nas democracias consolidadas.

A partir de 2008, este tornou-se o tema central das investigações de pós-doutoramento, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS).

Parte dessas investigações estão a ser desenvolvidas ao abrigo do projecto – “Transições Ibéricas à Democracia: Portugal e Espanha em Perspectiva Comparada”, coordenado pelo professor António Costa Pinto.

Luís Graça disse...

Ver auqi uma entrevista a "O Diabo", em fevereiro de 2014:

http://jornalodiabo.blogspot.pt/2014/02/entrevista-com-riccardo-marchi.html


“O salazarismo está a perder pontos para o neoliberalismo na associação às direitas”


Riccardo Marchi é um historiador italiano radicado em Portugal que se tem dedicado ao estudo das direitas radicais na democracia portuguesa. Desde 2008 que é investigador de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Em 2010 organizou o colóquio “As raízes profundas não gelam? Ideias e percursos das direitas portuguesas”, onde participaram Rui Ramos, Jaime Nogueira Pinto, Henrique Raposo, Ernesto Castro Leal, José Pedro Zúquete, entre outros. As comunicações desse colóquio foram agora reunidas num livro essencial para compreender o estado e o futuro das direitas no nosso país. O DIABO entrevistou-o.


Riccardo Marchi, Fátima Bonifácio e Rui Ramos
no colóquio "As raízes profundas não gelam?", em 2010


O DIABO – Qual foi o objectivo do colóquio que deu origem a este livro?
Riccardo Marchi – Quando em 2005 iniciei as minhas investigações de doutoramento acerca das direitas radicais no fim do Estado Novo – tese publicada nos dois livros “Folhas Ultras” (ICS, 2009) e “Império Nação Revolução” (Leya, 2009) –, senti a falta, na minha revisão bibliográfica, de obras de conjunto sobre o tema das direitas em Portugal que pudessem servir-me para enquadrar o meu objecto de estudo. Este género de bibliografia já está presente, há anos, nos outros países da Europa Ocidental: não falo apenas de trabalhos seminais como “La Droite en France”, de René Remond (1954), mas de uma grande variedade de análises historiográficas e politológicas de conjuntos que foram publicadas ao longo dos anos nos diferentes países sobre os percursos das direitas autóctones, sobre as suas diferentes matrizes doutrinárias, as suas evoluções, as estratégias, as convergências, as divergências, os legados que deixaram nos actores políticos que ocupam actualmente este espaço político.

(...)