quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23024: In Memoriam (430): Padre Mário de Oliveira (1939-2022), ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68)


Foto da sua conta no Twitter onde se apresentava desta maneira singela: 
"Presbítero da Igreja do Porto, longe dos templos e dos altares. 
Editor e Director do Jornal Fraternizar online. 
Vivo em Macieira da Lixa, numa casinha arrendada".

1. Morreu o nosso camarada e amigo, padre Mário de Oliveira, também conhecido como o Padre Mário da Lixa  (Lourosa, Santa Maria da Feira, 8 de Março de 1937 - Penafiel, 24 de fevereiro de 2022) (*). 

Estava internado há quase um mês, no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, em Penafiel,  com traumatismo múltiplos, na sequência de grave acidente automóvel, ocorrido em 26 de janeiro último (**),  em Macieira da Lixa, Felgueiras, onde residia desde 2004, sem quaisquer funções eclesiásticas

Ia completar 85 anos. Foi, durante 4 meses (entre novembro de 1967 e março 1968), alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68). Tornou-se depois uma figura pública, antes do 25 de Abril de 1974, na sequência da sua prisão pela PIDE/DGS, por duas vezes, e de dois julgamentos no Tribunal Plenário do Porto. Mas também devido aos seus problemas com a hierarquia da Igreja Católica, e em especial do seu bispo, da diocese do Porto. 

Além de padre, foi jornalista e escritor, autor de várias dezenas de títulos, uma vasta obra de reflexão teológical, espiritual, ética, social, cultural e política.  Era um comunicador nato, e um grande utilizador das redes sociais.  Como padre e cristão, inspirava-se largamente na letra e no espírito do Concílio do Vaticano II. 

Eu, a Alice e outros dos seus amigos, membros da Tabanca Grande, ficámos chocados com a notícia da sua morte inesperada, quando tudo indicava que ele iria recuperar, agora que tinha saído, há dois dias, da unidade de cuidados intensivos, e depois de ter sido submetido, há 10 dias,  a uma segunda intervenção cirúrgica do foro ortopédico.

Durante a sua hospitalização, foi alvo de inúmeras manifestações de simpatia, carinho e afeto, a começar pelo pessoal dos cuidados intensivos do Centro Hospitalar de Tâmega e Sousa, em Penafiel, a quem estamos gratos.  Tem 17 referências no nosso blogue.


2. Da sua página pessoal, antiga (já não está há muito disponível na Net),  retirámos em tempos,  alguns apontamentos autobiográficos que nos ajudam a entender melhor o seu percurso como homem, cidadão e padre bem como a sua curta passagem pela Guiné como capelão militar.

(i) Nascido em 1937, na freguesia de Lourosa, concelho de Santa Maria da Feira, numa família da classe trabalhadora, entrou no seminário em 1950;

(ii) Em 1962, foi ordenado padre, na Sé Catedral do Porto, pelo bispo D. Florentino de Andrade e Silva, Administrador Apostólico da Diocese, que substituira o Bispo D. António Ferreira Gomes (1906-1989), exilado por ordem de Salazar em 1959...

(iii) A partir de 1963 foi professor de religião e moral em dois liceus do Porto;

(iv) Em Agosto de 1967 "foi abruptamente interrompido nesta sua missão pastoral pelo Administrador Apostólico da Diocese, por suspeita de estar a dar cobertura a actividades consideradas subversivas dos estudantes (concretamente, por favorecer o movimento associativo, coisa proibida pelo regime político de então)";

(v) Nomeado capelão militar, "sem qualquer consulta prévia, pelo mesmo Administrador Apostólico", viu-se compelido a frequentar, durante cinco semanas seguidas, um curso intensivo de formação militar, na Academia Militar, em Lisboa;

(vi) Em Novembro de 1967, desembarca na Guiné-Bissau, na qualidade de alferes capelão do Exército português, integrado no BCAÇ 1912, com sede em Mansoa;

