segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16449: Recortes de imprensa (81): " As pessoas não falavam da guerra na guerra. Foi das primeiras coisas que eu percebi. Nem hoje eles falam na guerra. Eles [, os ex-combatentes, ] fazem almoços todos os anos e não falam nisso uns com os outros": entrevista de Ivo M. Ferreira, realizador das "Cartas da Guerra", à Rádio Renascença, em 1 do corrente


Rádio Renascença > 1 de setembro de 2016 > Entrevista, à Renascença, do realizador de cinema Ivo M. Ferreira, cujo filme "Cartas da Guerra" está agora, finalmente, em exibilção nos cinemas portugueses (*)



1. Obrigado ao nosso camarada Carlos Pinheiro, por estar atento ao que se passa na comunicação social e pode interessar aos leitores do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné que há mais de 12 anos, e em contracorrente,  falam todos os dias, da e sobre a guerra colonial... Eis um excerto da entrevista do Ivo M. Ferreira, com a devida vénia à Rádio Renascença (**):



Capa do livro, editado em 2005
pela Dom Quixote
"As pessoas não falavam da guerra na guerra. Nem depois"


(...) Há muito que o realizador queria tratar o tema da Guerra Colonial, "mas nunca tinha encontrado uma forma". Até que tropeçou nas cartas que o jovem António Lobo Antunes escreveu à mulher durante uma comissão de serviço em Angola, entre 1971 e 1973 (tinham sido organizadas pelas filhas de ambos e publicadas no livro "Deste Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas d[a] Guerra", em 2005).

Um dia ouviu a mulher (Margarida Vila-Nova, que interpreta a mulher de Lobo Antunes no filme) ler o livro para a barriga onde crescia o filho de ambos e a ideia plantou-se. "Em termos históricos, de documento de guerra, em termos biográficos e de uma história de amor fantástica, havia uma série de elementos que me permitiam pensar que daria um bom filme." Escreveu o argumento com Edgar Medina em pouco mais de quatro meses.

(...) A pesquisa para o filme passou não só por outros escritos e livros de Lobo Antunes, como "Os Cus de Judas" ou "Memória de Elefante", mas também por conversas com outros antigos combatentes. Ouviu muitas vezes reacções. Como esta: "Mas por que caraças é que tu queres falar nisto?".

"As pessoas não falavam da guerra na guerra. Foi das primeiras coisas que eu percebi. Nem hoje eles falam na guerra. Eles [ex-combatentes] fazem almoços todos os anos e não falam nisso uns com os outros", diz.

Ivo M. Ferreira percebeu que muita coisa que ficou enterrada, "atirada para o mesmo canto do fascismo" para nunca mais se revisitar. Todo um período de "anseios e medos que não eram revelados nem à família nem aos colegas", que criou "um aquartelamento de silêncio muito mais forte do que o que eles tinham enquanto lá estavam".

Por isto tudo, Ivo não podia ter ficado mais surpreendido com as reacções que tem tido. "Sinto que este filme tem funcionado para fazer um desfolhar da cebola que, se calhar, também só podia acontecer agora, quando as pessoas estão naturalmente a desaparecer."

Agora que o filme finalmente chega às salas, trouxe uma surpresa para Ivo M. Ferreira. "Pensei sempre que as mulheres, as filhas, os filhos é que iriam ver o filme. As pessoas que os viram voltar diferentes. Mas de repente sei que há excursões de ex-combatentes, que é uma coisa que eu nunca pensei." (...)


Fonte: A entrevista, conduzida por Catarina Santos,. pode ser lida na íntegra, aqui,  no sítio da Rádio Renascença

_____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

31 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16433: Agenda cultural (489): Amanhã, dia de 1 setembro, estreia nos cinemas o filme, de Ivo M. Ferreira, "Cartas da Guerra", baseado nas cartas de amor e guerra de António Lobo Antunes, ex-alf mil médico, da CART 3313 (Angola, 1971/73). Descontos especiais para grupos de ex-combatentes e séniores

7 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16281: Agenda cultural (488): O filme "Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira, baseado na obra de António Lobo Antunes, tem estreia comercial em 1 de setembro próximo


(**) Último poste da série > 27 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16423: Recortes de imprensa (80): Os "últimos tugas" de Bafatá: João e Célia Dinis, entrevistados pelo "Público", em 13/4/2013... O nosso camarada João Dinis, hoje empresário, vive na Guiné desde 1963. Pertenceu à CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65)

11 comentários:

Antº Rosinha disse...

Agora que o filme finalmente chega às salas, trouxe uma surpresa para Ivo M. Ferreira. "Pensei sempre que as mulheres, as filhas, os filhos é que iriam ver o filme. As pessoas que os viram voltar diferentes. Mas de repente sei que há excursões de ex-combatentes, que é uma coisa que eu nunca pensei." (...)

Há, mas são verdes, não é senhor "jovem" Ivo Ferreira? surpreendido? ou alguem andou a enganá-lo jovem Ivo.M.Ferreira para ter essa ideia sobre velhos de "cabeça na areia"?

