domingo, 31 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14682: Efemérides (191): Aquele dia inextinguível (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52)

1. Em mensagem do dia 24 de Maio de 2015 o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) lembra o dia 19 de Março de 1969, quando Missirá ardeu durante um ataque do PAIGC.


Aquele dia inextinguível

Beja Santos

Tinha 24 anos quando vivi uma epopeia, não me aconteceu outra. Em 19 de Março de 1969, pela calada da noite, uma flagelação bem acontecida, com muita bala incendiária certeira no colmo ainda quente das moranças, destruiu praticamente Missirá, transformando-a em terra calcinada. Vários prodígios convergiram: o envio generoso de muito material do Batalhão de Engenharia, nunca vi em dias da minha vida tanta chapa ondulada, esquadrias de portas, sacos de cimento; a humilhação e a dor eram tais que garanti a mim próprio que haveria tempo para tudo: para ir a Mato de Cão diariamente, para abastecer as gentes do Cuor, e para se reerguer Missirá.

O que aconteceu, entre finais de Março e meados de Junho. Vários ventos sopraram de feição: houve uns chuviscos a debutar a época das chuvas, protegeu-nos todos os tijolos de adobe, nada se estragou; não houve férias para ninguém, não se celebraram choros, ninguém partiu nem para semear nem para colher, não houve contestação àqueles horários draconianos, cedo erguer e todo o dia movimentação, quem patrulhava entrava à mesma nas escalas de serviço, até para ir buscar água. E um dia, nos tais meados de Junho, percorri pelas novas moranças, pelos novos abrigos, telheiros e armazém, tudo a cheirar a fresco, obra de uma convocatória que obteve uma resposta tão incendiária como aquele desalmado incêndio que reduzira mais de três quartos de Missirá a um escombro.

Também houve tempo para a escrita. Perdi tudo no incêndio, vivia por empréstimo no abrigo do furriel Casanova, uma construção modelo que era motivo do seu legítimo orgulho, desmanchara a casa de Manuel Spencer em Malandim, entre Finete e a estrada para Mato de Cão. Daqui expedi os meus aerogramas meses a fio. A minha tia Carlota fazia anos a 1 de Junho e não deixei de a saudar, tinha por ela uma grande adoração, foi por seu intermédio que ganhei a paixão pelos azulejos pombalinos e pela arte do leque. Ter-lhe-ei dado uma versão adoçada do que era a minha vida, ele era mais que septuagenária, torneei os sobressaltos. E nunca mais pensei no assunto.

Aqui há alguns anos, telefona-me a minha prima Madalena, a sua única neta, houve conversa animada até que chegámos ao essencial: olha, Mário, imagina tu que abri um livro da minha avó e saltou de lá uma folha, era uma cartinha tua a dar-lhe os parabéns, tu estavas muito feliz, muito animado, falavas de umas obras muito grandes e a certa altura escreveste que tudo o que tinhas feito até então eram insignificâncias, que pela primeira vez na vida tinhas um grande desafio pela frente, que estavas cheio de fé e as pessoas que contigo viviam pareciam contagiadas, e davas graças a Deus, olha, não percebi bem o que te estava a acontecer mais era uma escrita tão exaltada que me deixou comovida, vou-te enviar esta carta que me encantou e estou absolutamente certa que deixou a minha avó feliz.

Tinha 24 anos, vivi uma epopeia de braço dado com militares e civis inesquecíveis. Nunca mais terei um aniversário como aquele, a ver crescer, a derrubar o touro da morte e a sentir o tutano da camaradagem. É por isso que quando me vem uma contrariedade há logo um rebate: lembra-te o que se passou naquele tempo em 1969, aquele teu dia de anos em que foste a Mato de Cão, vieste por Finete, regressaste a Missirá, discutiste com os teus colaboradores as obras, os pagamentos, o trivial da burocracia e como adormeceste cansado e enriquecido pelo dever cumprido. Que sejam assim todos os dias que Deus te deu para cumprir.

Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. 

