domingo, 7 de abril de 2019

Guine 61/74 - P19654: (Ex)citações (352): O amendoim ('mancarra'), a semente do Diabo ('Iblissa', em fula) (Luís Graça / Cherno Baldé)


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > BART 2917 (1970/72) > Tabanca fula em autodefesa do Regulado de Badora ou talvez do Regulado do Corubal, como Sansancuta... Crianças.

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Ano
Mil toneladas
Mil
contos
Contos por tonelada
1960
24,0
78,8
3,27
1961
40,0
126,3
3,17
1962
38,7
133,3
3,44
1963
36,6
124,7
3,41
1964
34,0
119,2
3,50
1965
15,2
64,3
4,23

Quadro  - Exportação do amendoim (1960-1965). Há uma evidente quebra das exportações com o início da guerra, e mais acentuadamente em 1965. O valor máximo das exportações, em milhões de escudos, foi em 1962, com um um total de 133,3 (o equivalente hoje a cerca de 54,2  milhões de euros. Em 1965, esse valor baixou para 64,3 milhões de escudos (o que equivaleria hoje a c. 25, 2 milhões de euros. 

Fonte: Adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1996, 44 pp., policopiado.

1. Comentários ao poste P19648 (*)

(i) Luís Graça:

Meu caro Mário: obrigado pro mais esta "pepita de ouro" para a historiografia da presença portuguesa na Guiné... Ao ler o excerto do documento que "descobriste" na Sociedade de Geografia, passo a perceber melhor o sentido da expressão, que ouvi aos fulas do regulado de Corubal, "Mancarra, semente do diabo"... Se o Cherno Baldé me ler, que me corrija... 

De qualquer modo há aqui um grande sabedoria africana, alicerçada na experiência (amarga) da imposição a África, pelo colonialismo europeu, no séc. XIX, da cultura das oleaginosas...

Vd. aqui um excerto de um poste que publiquei há 12 (!) anos, como o tempo passa!(**)


(...) É interessante notar que na mitologia fula a mancarra (amendoím) esteja associada ao Diabo em pessoa (Iblissa).

O cherno Umaru, que dirige uma pequena escola nesta tabanca de Sansancuta, do regulado do Corubal, e que se prepara, como bom muçulmano devoto (Tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de Al-hadj, contou-me, por intermédio do José Carlos Suleimane Baldé (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário – é um dos nossos poucos soldados que sabe ler e escrever português, daí ser soldado arvorado e em breve 1º cabo (...) - contou- me ele a seguinte estória:

- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E, ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ? (...)


(ii) Cherno Baldé:

Caro amigo Luis,

Já conhecia a mitologia fula sobre a origem da mancarra, todavia, vivendo no meio social fula desde a nascença, não me suscitou especial curiosidade porque não há uma nem dez, são centenas de mitologias à volta dos mais diversos assuntos que, à partida, não faziam parte da vida social, económica e cultural dos fulas.

No caso particular da mancarra que os fulas descobriram primeiro no Senegal e depois na região do Rio Grande de Buba (Guinala) é, antes do mais, um produto associado ao homem branco e logo ao Diabo em pessoa. 


Se a este facto acrescentarmos o factor trabalho intensivo que a produção deste produto exige, não é de estranhar que os indígenas tivessem uma clara aversão à sua prática, o que justificaria a sua diabolização.

Já a partir dos anos 50 a sua produção estava tão vulgarizada e dispersa no território, devido à imposição dos impostos de capitação em parte, mas também pelo forte incremento e dinâmica que se assistia no vizinho Senegal, que este velho mito estava morto e enterrado. 


Antes do início da guerra, a principal actividade, na zona leste, estava associada ao seu cultivo e comercialização e, pelo meio, um salto até ao Senegal (durante a campanha sazonal da colheita da mancarra) para os jovens, para angariação de um pé de meia antes do primeiro casamento.

Com o início da guerra, a ida à tropa/milícia substituiu em parte esta prática iniciada desde o séc. XIX e diminuiu a produção deste produto, antes de desaparecer com a independência.

Certamente, o "Iblissa" (o diabo) dos fulas dos séc. XVIII/XIX e XX, está intimamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo internacional na sua frenética voracidade de acumulação do capital e neste sentido emergimos da arcaica mitologia indígena para a realidade do mundo em rápida globalização a que nenhum povo do planeta escapou.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé (***)

_______________

(*) Vd. poste de 4 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19648: Historiografia da presença portuguesa em África (156): Um relato histórico guineense do maior interesse: O documento do capitão Caetano Filipe de Sousa, de 1883 (Mário Beja Santos)

(**) Vd. 14 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2048: Cusa di nos terra (4): Mancarra, semente do diabo (iblissa, em fula) (Luís Graça)

(***) Último poste da série > 6 de março de 2019 > Guiné 63/74 - P19557: (Ex)citações (351): Manel Pereira, amigo e camarada. Reencontro em Monte Real. (José Saúde)

5 comentários:

Antº Rosinha disse...

