quinta-feira, 4 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico


O barbeiro-sangrador,   c. 1805 > Ilustração de James Gillray (1757-1815)  (London, Victoria and Albert Museum). 
Imagem do domínio público. 
Cortesia de Wikimedia Commons.


1. Começámos a publicar, desde de meados de março passado, uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

Às vezes quando a doença e a morte nos batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... E dão-me saudades esses tempos quando, sendo mais novo, escrevia sobre esses temas...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19, eis-nos agora a fazer o luto pela perda recentes de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade  da publicação  deste textos que fomos (re)buscar ao nosso "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos, entre 1961 e 1974.

São textos, com vinte e tal anos, que constavam da nossa antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Contando com a complacência ou até a cumplicidade dos nossos leitores, esperamos, ao menos, que a  leitura desses textos, agora revistos, possa ter algum proveito e dar algum prazer. Para o nosso editor, é também uma forma de continuar a lidar com o seu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que lhe estão próximas.  

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": fez 19 anos em 23 de abril p.p.  E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG


5. Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva 
e do Encarniçamento Terapêutico


(Continuação)

No pós-25 de Abril, numa leitura algo imediatista e datada, recusava-se a ideia de que a grande maioria destes provérbios fosse de origem popular, dada a sua "função de ocultação ideológica" (Gomes, 1974). Na melhor tradição jacobina e anticlerical, via-se aí a língua viperina da "padralhada", dos frades, dos jesuítas, etc. já que o povo não podia ser intrinsecamente... "reaccionário".

Populares ou nem tanto, os provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa não deixam de refletir uma experiência amarga da população, vítima não só de um ciclo infernal de epidemias que durou mais de 400 anos ("Da peste, da fome, da guerra - e do bispo da nossa terra, Libera nos, Domine!") como do uso e abuso, por parte dos praticantes de artes médicas até à alvorada do Séc. XX, de técnicas terapêuticas agressivas, invasivas e de duvidosa eficácia como era o caso da purga e da sangria.

Nesta perspectiva, alguns provérbios podem ser vistos como formas de contestação avant la lettre do encarniçamento terapêutico de que é hoje acusada a medicina defensiva: "Se não morre do mal, morre da cura" (Quadro XIV, em anexo).

Em meados do Séc. XVII, o uso da sangria (ou flebotomia), praticada por cirurgiões e barbeiros-sangradores (uma profissão só extinta entre nós em 1875) tal como a purga ou o clister (ministrada pelos cristaleiros e cristaleiros), generalizara-se de tal modo que dera motivo ao adágio popular: "Em Lisboa não há sangria má nem purga boa"

De facto, havia médicos que num mesmo episódio de doença mandavam sangrar "trinta e quarenta vezes" (Lemos, 1991, vol. II. 37). Sangravam-se 0s ricos e os pobres, os reis e os súbditos, os doentes e os sãos...

Outros provérbios terão uma origem semelhante (Quadro XIV):
  • "Arrenego da tijelinha de ouro em que hei-de cuspir sangue";
  • "Como é o braço assim é a sangria";
  • "Dia de purga, dia de amargura";
  • "O que faz mal ao corpo é o sangue";
  • "Sangrai-o e purgai-o e, se morrer, enterrai-o";
  • "Sangrar de saúde".

Além da prática da sangria, o barbeiro também era chamado para tratar dos dentes: "A quem dói o dente vai à casa do barbeiro". E em quase todas as vilas e aldeias deste país, até aos anos 60, ele era para todos os efeitos um verdadeiro praticante da arte médica a quem se recorria para tratar de um abcesso, dar uma injecção, fazer um penso ou receber um conselho. De resto, "é na cara dos pobres que os barbeiros aprendem"...

No regulamento do Hospital Real de Todos os Santos, inaugurado em 1504, estava prevista a figura do barbeiro-sangrador. Competia ao enfermeiro-mor (chefe de uma enfermaria) estar presente "quando algum Enfermo se ouver de sangrar"- tarefa essa que era executada pelo barbeiro-sangrador, externo (Capº XVI) -, devendo para o efeito requisitar ao hospitaleiro as necessárias "ataduras e panos" (p. 75).

A profissão de barbeiro-sangrador só será extinta, oficialmente, por decreto de 13 de Junho de 1870, o que testemunha a longa persistência de séculos da prática da flebotomia entre nós (Pina, 1937.21-22). 

