segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19103: Notas de leitura (1109): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
O autor e seguramente a equipa que com ele colaborou em "Livro Negro da Descolonização" procuraram legitimar o princípio da autodeterminação do Ultramar português como a coisa mais lógica do mundo, a despeito do pusilânime Marcello Caetano ter recusado a consulta popular que teria levado à derrota dos movimentos de libertação.
Na Guiné, tudo seria simples, far-se-ia um referendo, até havia a FLING, o Movimento Democrático da Guiné e a Liga Popular dos Guinéus, e havia a temível força africana, muitíssimo superior ao PAIGC, eram favas contadas. E é com este raciocínio simplório em que as unidades militares portuguesas queriam retirar prontamente, em que a pressão internacional para reconhecer a República da Guiné-Bissau na ONU no princípio do Outono era enorme, não merecem uma só palavra, assim se faz História confundindo desejos com realidades. E já não falo nos disparates avançados sobre a situação militar.

Um abraço do
Mário


Livro Negro da Descolonização, por Luiz Aguiar (2)

Beja Santos

Poder-se-á questionar qual o grau de utilidade de aqui se referir um livro intitulado “Livro Negro da Descolonização”, tendo por autor Luiz Aguiar, Editorial Intervenção, 1977, em que se propunha uma tese hoje varrida do esquecimento: em 1974, já não tínhamos colónias, tínhamos territórios autodeterminados que aguardavam uma consulta popular que relegaria para o caixote do lixo da História os movimentos de libertação.

Se se tiver em conta que nesse mesmo ano de 1977 se escreveu um livro intitulado “África - Vitória Traída” em que um conjunto de oficiais-generais dava como demonstrado que tudo estava a correr de feição nas frentes militares até à chegada do MFA, e que no nosso tempo anda um tenente-coronel aviador a procurar legitimar que o Estado Novo se via forçado a combater em parcelas africanas a que tinha direito e que a guerra que desenvolvíamos era indiscutivelmente sustentável, não se podem iludir os diferentes matizes ideológicos dos ramos ultranacionalistas.

Na tese maior de o “Livro Negro da Descolonização”, como praticamente em todos aqueles oriundos da cepa ultranacionalista, nunca cabe uma reflexão sobre o nacionalismo africano e a luta anticolonial, há um completo silêncio sobre o pano de fundo da busca de identidade dos povos coloniais. Mas, reconheça-se, este livro de Luiz Aguiar e seus parceiros de escrita trazia uma modificação da lógica quanto aos deméritos da descolonização: não se escamoteavam os erros do passado, introduzindo uma varinha mágica: a vontade de autodeterminação irmanava nativos e radicados nos territórios chamados “províncias ultramarinas”. É uma tese que reconhece o princípio da autodeterminação que consta da Carta das Nações Unidas o que, veladamente, contraria a tese do Portugal de Minho a Timor. O que se seguiu ao 25 de Abril, diz Luiz Aguiar, foi uma política incapaz que contrariou e impediu que o processo de descolonização, iniciado em 1961, entra-se numa sequência racional, na sua fase derradeira – a autodeterminação de facto, abalando os alicerces a cupidez dos movimentos de libertação.

Mas não se deixa de pôr pessoas no banco dos réus, de Mário Soares a Melo Antunes, movem-se críticas acerbas a Spínola e a Galvão de Melo. Tecem-se considerações simplificadoras do tipo a Guiné foi entregue ao PAIGC através do Acordo de Argel, devia-se ter feito consulta popular, embora não se explicando como depois do reconhecimento da República da Guiné-Bissau e de como se alterara radicalmente o quadro político da Guiné face ao Direito Internacional.