Fotografia do início do Março de 1969, todo aquele fundo irá desaparecer, dias depois aquele balneário era indescritível, aquelas chapas rasgavam a carne a qualquer descuidado. Procurei-o em 2010, disseram-me que vivia para os lados de Farim, que estava muito velho e cansado. Tenho muitas saudades do meu querido cozinheiro, um bonzão com as crianças a quem cedia as nossas sobras.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14680: Efemérides (190). O ataque a Bambadinca foi há 46 anos, em 28/5/1969, recorda o barbeiro mais famoso de Dalvares, Tarouca, o Manuel da Costa, que foi sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2852 (1968/70)

2 comentários:

Mário Vitorino Gaspar disse...

A minha vida é feita de recordações. Remendos ali, e acolá – no corpo, o corpo é de Homem Grande, muito Grande – e fazer de roupa velha, roupa nova é complicado.
O coração já voa de via aérea – 4 bypass e uma directa da mama ao coração – não sou médico é complicado de explicar.
Andámos por lá, por lá fiquei e ficarei eternamente. A juventude… perdi-a numa bolanha lá para os lados do “corredor”, “corredor da morte”; depois outro ainda corredor: todo aquele espaço que percorria quando surgia uma mina para levantar e, mais tarde o tal “corredor” que seria uma oferta, mas tão farta, impossível de descrever. Chamam-lhe o “corredor da luz”, para mim será antes novamente “o corredor da morte”.
Escutava. Escuto, ainda alguém me disse: - “Em Castela dizem aos miúdos que não comem a sopa: - “Se não comeres a sopa vou chamar o D. Afonso Henriques. Eu ouvi duas versões reais. Uma, talvez para os mais abastados: - “Se não comes a sopa, chamo o papão” e outra – que ouvia diariamente em Alhandra: - “Se não comes a sopa vais para o telhal (também chamadas charcas)”!
O que se dirá hoje às crianças que não comem a sopa?
– “Não comes a sopa e chamo o Cavaco Silva”!
Um desabafo para o Camarada Mário

PARABÉNS

Mário Vitorino Gaspar

Luís Graça disse...

1. Mário, grande Tigre de Missirá, a 31 de maio de 1969, estava eu, mais os meus camaradas da CDCAÇ 2590 (futurta CCAÇ 12, não éramos mais do que 60), no Deposiyo Geral de Adisos à espera de LDG para o Xime, e a caminho de Bambadinca - Bafatá - Contuboel... Lá saímos nós que algures, na margem norte do Rio Geba Estreito, no regulado do Cuor, havia um bravo e jovem comandante à frente do Pel Caç Nat 52... Iríamos estar juntos, muitas vezes, na paz e na guerra...

2. Quanto ao outro Mário, o "Zorba", e a propósito, das crianças (e hoje é Dia Mundial da Criança!), da sopa e do diabo, ocorreu-me a letra de uma canção que era interpretada há 40/50 anos atrás pela Mercedes Sosa (1935-2009)... Aqui vai, recuperada da Net. (Como se vê, o diabo tem muitas cores, mas para os descendentes dos filhos dos escravos africanos que foram levados para o Novo Mundo, o diabo era branco)...


Duerme Negrito

Mercedes Sosa

Duerme Negrito
Mercedes Sosa
Duerme, duerme, negrito
Que tu mama está en el campo, negrito

Duerme, duerme, mobila
Que tu mama está en el campo, mobila

Te va traer codornices
Para ti.
Te va a traer rica fruta
Para ti
Te va a traer carne de cerdo
Para ti.
Te va a traer muchas cosas
Para ti.

Y si el negro no se duerme
Viene el diablo blanco
Y zas le come la patita
Chacapumba, chacapumba, apumba, chacapumba.

Duerme, duerme, negrito
Que tu mama está en el campo,
Negrito

Trabajando
Trabajando duramente, (Trabajando sí)
Trabajando e va de luto, (Trabajando sí)
Trabajando e no le pagan, (Trabajando sí)
Trabajando e va tosiendo, (Trabajando sí)


Para el negrito, chiquitito
Para el negrito si
Trabajando sí, Trabajando sí


Duerme, duerme, negrito
Que tu mama está en el campo
Negrito, negrito, negrito.

http://letras.com/mercedes-sosa/37550/


Sobre a Mercedes Sosa, vd. aqui na Wikipedia

http://es.wikipedia.org/wiki/Mercedes_Sosa

Vd. também, no You Tube, uma interpretação do "Duerme, negrito", dos anos 80