No entanto, a sangria ainda se praticava em Lisboa nos finais da Monarquia!

(Continua) (**)

(Bibliografia a apresentar no final da série)

_____________________

Quadro XIV— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o barbeiro, a purga e a sangria

Objecto

Provérbio

Barbeiro Barbeiro- Sangrador Dentista

 

  • " A quem dói o dente vai à casa do barbeiro"

  • "A quem dói o dente vai a dentuça" (Séc. XVI)

  • "Da vida alheia é mestre o barbeiro"

  • "Dente fora cangalhão na cova"

  • "É na cara dos pobres que os barbeiros aprendem"

  • "Guarde-nos Deus de oficial novo e de barbeiro velho"

  • "Quando Deus tira os dentes, alargar a goela"

  • "Quando Deus tira os dentes, endurece as gengivas"

  • "Quando dói o dente é que se vai ao dentista"

Purga       Sangria

  • "Como é o braço assim é a sangria"

  • "Dia de purga, dia de amargura"

  • "Dia de tosquia, dia de sangria"

  • "Em Lisboa não há sangria má, nem purga boa"

  • "Mais vale suar que enfermar"

  • "Não é sangria desatada"

  • "Quando se está esmagado não se chora, sangra-se"

  • "Sangrai-o e purgai-o, e, se morrer, enterraio-o"

  • "Sangrar de saúde"

  • "Sangria que no princípio da manhã é salutífera, por ventura sucede ser mortal na declinação do dia"

  • "Um ar purgado, morte ao cabo"

Sangue

  • "Arrenego da tijelinha de ouro em que hei-de cuspir sangue"

  • "Bebe vinho branco de manhã e à tarde tinto para teres sangue"

  • "Dar o sangue das veias" (Séc. XVII)

  • "Ficar sem pinga de sangue"

  • "Mais vale onça de sangue que libra de amizade"

  • "Não quero escudela de ouro em que cuspa sangue"

  • "O bom vinho faz o bom sangue"

  • "O que faz mal ao corpo é o sangue"

  • "O sangue se herda e o vício se pega"

  • "Sangue pela boca nem das gengivas"

  • "Sangue quer sangue, sangue quer vida"

  • "Todo o sangue é vermelho"

____________ 

Nota do editor:

(*) Vd. postes de:




20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

(**)  Último poste da série > 10 de abril de  2023 > Guiné 61/74 - P24214: Manuscrito(s) (Luís Graça) (222): Circadiana, a vida

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Amigos do Arquivo de Penafiel

SEGUNDA-FEIRA, 16 DE MAIO DE 2016
Bonifácio da Cruz: Barbeiro-sangador

A necessidade de privar com um barbeiro-sangrador, levou a misericórdia, em maio de 1699, a aceitar como irmão de menor condição, Bonifácio da Cruz. No seu registo de aceitação, o escrivão da santa casa explicitou o motivo que os levou a aceitarem o barbeiro-sangrador. Bonifácio era oficial mestre barbeiro e sangrador, possuía tenda própria e seria de muito préstimo para os pobres que se curavam no hospital, bem como, para os pobres do rol, que se tratavam em suas casas. A sua admissão a irmão foi aprovada por unanimidade, mas com condições.

A profissão de barbeiro-sangrador era considerada mecânica e causava uma certa repugnância aos estratos sociais mais elevados, pelo facto de contactarem com o sangue e humores corporais dos outros.

Trazer este indivíduo para o meio dos nobres, clérigos, doutores, mercadores e donos de tendas de ofícios considerados mais dignificantes, como os violeiros, alfaiates, espingardeiros, tinha um objetivo bem preciso. A condição apontada pela misericórdia era que o mesmo acudisse ao hospital ou aos pobres do rol sempre que os serventes da casa o chamassem.

Bonifácio da Cruz comprometia-se, assim, a trabalhar gratuitamente para a irmandade, que já não teria que pagar a um sangrador externo pelos serviços. O referido barbeiro-sangrador passava a fazer parte da mais importante e prestigiada confraria da localidade e relacionar-se-ia com a elite penafidelense. Ao servir gratuitamente os mais pobres, o barbeiro estava, por um lado a exercer uma atividade misericordiosa, a ser um benfeitor e esta atitude aligeiraria as suas penas, quando chegada a hora da morte e tivesse que responder perante Deus. Para além disso, estava a prestar um serviço gratuito a uma irmandade conceituada, que haveria de não esquecer os seus préstimos e numa altura de aflição podia valer-lhe. Por outro lado, conhecia mais pessoas, muitas abonadas que, quando necessitassem de sangrias, a ele haveriam de recorrer.