Luiz Aguiar e quem o acompanha nega a existência de áreas libertadas na Guiné, e explana uma reflexão curiosa sobre refugiados:  
“A maior parte dos que buscaram refúgio nos territórios vizinhos não o fez por qualquer solidariedade com o PAIGC, mas, sim, solicitados por laços tribais que não tinham sido afectados de maneira sensível pelas fronteiras convencionais. Verificou-se, após a entrega da Guiné ao PAIGC, que os refugiados, na sua quase totalidade, não quiseram regressar à Guiné. A estes acresceram, porém, muitos outros. Segundo o jornal senegalês Le Soleil, dos 60 mil refugiados que deviam existir no Senegal antes da independência passou-se para 120 mil, de onde se conclui que o êxodo continuou”.
E o autor continua:  
“Com este êxodo de guinéus para os territórios vizinhos – 60 mil para o Senegal e 20 mil para a Guiné Conacri – a população da Guiné portuguesa ficou reduzida a 480 mil habitantes. Quando da chegada do General Spínola, admitia-se que cerca de 10% tivesse aderido ao PAIGC. Pode-se dizer que o PAIGC era um partido sem representatividade significativa na província – e com pouca possibilidade de a vir a adquirir”.
Dá-se como testemunho o doutor Baticã Ferreira que depois do 25 de Abril liderou o Movimento Democrático da Guiné, ele teria pedido às autoridades portuguesas que supervisionassem uma espécie de eleições primárias para saber de que lado se encontrava o povo e o PAIGC teria conseguido apenas cerca de 2% dos votos. E o autor procura uma explicação, a de que a população temia o colonialismo cabo-verdiano:  
“Percorrendo a lista dos dirigentes da actual Guiné, constata-se que o ministro da Economia, Vasco Cabral, é cabo-verdiano, o ministro da Justiça, Fidélis Cabral, é filho de cabo-verdianos, o ministro da Educação, Mário Cabral, é cabo-verdiano, o Procurador-Geral da República, João Cruz Pinto, é cabo-verdiano, o primeiro-ministro, Francisco Mendes, é cabo-verdiano, o ministro da Defesa, é cabo-verdiano. Este domínio pelos cabo-verdianos foi reforçado pelo acesso a posições importantes dos antigos chefes de posto e funcionários ultramarinos naturais de Cabo Verde e que estavam colocados na Guiné, como aconteceu com Fernando Fortes, Alfredo Fortes, Miranda de Lima, Waldemar, Filinto Barros, Coutinho, Telmo, Eduardo Fernandes”.
O leitor pode avaliar o chorrilho de disparates desta lista.

Para Luiz Aguiar, o PAIGC fazia incursões e dispunha de permanência temporária na Guiné. As flagelações eram contra tropas em movimento, o que é de risota, as temíveis flagelações eram ao cair da tarde e durante a noite e em destacamentos fixos. Vem depois a tese mirífica que o PAIGC nunca conseguiu desalojar os soldados portugueses dos seus campos fortificados nas regiões fronteiriças. Quem informou Luiz Aguiar informou mal, foram abandonadas posições por insustentabilidade, recorde-se Mejo, Sangonhá, Cacoca e Gandembel, ali perto do Corredor de Guileje.

Segue-se uma referência à força africana, 20 mil guinéus que constituíam unidades de Comandos, Fuzileiros, Marinheiros, Milícias e Guardas Rurais (?), formando um conjunto aguerrido. Nem uma só referência às companhias de caçadores africanos. O autor questiona se o PAIGC teria prosseguido na sua atividade se não tivesse havido uma transigência por parte dos representantes do Estado português ao subscrever o Acordo de Argel. E responde dizendo que teriam morrido muito menos guinéus de que os milhares que foram fuzilados pelo PAIGC. Os guineenses, diz o autor, sentiam-se bem com a obra de desenvolvimento impulsionado por Spínola: as vias de comunicação, os aeroportos, a assistência médica à população, a infraestrutura do ensino, a preparação técnica.

Porventura para mostrar como a Guiné estava madura para consultas populares e se autodeterminar de vez, o autor dás-nos o rol das associações políticas existentes depois do 25 de Abril: o Movimento Democrático da Guiné, com o Dr. Baticã Ferreira à frente, a FLING (bastante representatividade junto dos guinéus emigrados no Senegal), a Liga Popular dos Guinéus que na apregoada fase de passagem do colonialismo à autodeterminação aceitara colaborar com a Acção Nacional Popular. Diz o autor que tudo implodiu com o Acordo de Argel.

Urgindo pôr termo a esta leitura sobre a descolonização, recorda-se que os autores também falam de Cabo Verde, de S. Tomé e Príncipe, de Timor (é curiosamente o capítulo mais desenvolvido), e de Moçambique. As considerações finais de Luiz Aguiar e parceiros prendem-se com a violação do princípio da autodeterminação violado pelos acordos de descolonização homologados por um vasto número de personalidades, são todos eles os que colaboraram no processo que devem ser responsabilizados. Desta forma vaga e genérica se deixa o leitor ultranacionalista mais do que desorientado. Falamos, é certo, de 1977, hoje tais teses não apoquentam ninguém, como se sabe.
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Notas do editor

Poste anterior de 8 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19082: Notas de leitura (1107): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19094: Notas de leitura (1108): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (55) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Mais outro grande trabalho de BS.