A pátria de Leopold Senghor que, para além de ter sido chefe de Estado
foi também filósofo, poeta e um ideólogo que sempre entendeu e
valorizou a negritude tendo combatido os milenares preconceitos
racistas, só podem vir reflexões elevadas que consolam a alma, como
por exemplo este significativo poema que transcrevo.

Poema para meu irmão branco
Meu irmão branco...
Quando eu nasci, eu era negro
Quando eu cresci, eu era negro
Quando eu vou ao sol, eu sou negro
Quando eu estou com frio, eu sou negro
Quando eu estou com medo, eu sou negro
Quando eu estou doente, eu sou negro
Quando eu morrer, eu serei negro

E Você Homem Branco...
Quando você nasceu, era rosa
Quando você cresceu, era branco.
Quando você vai ao sol, fica vermelho.
Quando você fica com frio, fica roxo.
Quando você está com medo, fica branco.
Quando você fica doente, fica verde.
Quando você morrer, ficará cinza.
Depois de tudo isso Homem Branco, você ainda tem o topete de me chamar de homem de cor?
Léopold Sédar Senghor

Venderam-me esta, e achei graça!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Ao longo da história dos homens, temos visto casos de "diabolização do outro"... Aliás, há essa tendência, que os historiadores procuram contrariar... Por exemplo, o branco, europeu, colonialista... O capitão Teixeira Pinto, o "herói" das guerras de pacificação de 1913-1915, eram conhecido na Guiné como o "capitão diabo"... São processos de simplificação de reaidades altamente complexas...

O povo, na sua velha sabedoria,diz que o «O Diabo não é assim tão mau como o pintam»... O que quer dizer esta expressão ? No fundo, quer dizer: (i) nem tudo é mau; e (ii) as coisas, mesmo quando são más, ou parecem más, podem ser encaradas de forma positiva...

Não estou a justificar a cultura da mancarra, pelo contrário... Tal como acho que é um desastre a dependência atual da Guiné-Bissau em relação à monocultura do caju... Commo era, nos finais do séc. XIX, a nossa dependência do Vinho do Porto, o nosso grande produto de exportação... Éramos uma "colónia" inglesa: exportávamos vinho do Porto e os ingleses mandavam-nos a sua "quinquilharia" (produtos manufaturados)...

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

"Com o início da guerra, a ida à tropa/milícia substituiu em parte esta prática iniciada desde o séc. XIX e diminuiu a produção deste produto, antes de desaparecer com a independência".


Sobre o paragrafo acima copiado queria esclarecer sobre dois aspectos:

- Embora a ida dos jovens a tropa/milicia, sobretudo na zona Leste (chao fula) tivesse diminuido a mao de obra mais disponivel e capaz para os trabalhos agricolas, o abandono de vastas areas de cultivo, também, deve ser visto como importante factor na diminuiçao da produçao que o quadro apresentado bem ilustra ao longo dos anos, apesar da tentativa de a contrariar com o aumento dos preços.

- A mancarra nao desapareceu da Guiné e, certamente, nao desparecera nos proximos tempos, pois ja faz parte da cultura e dieta local, mas a sua importancia enquanto produto de exportaçao ja pesa muito pouco na economia do pais. Era o que se queria enfatizar no comentario.


Cmpts,


Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rosinha, tem graça... Não nunca vi o "original", em francês, mas tem um piadão... Até pode um poema "pirata" atribuído ao Senghor (, senhor, em português)... Depois de incirenados, no crematório, a mais de 900 graus centígrados, ficamos reduzidos a um mão cheia de cinzas, de cor cinza... Todos nós, homnes e mulheres, brancos e negros, crentes ou não crentes, novos ou velhos, homens ou mulheres, europeus ou africanos... seremos todos iguais no dia da nossa morte, ámen!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rosinha, até tem graça... Não nunca vi o "original", em francês, mas tem um piadão... Até pode ser um poema "pirata" atribuído ao Senghor (, senhor, em português)...

Verdade de La Palisse: depois de incirenados, no crematório, a mais de 900 graus centígrados, ficamos reduzidos a um mão cheia de cinzas, de cor cinza... Todos nós, homnes e mulheres, brancos e negros, crentes ou não crentes, novos ou velhos, homens ou mulheres, europeus ou africanos, ricos ou pobres, seremos todos iguais no dia da nossa morte, ámen!

Esta "verdade científica" não serve de consolo para quem, igual na morte, foi desiqual na vida... Que é o que acomtece com a grande maioria da humanidade...