(vii) Menos de cinco meses depois, em março 1968, é "expulso de capelão militar, por ter ousado pregar, nas Missas, o direito dos povos colonizados à autonomia e independência", e mandado regressar à sua diocese, sendo "rotulado pelo Bispo castrense de então, D. António dos Reis Rodrigues, como padre irrecuperável ";

(viii) Em Abril de 1968, foi nomeado pároco da freguesia de Paredes de Viadores (Marco de Canaveses), a terra da Alice Carneiro; foi lá que começou a escrever o seu primeiro livro, "Evangelizar os pobres"(Porto, Figueirinha, 1969, 240 pp.);

(ix) Em Junho de 1969 é exonerado da paróquia de Paredes de Viadores pelo mesmo Administrador Apostólico da Diocese do Porto, que o havia nomeado;

(x) Em Outubro de 1969 está a paroquiar a freguesia de Macieira da Lixa (Felgueiras), por nomeação do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes (1906-1989), entretanto, regressado do exílio;

(xi) Em Julho de 1970 é preso pela PIDE/DGS;

(xii) Em Março de 1971 sai da prisão política de Caxias, depois de ter sido julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto;

(xiii) Volta a ser preso pela PIDE/DGS em Março 1973; quando sai em liberdade, em Fevereiro de 1974, é "informado, de viva voz, pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que já não era mais o pároco de Macieira da Lixa";

(xiv) Em 1975 torna-se jornalista profissional, tendo passado por jornais como a "República", o "Página Um" e o "Correio do Minho";

(xv) Em Julho 1995, e a convite do jornal "Público", regressou à Guiné-Bissau, onde permaneceu durante uma semana, "com o encargo de escrever uma crónica por dia sobre o passado e o presente daquela antiga colónia portuguesa" (...). (***)

(xvi) Foi fundador e  diretor do jornal, hoje "on line", Fraternizar. A última edição, nº 174, de janeiro de 2022, pode ser aqui consultada.

(xvii) Foi também um dos fundadores e animadores do Barracão da Cultura, na terra que adotou, Macieira da Lixa, Felgueiras: "O Barracão de Cultura é um espaço multiusos que nasceu com objetivo de promover e divulgar todas as formas de expressão artística de âmbito cultural" (Vd. aqui página no Facebook);

Ver também aqui a nota de leitura sobre o seu livro "“Como eu fui expulso de capelão militar” (Edições Margem, 1995) (****).


(***) Vd.poste de 25 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12897: (De) Caras (16): Quem tramou o alf mil capelão Mário de Oliveira, do BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/69) ?... Não foi o BCAÇ 1912 que expulsou o Mário de Oliveira, a PIDE tinha escritório aberto em Mansoa (Aires Ferreira, ex-alf mil inf, minas e armadilhas, CCAÇ 1698, Mansoa, 1967/69)


(*****) Vd. poste cde 27 de junho de 2005 > Guiné 60/71 - P85: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

7 comentários:

Valdemar Silva disse...

Coitado do Padre Mário de Oliveira, morrer de ferimentos causados por um desastre de automóvel.

Este vai para o céu, talvez muitos de nós o vamos encontrar por lá.

Sentidos pêsames
Valdemar Queiroz

José Teixeira disse...

