sábado, 24 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18454: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 35 e 36: "Capturaram um turra, trouxeram-no aqui para o quartel. O tipo tem mesmo cara de bandido, se eu pudesse dava-lhe uma rajada de G3 que ele nunca mais nos voltava a atacar.”


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CCAÇ / BART 6520/72 (1972/74) >  O pessoal a preparar-se para mais uma "saída para o mato"...

Foto: © Jorge Pinto  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


José Claudino da Silva, o pai da ideiado "Bosque
dos Avós".. Gere a respetiva página no Facebook.
A inauguração do bosque é hoje às 10h00,
na serra do Marão. Apoio da
União de Freguesias de Aboadela,
Várzes e Sanche, conceçlho de Amarante

1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje);

(ii) foi criado pela avó materna;

(iii) reside na Lixa, Felgueiras;

(iv) é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(v) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado;

(vi) completou o 12.º ano de escolaridade;

(vii) foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(viii) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Hoje, 24 de março, ele e um grupo de avós e netos vão começar a replantar, às 10h00,  a bela serra do Marão, criando assim o "Bosque dos Avós".

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, s pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo...

(xviii) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste (**):


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 35 e 36


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


35º Capítulo  > A PASSAGEM DE ANO 72/73


Na passagem de ano de 72 para 73 estivemos de prevenção. Foi grave o que eu e mais quatro fizemos. Leiam:

“À meia-noite em ponto eu juntamente com três amigos e um furriel que é um tipo porreiro, viemos desenfiados ao meu quarto e bebemos champanhe, comemos bolos e bolachas. No posto onde estávamos a fazer serviço, ficaram apenas seis colegas, quando deviam estar dez e um furriel. Foi uma coisa rápida, à meia hora já estava outra vez de G3 na mão a olhar para o arame”

Reconheço que cometi muitos erros em toda a minha vida militar; este talvez fosse o pior e devo mencioná-lo pela leviandade, na maneira de proceder. Felizmente, nessa noite, nada aconteceu, mas tenho de admitir que estar de prevenção numa zona de guerra pressupõe que algo de grave possa acontecer o que se viria a verificar em posteriores ocasiões e eu abandonei o meu posto.
Aproveitei o momento para, às zero horas em ponto, escrever para a minha namorada e para as de mais cinco dos meus camaradas.

“1972
0 HORAS.
Nesta Guiné Portuguesa o ano que agora se inicia será vivido a pensar em ti. Amo-te
1973”


É exacta a mensagem como é exacto tudo quanto acentuo a negrito por muito ridículo que possa parecer.

A prevenção terminou às duas da madrugada. Mais tarde descobrimos que foi uma “diversão” do capitão para mostrar quem manda e nada como o demonstrar na primeira noite do ano.

Sendo longa, esta carta onde conto o que atrás descrevi, aproveito para lhes dizer mais duas ou três coisas, nela mencionadas.

Era impreterivelmente no dia 1 de cada mês que tinha de apresentar as contas dos artigos que estavam sob o meu controle, o que me ocupou parte do 1º dia do ano. Há, contudo, um acontecimento que registei e quero partilhar.

“Às 11H30 veio uma avioneta militar buscar um negro que se magoou não trouxe nada mas levou o ferido e correio”

Não sei que logística foi necessária para que esse transporte fosse efectuado. O que sei é que o nosso médico não se importou com a cor do ferido para accionar um meio aéreo de transporte em condições de guerra. Isso ainda hoje é motivo de regozijo para mim. Talvez, por ter vivido em criança com ciganos, nunca lidei muito bem com atitudes xenófobas.

“Fui receber a oferta do Movimento Nacional Feminino. Deram-me oito livros da colecção R.T.P. logo que acabe de os ler vou enviar-tos; embora me pareça que tu não gostas de literatura clássica. Servirão sempre para passares o tempo. Manda-me dizer se queres que os envie ou não.

Meu bem, após ter recebido os livros tocou para o jantar. Aqui jantamos às cinco horas e sabes uma coisa? Estou em Fulacunda há cinco meses e foi a primeira vez que comemos carne de vaca. A notícia tem pouco interesse mas é para saberes a miséria que às vezes aqui anda. Pois bem hoje comi batatas estufadas com carne de vaca. Até soube demais”. 


Mais adiante na mesma carta:

“Desde o dia 26 de Junho até 31 de Dezembro tenho 130 cartas e aerogramas teus, deves ter mais ou menos a mesma coisa. Olha meu amor estava muito bem na caminha a escrever-te mas o capitão mudou de ideias e pronto, lá vamos nós outra vez estar de prevenção. Parece que os “turras” estão a lançar Very Lights.

Que vida tão complicada a nossa, tenho de me levantar, por isso meu bem quando eu vier às duas horas dar-te-ei as últimas notícias por agora tenho de vestir o camuflado e preparar a minha G3. É assim a vida, aqui somos um simples número, por isso estamos sujeitos a tudo. Até mais logo querida.

