1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.
As minhas memórias de Gabu
Na cozinha da messe de sargentos, em Nova Lamego, num ataque de "fair play":
O “Sermão aos peixes” em tempo de guerra
Revejo, amiudadamente, imagens sobre a nossa comissão militar na Guiné que me provocam intensos calafrios. Não sendo este o caso, pois a pose para o clique que máquina fotográfica registou, visa o recordar de velhos camaradas que conviveram comigo por terras de Gabu. Vamos, pois, dissertar sobre um ataque noturno mas de… fair play.
A noite era de festa. Comemorava-se o nascimento de Jesus, ou seja, festejava-se a quadra natalícia de 1973. Lá fora o breu da noitada reclamava cuidado. No interior do arame farpado o pessoal convivia. Uns, não recusavam disfarçar o vício do tabaco; outros, riam pelas “traquinices” provocadas pela minha pose que mais parecia o reeditar do proclamado “Sermão de Santo António aos Peixes”. É óbvio que o desígnio que ficou célebre é da autoria do padre António Vieira que a 13 de junho de 1654, na sequência da encruzilhada de litígios entre colonos brasileiros e os Jesuítas, ordem a que Vieira pertencia, contestavam a escravidão dos povos indígenas. Numa observação ao acontecimento litúrgico, o sermão terá sido declarado em São Luís do Maranhão, Brasil.
A história diz-nos, também, que três dias depois, António Vieira embarcou para Lisboa onde debateu com o rei D. João IV leis que garantissem direitos básicos para os índios brasileiros protegerem as explorações dos colonos brancos. Esse objetivo visava, simultaneamente, a perda da mão-de-obra barata por parte dos colonos que exploravam impiedosamente os escravos.
O sermão constitui um surpreendente imaginário onde o padre António Vieira toma os peixes como símbolos de virtudes humanas que colidem em vícios de colonos então severamente censurados. Aliás, todo o sermão é uma alegoria, tendo em conta que os peixes são simplesmente uma metáfora dos homens.
A metáfora dos homens embebecidos por tamanha homilia não foi, em particular, a guerra com a qual convivemos. Não somos conhecedores de sermões aos peixes, nem enxergámos indícios de trabalho tipicamente escravo. Conhecemos, e essa foi a realidade, fazendas exploradas por feitores brancos, sabendo-se, historicamente, que a anulação da escravatura na Guiné teve lugar em finais do século XIX. Logo, escravos fomos nós de um regime totalitário que impunha regras de obrigatoriedade a jovens soldados.
Assim sendo, em meu entender, não houve ao longo da guerra pactos de reconciliação com o poder central instalado em Lisboa, nem metamorfoses que carecessem o erigir de novas leis do Estado Novo para protegerem os escravos inocentes atirados para as frentes de combate. Davam o seu corpo às balas e lá vinha a já gasta retórica que o audaz combatente morreu ao serviço da Pátria. Ponto final.
Nesta panóplia de combatentes nos campos da guerrilha, pormenorizo caras jovens de antigos camaradas que o tempo ousou imensuravelmente separar. Com a marcha da vida em rodagem moderada, embora o “contrarrelógio” visione sexagenários que se aproximam vertiginosamente para uma viragem de direção para um escalão superior, isto é, para categoria de septuagenários, eis-me, uma vez mais, ao encontro do precioso intento de rever companheiros que comigo partilharam inolvidáveis momentos.
Sei que a quase totalidade dos camaradas pertencentes ao BART 6523 que se fixou em Nova Lamego, Madina Madinga e Cabuca, são originários de terras nortenhas. Recordo que o Batalhão foi formado em Penafiel, não obstante de nunca por lá ter passado, uma vez que fiquei em Lamego a ministrar o 2º curso de 1973, precisamente ao 1º grupo de cadetes – Operações Especiais/Ranger -, seguindo-se a minha incorporação no respetivo corpo operacional na região de Gabu, um mês depois das nossas tropas por lá se terem instalarem.
Porém, a distância do tempo levou-me a citar o “sermão aos peixes” do padre António Vieira, embora ao de leve, dado que a narrativa tem como objetivo prioritário uma aproximação a esses célebres camaradas que foram meus fiéis companheiros enquanto da nossa estadia em chão fula.