Ouvi falar do Padre Mário no tempo em que ele era professor de moral no Liceu D. Manuel II Atual Escola Rodrigues de Freitas, nos anos 64/65. Congregava à volta dele um grupo de jovens que o tinham como mestre ativo e era muito querido e respeitado no grupo de estudantes.
Só voltei a saber dele, já depois de eu regressar da Guiné nos primórdios dos anos setenta quando foi julgado no Tribunal de S. João Novo, quando ele era pároco de Macieira da Lixa e o Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes o foi defender dizendo em tribunal que o que se pretendia era julgar o Bispo servindo-se do padre.
Pelos vistos, logo de seguida tirou-lhe o tapete e entraram em conflito nunca mais sanado.
Sei que ia gente do Porto a Macieira da Lixa ; uns para o ouvir e tentar seguir os seus conselhos outros para gravar as homilias de modo a puderem atacá-lo, acusando-o de anti patriota, comunista e outras afirmações insinuações e acusações.
Os esbirros da Pide não se dedicavam só ao Padre Mário. Recordo que o mesmo acontecia na Paróquia de Cedofeita onde oficiavam dois sacerdotes holandeses, os quais, foram acordados de madrugada e colocados na fronteira. Na Paróquia de Miragaia, aconteceu o mesmo cenário e até houve um sujeito que estava a gravar a homilia do Pe. Afonso. Não se conteve e tentou fazer uma homilia patriótica, mas foi posto fora da Igreja pelos cristãos que estavam presentes.
O Padre Mário manteve a sua forma de estar, apesar de perseguido pela hierarquia religiosa antes e depois do 25 de Abril, pelas suas posições criticas e radicais. Como não pediu a redução ao estado laical, foi suspenso. Congregou sempre à volta dele um grupo de Católicos e ainda se reúne e dedicou-se ao jornalismo. Conversei com ele algumas vezes e tenho entre as minhas amizades gente que ainda convive com ele.
Considero o Padre Mário como uma pessoa bem intencionada que se radicalizou, talvez face às injustiças de que se considera vítima na Igreja e tem sido um estorvo para essa mesma Igreja.
Agora que faleceu, é tempo recordar os princípios e valores que sempre defendeu, de paz, justiça e defesa dos mias frágeis da sociedade.
Zé teixeira

José Marcelino Martins disse...

Faz falta, em especial numa diocese que precisa de ser alertada.

Foi dos que lutou sempre pelo lado de dentro.

Condolências.

A. Murta disse...

Tinha uma grande admiração e respeito pelo Padre Mário da Lixa. Era por este nome que, ainda adolescente, lhe ouvia referências (de respeito) por parte dos meus pais quando vivíamos no Norte.

Há uns anos contactei várias vezes com ele (por e-mail?) para me ajudar a localizar um outro alferes capelão, mas sem sucesso, pois era demasiado o desfasamento de idades entre eles. Uma simpatia.

Condolências à família e aos seus colaboradores mais chegados.

António Murta.

Anónimo disse...

Há quase dois anos atrás, o filho do nosso camarada Arsénio Puim, mandou a seguinte mensagem ao Mário de Oliveira_

Miguel Puim
03/05/2020, 03:09
para padremario@sapo.pt


Caro Padre Mário Oliveira:

Espero que se encontre bem. O seu contacto foi me disponibilizado pelo professor Luís Graça, que copio no presente e-mail.

Apresento-me referindo que sou filho de Arsénio Puim, que foi igualmente capelão-militar na Guiné, no caso em Bambadinca. Tal como o Padre Mário, foi um dos padres que levantou a sua voz contra a guerra e estado das coisas, vindo a sair sob detenção da Guiné em 1971. Poderá consultar este texto do valioso blog do Professor Luís Graça sobre o meu pai:
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2009/05/guine-6374-p4412-dando-mao-palmatoria.html?m=1

Encontro-me a reunir testemunhos sobre o meu pai, não tendo absoluta certeza se o Padre Mário se terá cruzado ou tomado conhecimento então da situação do meu pai. Gostaria de obter um testemunho seu sobre o meu pai, caso se tenha cruzado ou tomado conhecimento da situação, ou não sendo o caso, um testemunho seu mais geral sobre ser capelão-militar e opositor à situação, em plena guerra colonial. Não precisa de ser algo extenso (mas poderá sê-lo se entender) ou formal, podendo enviar-me em resposta a este e-mail.

Na expectativa de que terá interesse em deixar um testemunho aguardo a sua resposta. Sendo possível, agradecia o envio até 7 de maio, dado que se encontra prevista para dia 8 a publicação no blog do Professor Luís Graça um conjunto de testemunhos sobre o meu pai, dado que é o seu dia de aniversário. Não sendo possível, poderá enviar posteriormente
Deixo por último uma palavra de apreço por si, embora não o conheça pessoalmente. Li sobre si e outros padres opositores, como Felicidade Alves, Padres do Macuti, missionários italianos, Manuel Vieira Pinto, etc., admirando muito a vossa coragem e exemplo, que foi também o caso do meu pai.