Não é por falta de bate-estradas que não se fizeram mais filmes e de todos os géneros senhor Ivo Ferreira.

E lembre-se senhor Ivo Ferreira, esta guerra pode ser um grande filão cinematográfico, pois que marcou definitivamente o fim de uma relação e o princípio de outra entre Europa/África como que uma relação de "vasos comunicantes".

Ou seja, Portugal fechou uma era e inaugurou outra era.

Foram milhões de bate-estradas senhor Ivo Ferreira, imagine se o seu pai já tivesse a sua vocação quantos filmes já podia haver?

E apesar de muitos autores de bate-estradas já terem partido, ainda devem sobrar muitos para os seus netos fazerem muitos filmes, só não devem ter espectadores, pois pouca gente quer saber do que se passou com os autores dos bate-estradas e aquela era.

Não fique por aqui senhor Ivo, não pare!

Cumprimentos



manuel amaro disse...

Que grande mentira.
Os ex-combatentes sempre falaram da guerra.
Na Guerra, durante a Guerra e depois dela.
Nos almoços, enquanto há vida e energia para almoçar, falam da guerra....

... o que os ex-combatentes não são, na sua maioria, é militantes do MPLA, PAIGC e FRELIMO...

Isso, não são... pois... pois..

Mas, quem se alimenta dos ex-combatentes pode continuar a fazê-lo.
Mesmo denegrindo a imagem destes pobres coitados... que não "falam"...

Anónimo disse...

Ainda bem que há gente como o António Rosinha e o Manuel Amaro (cumprimentos a ambos!) que têm a "coragem" de vir manifestar-se contra estereótipos (estereótipos que já chateiam e... chateiam já demais!).
Mas há mais gente, quer dizer: mais ex-combatentes que pensam, mais ou menos, assim. Comentem, ex-camaradas, comentem, que, pelo menos agora, ninguém vai preso por isso. E ficará escrito, para que conste e para que quem queira filmar e quem queira escrever sobre a guerra colonial se sinta obrigado ou a não filmar ou escrever ou, então, que sinta que tem que corrigir... o tiro.

Saudações
Alberto Branquinho

Juvenal Amado disse...


Nós sempre falamos da guerra, os outros é que não queriam ouvir!
"Lá estão eles a falar da mesma coisa" Nem na família escapávamos.
Assim fomos-nos calando.
Mas aqui sempre se falou só quem não quis vir ver, é que não veio.
Talvez se tenha aberto finalmente a caixa em que fomos encerrados por negligência, por abandono, porque era o que lhes interessava mais, porque somos história viva mas incómoda, porque não quiseram saber.

Aqui todos tivemos direito às nossas diferenças.

Há já muito escrito, falado, para que se possa ignorar. Antes que seja tarde, falem com os pais ainda vivos, os irmãos, as esposas e as viúvas. É imperdoável perder-se o que eles sentiram com as nossas partidas, com as nossas ausências e com as nossas chegadas.

Não fui ver ainda mas espero ver em breve e porquê? Porque quero revisitar, quero ver se sinto o Angra do Heroísmo na dor da partida e o Niassa na alegria do regresso.

Um abraço

Manuel Carvalho disse...

Meus caros amigos e camaradas é claro que sempre falamos e falaremos da guerra e da Guiné.Agora não falaremos é de tudo e com todos, até porque nem todos nos entenderão.Por exemplo quando estávamos lá a maioria de nós não falávamos de guerra com os nossos pais e aqueles familiares mais chegados para não os preocupar ainda mais.Lembro-me não há muito tempo o meu irmão me atirar com esta "ó pá tu não me disseste como aquilo era carago" e eu disse ó pá para saberes bastava quando lá chegasses.Há assuntos que só falamos ou com quem os viveu ou com aqueles que sabemos que nos entendem e haverá outros que irão com muitos de nós para a cova.Até aqui no Blogue quando algum de nós fala de algo mais fora do normal (como se a guerra fosse normal)aparece logo alguém a por em dúvida aquilo que ele diz.Enfim vamos andando e vamos vendo como as coisas correm.

Manuel Carvalho

Anónimo disse...

Pois, o meu irmão tinha vindo de lá há pouco tempo e quem, melhor que ele, me poderia traçar um quadro real do que era a Guiné e a guerra. Sim porque uma coisa é descrever a geografia, a economia, as culturas e as religiões de um território numa situação normal; outra coisa é explicar como é que se vivia num contexto de guerra de guerrilha nesse mesmo território. E o meu irmão não me quis assustar, mas, na verdade, de pouco lhe valeria dizer-me como era suportar temperaturas de 40º, carregado de espingarda, água, ração de combate, munições...e medos ; como era penoso dormir dentro de um abrigo à espera de ouvir uma saída de uma canhoada; como era mortificante esperar que passassem os dias longos ; como eram dolorosas as recordações dos retratos da morte dos nossos irmãos de armas. Pois, como era possível ele transmitir-me, de modo fidedigno, tudo o que ele tinha encontrado.
A propósito do filme que não vi, mas quero ver, mesmo julgando que não vou gostar de ver. É que o filme é mesmo isso, um filme. Quanto a gostarmos de falar da guerra, bem posso dizer que, entre a maioria dos combatentes, no decurso dos convívios, sempre se fala da guerra.
Um abraço
Carvalho de Mampatá.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Acho a frase do realizador infeliz... A nossa Tabanca Grande, o nosso blogue, é um exemplo flagrante do contrário: aqui falamos da guerra, desde 23 de abril de 2004...

