terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17069: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Sonhos em perigo

Furriéis da CART 1689 na Av. de Bissau, no final da comissão. Silva, Campos, Valente, Carvalho, Lopes, Miranda, Cepa, Borges e Faria.


1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 17 de Fevereiro de 2017 enviou-nos mais uma das suas outras memórias da guerra.


Outras memórias da minha guerra

25 - Sonhos em perigo

Aqueles pesadelos que nos atormentavam as noites, durante os primeiros meses, foram-se diluindo e amenizando à medida que o tempo ia passando. Pelo caminho, ficavam os intermináveis dias de sofrimento, carregados de angústia, de tristeza e de medo. Por melhores que fossem os camaradas e por maiores que fossem as bebedeiras, nada nos fazia esquecer os dias mais marcantes das nossas vidas.

Com a aproximação do fim da comissão acentuavam-se os anseios pela concretização dos nossos principais sonhos. Não havia dia nem hora em que não nos imaginássemos num outro mundo cheiinho de projectos, onde a felicidade é obrigatória. As habituais manifestações de lamento e de revolta deram lugar à vontade de cada um falar dos seus próximos projectos. Tudo coisas bem pensadas e aparentemente de fácil resolução. Paralelamente, íamos antegozando a alegria do regresso, recuperando, desta forma, a alegria de viver que nos fora roubada.

Foi a 3 de Dezembro de 1968 que a nossa CART 1689 iniciou o seu percurso do ansiado regresso. Ficámos em Bambadinca e no dia 5 dali seguiram para Bissau mais de 2/3 dos nossos camaradas. Eu e os restantes, ficámos ali à espera de novo transporte fluvial até ao dia 9.


Militares da CART 1689 na barcaça de transporte de Bambadinca para Bissau.

Embora o ambiente fosse de paz e de relaxamento, nós, os que ficámos em terra, sentimos algum refreamento na alegria que vínhamos vivendo e muita angústia nos dias seguintes. E, tal como acontecera nos dias anteriores a 1 de Maio de 1967, quando outros militares esperavam no cais pela chegada do “seu” barco, lá estávamos nós na situação invertida, olhando de manhã à noite, para o horizonte do Rio Geba, a reclamar, ansiosamente, pela chegada do “nosso”.

Depois do jantar, não apetecia ir para a cama, nem havia sono que chegasse. Eram horas de espera em que a “sede” se acentuava.

Precisamente na véspera (dia 8), fui chamado por um Furriel (de serviço) da tropa local, para ajudar a resolver uma situação anormal, com possibilidade de consequências dramáticas. Sussurrou-se no bar que na casa do Comando, haviam visto uma senhora branca, curiosidade difícil de admitir pelos nossos militares, porque não as viam (mulheres brancas) há cerca de 20 meses.

O Areosa, já com um copito, exteriorizando um exagerado à vontade, não acatou o conselho/ordem/advertência do Furriel e, armado em conquistador, parou por ali e continuava a lançar piropos, à moda do norte e em voz alta. Fiquei preocupado com o seu comportamento, agravado com a desobediência e desrespeito ao Furriel. Puxei o Areosa e empurrei-o para que saísse dali. Claro que me devo ter excedido em linguagem para com o Areosa, mas teria que o libertar de uma provável participação do Furriel. Por outro lado, desta forma, assumi a responsabilidade da condenação de tal comportamento.

O Areosa, possivelmente ferido no seu orgulho, acabou por acelerar o passo e adiantar-se de mim. Ia a praguejar e, de repente, correu na direcção onde os nossos militares estavam acantonados com os seus haveres. Pegou numa G3, veio para o meio da rua, virou-se na minha direcção. Nunca esquecerei aquela imagem, iluminada pelo luar, mais parecendo uma cena de um duelo de “cowboys”, no Texas. Apontou-me a arma, em posição de tiro instintivo e gritou:
- Vou-te matar! Vais com o caralho!