Muito obrigado
Miguel Puim

Anónimo disse...

Intelectualmente honesto, mas afável, o Mário de Oliveira respondeu do seguinte modo ao Miguel Puim (vd. comentário anterior):

padremario@sapo.pt
03/05/2020, 09:39


Meu caro Miguel:

Comovem-me as suas palavras.

Ao seu pai, então capelão militar, ainda o prenderam. A mim, expulsaram-me e não sequer registo há da marosca.

Infelizmente, não conheci o seu pai. Estou a saber agora por si da sua existência e da sua coragem.

Fico feliz, porque houve outras vozes dissidentes do sistema eclesiástico, na altura, amantizado com o salazarismo.

Como não conheci, tão pouco posso testemunhar.

O meu abraço
Mário

José Teixeira disse...


A poetisa Libânia Madureira escreveu.

Hoje, o Pe Mário de Oliveira, deixou de ser visível aos nossos olhos e está agora absorvido pelo encanto de Deus em expressões de infinita beleza... onde não há mais lágrimas ou grito dor…
O momento em que todas as luzes se apagam e o corpo se torna imóvel, não é o fim…mas o início de uma outra vida... O nascimento “Definitivo”!
E…o céu se vestiu de estrelas áureas … de odores e graça, para receber a alma florida, revestida de paz… com que matizou os caminhos da sua vida.
Mesmo desconhecendo o bramido dos ventos, aprendeu a voar. E hoje, de retorno a casa, tomou Deus a sua asa e o fez voar pelos oceanos do tempo… sem partidas nem chegadas… sem fronteiras ou campos demarcados… por entre os lírios perfumados… num voo derradeiro, que ao infinito conduz.
Os braços se abrem, como asas, e se libertam pelo espaço… qual borboleta sobrevoando rios, pelas encostas do tempo, no silêncio das noites que adormecem com a melodia do cântico supremo e notas de brisas sussurrantes que nos falam de ti!...
No seu derradeiro voo de ascensão à “Nova Dimensão”, sente-se que a Vida foi libertada …esta Essência … Graça … esse eflúvio que nos trespassa… num abraço adiado … na noite que continua cintilante à sua passagem… na quietude do oásis esperado…
Hoje, teu “voo” te toma por inteiro, já em espírito de Luz numa voadura de nobre “Cavalheiro” que ao “Infinito” conduz.
Voas sobre nuvens de branda altura, descobrindo sua rota… das demais diferente.
És “Ave” abrindo suas asas à ternura num derradeiro voo entre aurora e poente.
Hoje, num voo definitivo e mais alto, sem alforge, sem prata nem ouro.
Hoje, dia em que Deus tomou tua asa e facultou o regresso a casa… voas livre… sem sobressalto… para onde reina a luz do amor… esse maior tesouro, por ti anunciado!...
A bagagem está pronta, para a viagem da transmutação… e no silêncio dos versos, repousam apenas as memórias, transcritas no brilho cristalino, como diamante… ondulando pelo cosmos… d’uma estrela em ascensão…
É a hora em que o olhar, é capaz de olhar as Estrelas, agarrá-las e vestir-se de luz!....
Hoje, é a noite em que o Universo te recebe e te abraça. É a noite abençoada. É a noite do nascimento definitivo. A noite dos sonhos cintilantes, sem horas... sem gemidos…
Não morreste… apenas deixaste de ser visível aos nossos olhos… e O Ser, ontem plantado, sob o signo da serenidade melódica…. perfumado de rosas brancas … permanecerá para sempre nos nossos corações e de quem contigo (con)viveu!…
Até um dia, meu querido amigo/Irmão
Libânia Madureira