Mas Beja Santos, em 1977, qualquer colonialista ou nacionalista ou como eu, retornado, podiamos chamar os nomes que quizessemos a toda a brutalidade em que abandonámos três países, Angola, Moçambique e Guiné, naquelas tristezas, principalmente Angola com Savimbi e Neto e Holden Roberto, em que cinicamente o mundo fechava os olhos a milhões de angolanos a fugir de norte para sul de sul para norte, completamente desnorteados a esquivar-se a milhões de minas e ao roncar de carros de combate por toda a parte.

BS, estou a falar de milhões de angolanos que nunca conheceram qualquer tipo de guerra até 1974. (alguem que me desminta, que delimito as regiões que só souberam o que foi paz até 1974)

Claro BS, que eram uns sonhadores reacionários quem pensava assim como este autor que eu não conheço, mas conheço a "música", mas pelo menos não era, em 1977, tão cínico como aqueles abrilistas que falavam em "descolonizações exemplares", também em 1977.

Abril, todo o que se queira, mas assistir a gerações de africanos a devorarem-se ferozmente entre si, e nós, tugas, de fora a bater palmas, ponto e vírgula!

Hoje, 2018, até podemos dizer que tudo fica bem, quando acaba bem...para quem sobreviveu.

Quem escreve como este autor, normalmente pouco sabia da Guiné, pouca gente queria saber da Guiné a não ser Amilcar Cabral e os guineenses, quem se dedicou a escrever este tipo de livros, ou viveu ou era natural, da joia da coroa, Angola.

Podia ser branco de I ou de IIª.

Cumprimentos






antonio graça de abreu disse...

Grande Trabalho!
Que Nossa Senhora de Fátima se apiede de tão excelsas almas, tão supinamente inteligentes!
MBSantos for ever!..
Abraço

António Graça de Abreu

JD disse...

Caro Mário,
Não sei quais foram as fontes a que recorreste para este trabalho, mas aqui apenas pretendes destruir um livro que é mais testemunhal do que opinativo. São muitas páginas sobre acontecimentos conhecidos e, se podes colocar algum reserva sobre situação militar na Guiné, ela é aceitável pelo que se passou durante o último ano, exorbitado pelas hesitações de Caetano, que antes disso desistiu de governar, face às divergentes contestações que sofreu dentro do regime.
No entanto, apesar dessa abdicação do governo, o assunto já aqui foi abordado, e suscitou grande polémica.
Sobre os refugiados guineenses nos países fronteiros, eu assisti, e participei nas acções militares em 1970, ao assalto e sequestro de várias populações na região compreendida entre Pirada e Canquelifá, de onde eram conduzidas sob ameaça, e com a morte por miragem em caso de recusa. Assim, deves também acrescentar os refugiados compulsivos, que o eram para sobreviverem.
A questão da descolonização foi bastante debatida em Portugal, e no ultramar, mas o senhor teimoso que governava tentacularmente, nunca cedeu a negócios que imaginava perder, tendo em conta as informações que lhe eram segredadas por ultras racistas, que em geral não conheciam Africa. Como aparentemente também não conheceste, já que Guiné, de todos os pontos de vista, nada tinha a ver com as grandes colónias.
Desses debates sobre a descolonização nos termos do Artº 73ª da Carta, o que poderia ter sido uma excelente oportunidade para o incremento sócio-económico naquelas regiões ultramarinas, durante três décadas, foi Cunha Leal um dos mais sérios patriotas e pensadores activos contra o ditador, sem colocar em causa evidência o abandono dos territórios. Em África, naturalmente, foi também objecto de conversas privadas e cautelosas, tanto mais que os locais manifestavam muitas insatisfações sobre, principalmente, o regime cambial, que afectava tanto os particulares como a economia.
Sobre a referência a Timor, não podemos esquecer, que os timorenses queriam permanecer portugueses, e que foi o MFA promover divisões com vista à independência, uma «democrática» maneira de decidir dobre o futuro dos povos.
Sem independência ideológica, e com base apenas nas descrições dos «vencedores», é dos livros que se corre o risco de conhecer a história de modo enviesado e tendencioso.
Com amizade

paulo santiago disse...

Os maoistas arrependidos,hoje a darem voltas ao mundo,podiam substituir a inveja e a soberba por outras qualidades.
Provocações,atrás do teclado,são fáceis.

Paulo Santiago