Como não parei, ele repetiu o grito, ao mesmo tempo que puxou o gatilho. Não houve disparo porque não havia bala na câmara. Porém, quando ouvi o estalido, fiquei fora de controlo e avancei sobre ele, a murro e a pontapé. Valeu-lhe a malta que se envolveu a afastar-me.

Foi uma noite muito mal dormida, a última vivida no interior da Guiné. Massacravam-me a cabeça um montão de coisas. Podia ter sido atingido por um soldado do meu próprio grupo. Nós, que tivemos em comum tantas lutas contra o IN. E eu que estava convencido de que o Areosa era um dos militares mais dedicados.

Logo de manhã, apercebi-me da excitação dos militares. A barcaça já se avistava ao longe e ninguém parava naquele alegre frenesim. Apenas o Areosa estava parado. Estava à minha espera e, cabisbaixo, abeirou-se mais de mim:
- Ó Silva, estou aqui sem dormir. Quero pedir-lhe perdão pelo meu comportamento de ontem. Sabe que nunca tive nada contra si. Tem de me perdoar.

Eu não sabia que dizer, nem o que cobrar.
E ele continuou:
- Eu estava “alegre”, comecei a cantar e veio o caralho do Furriel gozar comigo. Fiquei ainda mais fodido quando chamou por si. Pensava que o Silva me ia defender e ainda ajudou à missa. Eu estava tão marado que nem vi que você me estava a safar. Sempre que bebo um copo a mais, faço merda.

Este dia 9 de Dezembro também foi muito marcante. As fortes emoções parecem ter sido abençoadas pela brisa refrescante que nos acariciava, cada vez mais, à medida que nos aproximávamos de Bissau. Até deu para relaxar e descansar na viagem.

Chegados a Bissau, foi o reencontro de toda a família da CART 1689. Parecia que já estávamos salvos. Foi, possivelmente, o dia mais alegre que lá sentimos. E eu fiquei duplamente feliz e grato porque o grupo dos Furriéis estava à minha espera para exteriorizar tanta alegria. Foi uma noite de arromba. Quase não se dormiu naquele quarto do Quartel-General, onde se meteram 8 camas (!), para ficarmos juntos até ao ansiado regresso. Um tanto contra a corrente de alegria, o nosso Primeiro Viscoso, com o seu permanente aspecto trombudo, continuava a procurar ensombrar a alegria dos outros, especialmente a dos Furriéis.

Logo de manhã, fomos convocados para uma reunião com o 2.º Comandante do Quartel-General. Fomos perdoados e compreendidos pelos excessos, mas avisados de que teríamos que respeitar o silêncio a partir da meia-noite. Foi o Viscoso quem fez a queixa. Havia-se aproveitado da ausência do Capitão da nossa CART e, ultrapassando os nossos Alferes, foi-se “armar” junto do Comando do QG.

Entre os serviços e as folgas, o tempo passava-se da melhor forma. Porém, o Primeiro Viscoso continuava atento e pronto para destilar o seu ódio aos milicianos, especialmente aos que não lhe falavam (que era o meu caso).

Faltavam menos de 15 dias para o regresso. Estava eu de serviço no QG e as orientações superiores eram que, numa Companhia de 150 militares, apenas um terço estava autorizada a sair do Quartel. Ordens são ordens, mas nem sempre se levavam à risca, especialmente em quartel de maior acalmia.

Ora, os soldados, mesmo sem dispensa, procuravam “desenfiar-se”. Por norma e lealdade, antes do “desenfianço”, cada um perguntava se podia sair. E eu só lhes dizia: Se acontecer alguma coisa, avisem logo, porque tenho que fazer o relatório das anomalias antes das 8H00 horas (hora do render da guarda). Era arriscado, mas, como estávamos nos últimos dias, sentia-me bem com a satisfação da “malta”.