Sabe-se que no Norte, presumivelmente ao invés da rapaziada do Sul, existe uma esmerada afeição pelos militares da guerra de África. As Tabancas de ex-combatentes que prestaram serviço na Guiné que por lá existem, são a prova reconhecida desse inequívoco querer. Os convívios predominam. Ainda bem que assim é. Bem-haja a vossa voluntariedade!
Fica este meu suposto “sermão aos peixes” em tempo de guerra, tendo em conta que esses outrora jovens, com caras joviais, são hoje gentes com rostos já rogados e vergados ao peso de uma idade que teima em não dar tréguas num trilho ultrapassado com alguma segurança. Aqui não há minas, nem tão-pouco fornilhos da desgraça. Vivamos a vida enquanto esta não derrapar para a fatídica emboscada final.
Camaradas, espero, e teria muito prazer, um dia reencontrar-vos! Ficam os sinais de esperança. Facultem-me, pelo menos, um grito de alerta. O Zé Saúde, que vós conhecestes vive, desde criança, na cidade de Beja.
A vida, não obstante ter-me sido madrasta, contínuo a usufruir da minha plena liberdade e pronto a desafiar quilómetros de estrada. Aqui não há AVC que me derrube, por enquanto.
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
29 DE DEZEMBRO DE 2017 > Guiné 61/74 - P18151: Memórias de Gabú (José Saúde) (68): 43 anos depois: lembrando os dolos em tempo de guerra. Três contos e novecentos que caíram numa emboscada. (José Saúde)
4 comentários:
É uma ternura de texto, Zé!... E um grande homenagem... à nossa geração. Pode não ficar bem, ou parecer bem, sermos a gente a passar a escova pelo pêlo uns dos outros... Mas quem o fará, se não formos nós ? Os nossos pais, já morreram, e os seus horizontes eram curtos: eram os da aldeia ou vila onde nasceram... Os nossos filhos e netos ?... Poucos têm pachorra para nos ouvirem, a nós e às nossas bafientas dos terrafos, bolanhas, matos, rios da Guiné...
A tua energia ainda é contagiante. Tens razão, não há AVC que te derrube!... E lá vamos caminhando pela picada da p... da vida fora, até à emboscada... final!
Adorei a tua evocação do Padre António Vieira, português maior, daqueles que me/nos fazem ainda ter orgulho em ser(mos) português(es)!... Escritor maior, da nossa língua, figura maior da literatura brasileira e portuguesa!...
Temos aqui, camaradas, o texto integral do "Sermão aos Peixes"...
http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/padreantoniovieira/stoantonio.htm
Excerto:
http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/padreantoniovieira/stoantonio.htm
Sermão de Santo Antonio
Pregado em S. Luís do Maranhão, três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino.
Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.
I
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal! (...)
Interessante texto Zé Saúde.
Também andei pelo Gabu nos anos 1969/1970, mas no nosso Quartel, o Quartel de Baixo, a cozinha e o cozinhado era geral para todos soldados, sargentos e oficiais.
Mas também interessante e sabe-se lá porquê, o padre António Vieira era um grande defensor dos índios brasileiros, do mesmo não se poderá dizer em relação aos escravos negros chegados ao Brasil em 1530 oriundos precisamente da Guiné.
Vamos continuar a falar dos nossos tempos da guerra na Guiné, ninguém nos vai mandar calar, mesmo que um dia sejamos os últimos a descer a Avenida como faziam há
anos os velhinhos da La Lys.
Abraços
Valdemar Queiroz
Esta lembrança do sexagenário Saúde trazer para aqui a figura de Vieira, pregador Jesuíta, que não é parente do presidente do Benfica que agora anda nas bocas do resto do mundo, que não nós aqui, faz-me lembrar a mim quase-quase octogenário, a minha estada no Brasil, onde testemunhei que popularmente, poucos brasileiros conhecem a figura colonial brasileira, mais importante, depois de Pedro Álvares Cabral.
Desconhecem, porque é evitado intencionalmente em livros escolares a nível liceal.
Complexo? Vergonha? Desgosto? Raiva? Cabeça na Areia? Ainda recentemente em Lisboa um grupo de descendentes de antigos colonizados quis acender velas e pôr flores aos pés da Estátua de Vieira, por este ser um "esclavagista selectivo".
José Saúde, a conversa é como as cerejas...desejo-te boa saúde.
Lembremos
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