A jornalista da Rádio Renascença aproveitou-a, a "boca" do realizador, para título de caixa alta: "Ó Ivo, mas que raio te deu para falar da guerra colonial, quando já minguém fala dela, muito menos os que a fizeram ? Aliás nunca se falou dela, nem lá nem cá"...

Eduardado Lourenço, o pensador, terá dito que a guerra colonial nunca existiu, porque nós não a nomeámos... Só existe o que se nomeia...Falamos de guerra de África, guerra do ultramar... mas colonial é tabu, é preconceito...

Os portugueses adoram a frase redonda, burilada, definitiva, o título de caixa alta, a parangona...

Camaradas, vejam o filme, e façam as vossas críticas... Não é todo os dias que aparece nos nossos écrãs um filme português sobre os portugueses, afinal, sobre nós, a nossa garação,que combateu em África... Se não gostarem, digam por que não gostaram... Mas tenha opinião...Se não formos nós a tê-la, outros tê-la-ão, e falarão em nosso nome...

Carlos Vinhal disse...

Ver os nossos jovens falarem da guerra do ultramar, convencidos de que descobriram a pólvora, quarenta anos depois de terminada, até nos faz rir. O nosso amigo Ivo ou é emigrante ou tem andado muito distraído. Os Combatentes não falam da guerra? E o nosso Blogue, óptimo exemplo, não existe? E os muitos sítios na internete dedicados às Unidades que serviram no Ultramar? Não se fazem largas centenas de convívios anualmente em todo o país? E neles não falamos da nossa guerra? E as largas dezenas de tertúlias que se fazem em todo o país, entre Combatentes, são para quê? Para rezar o Terço? E a imensa bibliografia de guerra publicada? E finalmente, a enorme quantidade de Memoriais dedicados à Guerra do Ultramar e em Memória dos Caídos em Combate, são ficção?
Caro jovem Ivo, venha à Terra e pelo menos navegue na Net, informe-se.
Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil
Guiné, 1970/72

Anónimo disse...

Luís

O que interessa, para além da discussão do que SEJA ou NÃO SEJA uma "literatura ou cinema da guerra colonial", o que interessa é desmistificar/desmentir AQUI duas afirmações do realizador que tu, afinal, sublinhaste a amarelo neste POST 16449:

1ª. - Não foi este filme que pôs os ex-combatentes a falar da guerra colonial, porque eles SEMPRE falaram dela, o que, para além do mais, tem sido terapêutico;
COMENTÁRIO: Não foi ele, o realizador, que abriu esta "caixa de Pandora". (Presunção e água benta cada um toma a que quer... e não paga imposto.)
2ª. - De um modo geral, como disse aqui o Juvenal Amado no comentário acima, os familiares e, principalmente as mulheres (nem todas...) já não aguentam mais a ouvir-nos falar da guerra (quando algum facto despoleta o assunto) e desviam a conversa.

A terminar: o meu APLAUSO ao comentário do Carlos Vinhal.

Saudações
Alberto Branquinho

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Vi o filme e não gostei.
Há erros técnicos imperdoáveis como aparecerem Unimog 1300 Diesel a transportar o pessoal sentado com as guardas da caixa levantadas, a progressão dentro de um riacho quando à volta tudo está seco e outras como a existência de um 1º Cabo Mil.º de Tms a gritar Mina! Mina! Cabo mil.º não existia nas nossas unidades, como sabem. E outras.
Gosto de uma boa reconstituição dos ambientes o que não acontece aqui...
Não li o livro, não li as cartas, não estive em Angola. Por isso escapam-me muitos "pormenores". Por isso aconselho a que o vão ver para puderem criticar como eu a voz off da actriz Margarida Vila Nova a necessitar urgentemente de lições de dicção.
Não merecíamos isto.

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Podia haver cabos milicianos na guerra em Angola, A.J.P. Costa.
Como havia grandes incorporações em Angola no curso de sargentos milicianos, também iam como cabos milº para as zonas de Intervenção.
Era um aninho a ganhar 1 conto e quinhentos, às vezes "emprestados" a companhias da metrópole, até serem promovidos a fúrrias.
Podia ser o caso
Já li as cartas de soslaio, e vou ver o filme.
De facto foi terrível para um jovem médico vindo do habitat-natural-da-linha-de-cascais, ser confinado ao arame farpado nas terras do fim do mundo (cus de judas).
Talvez para um jovem pastor oriundo da linha do Tua ou da linha do Côa o embate não fosse tão violento.
Como aquilo foi o meu habitat durante alguns anos, sem arame farpado, não vou perder.