- Aquele que vai ali não é o Tripeiro? - perguntava o 1.º Sargento ao Sargento que o acompanhava, ambos a passear na avenida do Pilão.
- É mesmo, respondeu-lhe.
- Ouve lá, ó Tripeiro, anda cá - chamou - Como é que andas cá fora, se estás detido, e sem qualquer dispensa?
- Sabe, é o Furriel Silva que está de serviço e com ele não há problema. É um gajo porreiro – confiou o Tripeiro.
- Ah, sim? Então quando é o Furriel Silva, é tudo à balda? – questionava de, fala amolecida, o Viscoso, que, para melhor tirar dele, aproveitou para lhe pagar uma cerveja no Bar Jagudi.

Era caso de admiração, porque o somítico, para não gastar um tostão, só bebia água del cano. Cerveja só se alguém lhe pagasse. E assim, estando no Bar a beber, também se mostrava à nossa tropa, a confraternizar!

- Silva, acorda que estás fodido. O detido, o Tripeiro, foi visto pelo Primeiro perto do Pilão – alertou-me, bastante aflito, o Campos.

Virei-me para o outro lado e, meio a dormir e meio acordado, devo ter-lhe respondido mais ou menos:
- Caga nisso, que eu cago no Primeiro.

Seriam cerca de 8h30 quando entraram no meu quarto o Machado e o Faria, e em tom muito sério, dispararam:
- Olha que o Primeiro esteve à espera para ver se apresentavas faltas até ao render da guarda. Agora está a fazer uma participação contra ti, por o Tripeiro andar a passear em Bissau. Já mandou chamar o Tripeiro para depor. E aquele gajo, que gosta tanto de ti, vai-te foder. Mexe-te rapidamente.

Vi num relance a gravidade da situação. Mas, que hei-de fazer? (questionava-me repetidamente). Tantas vezes debaixo de fogo, estava, afinal, numa outra situação perigosa. Tudo de mau me vinha à cabeça e por momentos fiquei paralisado. Qualquer processo naquela altura iria obrigar-me a ficar na Guiné, como tantos outros condenados, e precisamente no momento mais ansiado e carregado de projectos. Havia de aparecer aquele filho da mãe a lançar, mais uma vez, a peçonha, a sua inveja e a gozar com o sofrimento alheio.

Assaltou-me uma ideia. Dirigi-me rápido à caserna e vi que os soldados pareciam já estar à minha espera, adivinhando o que me ia na mente. Logo ali, à entrada, perguntei em voz alta:
- Atenção malta, Vocês viram ou não viram o Tripeiro, ontem, no recolher obrigatório?

A resposta surgiu unânime e categórica:
- Vimos! - Por acaso ele até estava mesmo à minha beira – respondeu logo em voz alta e firme o Cabo Felgueiras.
- Ok, era só isso. E afastei-me. (Por sinal o Cabo Felgueiras não tinha estado na formatura do recolher.)

Assim, o Viscoso não conseguiu testemunhas para promover o processo. E o próprio Tripeiro, chamado a depor, também negou tudo, incluindo a cerveja que tanto havia custado a esse nosso querido Primeiro-Sargento.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16374: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): Relatório de Operações do último almoço-convívio da CART 1689

3 comentários:

Unknown disse...

Mais uma história de sofrimento. Não, uma apenas não, pois são várias as situações que narras de sofrimentos. Ainda bem que tudo acabou em bem. Agora só nos resta as saudades.
Da foto lembro-me de quase todos os camaradas. Convivi com uns mais do que com outros no Catió...
Já tens histórias para o segundo livro...

Anónimo disse...

Estiveste bem, amigo Zé Ferreira, não deixaste que o outro te fodesse.

Um abração.

carvalho de mampatá.

Hélder Valério disse...

Olá Zé Ferreira

Decisões e situações de risco....
Sempre difíceis de 'contornar'. Pelos vistos, safaste-te!
Valeu a solidariedade.
Hélder Sousa