São três horas da manhã talvez logo venha uma avioneta, e traga correio teu. Recebe o beijo mais apaixonado que eu possa dar-te.”

Foram noites e noites como estas que milhares de nós tiveram de passar. Fazem ideia do tormento que foi? Explicaria melhor se vos falasse dos very-lights: sempre que um verde era lançado, na meia hora seguinte ninguém se mexia e, quando já estávamos novamente despreocupados, lá vinha outro doutra cor. Por vezes passavam-se noites inteiras nisto até algum dos meus colegas enervado dar uma rajada com a G3.


36º Capítulo > UM ANO NA TROPA


No dia 3 de Janeiro de 1973 completei um ano de serviço militar. O aerograma desse dia tem 90 linhas, em cada linha cerca de sete palavras. Escrevi, então, mais ou menos 630 palavras. A Maioria dessas palavras é de amor, paixão, dor e saudade. Tentei sempre brincar com a guerra e até nos momentos mais críticos os meus comentários foram suaves e com um certo patriotismo. Neste dia, porém, está patente uma tremenda revolta, que espero não se venha a acentuar, quando continuar esta leitura a que me propus 45 anos depois.

Começo por me referir o meu amigo Zé Leal. Estava, neste dia 3, convocado por castigo, para participar numa perigosíssima operação no mato e que felizmente não aconteceu. Quero dizer-lhes: os militares adstritos à formação tinham muito pouca experiencia em combate como era o caso, por exemplo, dos condutores. E o Zé era um o que, em minha opinião, em caso de combate, até era um perigo para os outros soldados especialistas.

Escrevi:

“Para que tu vejas como é perigoso o sitio onde os meus camaradas hoje foram fazer uma operação de combate, basta que te diga que para os apoiar vieram, uma avioneta equipada com metralhadoras e bombas e um helicóptero com canhão. Andam por cima deles para os proteger, mesmo assim foram atacados mas não houve nenhum ferido. Capturaram um turra, trouxeram-no aqui para o quartel. O tipo tem mesmo cara de bandido, se eu pudesse dava-lhe uma rajada de G3 que ele nunca mais nos voltava a atacar.”

No mesmo aerograma:

“Talvez não fosse má ideia pegar na minha arma, e obrigar o piloto da avioneta a levar-me até ti. Fazia como aqueles que desviam os aviões para Cuba. O pior eram as consequências.”

Honestamente, não sei a que consequências me referia. Pior que os castigos que tínhamos eram difíceis de imaginar.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18433: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 32 e 33: E as besteiras que a gente fazia ?!

(**) Vd. poste de 24 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18133: O meu Natal no mato (44): Naquele Natal de 1972, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Dino, hoje está mau em Amnarante, para inaugurar o "Bosque dos Avós"... De qualquer modo, mereces um especial abraço, tu e os restantaes avós que se meteram à estrada, com os netos atrás... Que belo exemplo o vosso, para todos nós, de "envelhecimento saudável, ativo e produtivo"!...

Que o São Pedro te ajude!... Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Dino, o "turra" que vocês capturaram não seria um pobre diabo da população, e não um combatente ? Percebo a tua "raiva", que era muito mais uma raiva contra aquela estúpida guerra que te obrigava, a ti e nós todos, a estar longe daqueles que amávamos...

Tinham todos "mau aspeto", também, todos os prisioneiros (combatentes e população) que fizemos, no outro lado do Corubal, no setor L1 (Bambadinca), em 1969/71, np meu tempo... Vivia-se muito mal nas "regiões libertadas", contrariamente à propaganda do PAIGC... Em todas as guerras, é sempre a pobre população que é "instrumentalizada" pelos beligerantes...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Há uma hora escreveu o José Claudino da Silva, na página do facebook "Bosque dos Avós":

(...) "A todos os Avós e pessoas em geral!

Não deixem de vir hoje dia 24 a partir das 10H00, à inauguração do Bosque dos Avós em Aboadela Amarante.

Se estiver mau tempo, o nosso plano B é tão bom como o plano A.

Podem vir almoçar na Escola do Marão e deliciarem-se com a Banda de musica de Várzea e o fabuloso agrupamento popular, Própagode.

Pelo Bosque dos Avós

José Claudino da Silva" (...)

Dino, tenho pena de estar longe!... Luís

Manuel Bernardo - Oficial reformado disse...

Apenas quero chamar a atenção de José Claudino da Silva para o facto de já existir um livro sobre a Guerra do Ultramar, intitulado "EM NOME PÁTRIA"/2009, da autoria do TCor. Brandão Ferreira, que continua a escrever artigos semanalmente no semanário "O Diabo" e ocasionalmente no "Observador" (digital), no "Público" e no "Expresso". Com esse título (em escrito "particular") ou com qualquer outro, acho bem que continue a escrever as suas memórias. Se quiser ver os livros que publiquei, poderá consultar a wikipedia, com o meu nome completo (Manuel Amaro Bernardo). Ab e Boa Páscoa.