Publicada por Amigos do Arquivo de Penafiel à(s) 14:47

https://arquivo.pt/wayback/20160530140431/http://amigosarquivopenafiel.blogspot.pt/search/label/barbeiro-sangrador

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Almocreve das Petas

https://arquivo.pt/wayback/20131110105402/http://almocrevedaspetas.blogspot.pt/search/label/Sangradores


QUINTA-FEIRA, 16 DE OUTUBRO DE 2003 > BARBEIROS E SANGRADORES

(...)

"In illo tempore, naqueles tempos quem sangrava os humanos era o barbeiro-sangrador, mas tinha de registar na câmara a sua carta e esta só a podia obter em Lisboa depois de examinado e aprovado pelo cirurgião-mór. Falta ao barbeiro sangrador ainda uma condição importante, conhecer bem e sujeitar-se inteiramente ao Regimento da sua arte.

O de Coimbra sumiu-se, mas existe o de Lisboa, publicado com outros pelo professor Virgílio Correia. Segundo nele se lê, todo o barbeiro sangrador tem de possuir no seu arsenal ... cirúrgico duas lancêtas estreitas para os meses de Verão e duas largas para os de Inverno; um espinho de lanceta; um sarjador para sarjar e sarrafar, sem ponta; uns pós restrictivos para estancar «qualquer fluxo de sangue»; duas ventosas muito pequenas para o pescoço, duas meãs, duas grandes e uma muito grande composta para barriga. Sobretudo, que não sangre sem indicação médica, mesmo que o doente o peça.

Abusou-se da sangria; Gil Vicente meteu-a a ridículo e mais tarde Molière troçou-a a bom troçar. Sangrava-se para se curar, sangrava-se para se prevenir a doença e até se sangrava para se manter a saúde: sangrar-se em saúde é daí que vem. Era o delírio vermelho (...) a nossa Câmara entendeu, honra lhe seja, que devia pôr um freio aos desmandos, obrigando sob pesada multa os barbeiros a só sangrarem sob autorização clínica e a recolherem o sangue não em malgas, mas em tijelinhas, para não excederem «as onças prescritas pelo medico.»

«Nesta câmara (6 de Março de 1574) se praticou que era grande prejuízo para a saúde, os barbeiros e sangradores, que sangram, tomarem o sangue dos doentes e das pessoas que se querem sangrar, em malgas grandes, com o que podem mal saber a quantidade das onças, que os médicos mandam tirar, pelo que acordaram e mandaram que nenhuma pessoa que sangrar, sangre senão por conselho do medico e será obrigado a trazer tijelinhas em que o tire e não em malgas grandes, nem outras vazilhas, sob pena de quem o contrario fizer, pagar 2.000 rs., a metade para esta cidade e a outra para quem os acusar. Pêro Cabral» (...)

Resta-nos saber como era redigida a carta de barbeiro sangrador. Ei-la:

«Gaspar da Costa cirurgião mor del rei nosso senhor etc faço saber a todos los correjedores autoridades juízes justiças oficiais e pessoas a que esta minha carta for mostrada e o conhecimento dela com direito pertencer que eu dou logar e licença a Francisco Rodrigues morador em a cidade de Coimbra filho de Francisco Rodrigues que ele possa sangrar sarrafar tirar dentes lançar ventosas por todos estes reinos e senhorios porquanto o examinei e achei auto e suficiente para usar do que dito é e portanto requeiro às ditas justiças da parte do dito senhor que por o dito Francisco Rodrigues asi usar do que dito é o não prendam nem mandem prender nem lhe consintam ser feito nenhum desaguisado nem em razão antes livremente o deixem usar do dito oficio de sangrador como dito é e assim o dito Francisco Rodrigues não sangrará pessoa alguma sem mandato do mestre sob pena de dous marcos de prata. Antº Borges; pg 50 rs. A qual foi apresentada em Câmara aos oficiais dela aos 16 de Julho de 1574»

[A. Da Rocha Brito, in Gazeta de Coimbra, 30/03/1944 ?]