sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25203: Efemérides (429): Foi há 50 anos, em 22/2/1974, que saiu o livro de Spínola, Portugal e o Futuro um livro que se tornou um "best-seller", que toda a gente comprou e que poucos leram e entenderam, mas que abalou um regime...


Capa do livro, cortesia da Visão (2009)

1. Há 50 anos,  a 22 de Fevereiro de 1974, era publicado  o livro Portugal e o Futuro, do General António de Spínola sob a chancela da editora Arcádia, Lisboa, e por iniciativa do editor Paradela de Abreu.

Nele se defendia, no essencial, a ideia de que a solução para o "problema ultramarino" passava por outras vias que não a sorte das armas, e nomeadamente a solução política, com a concessão de progressiva autonomia para as "províncias ultramarinas", integradas numa espécie de "Commonweath" lusófona tardia (a chamada "tese federalista").

O livro não foi censurado, e a alguma comunicação social, sujeita à censura ("Exame Prévio"), pôde noticiar o seu lançamento. (Portugal continuava a ser um "país amordaçado" desde 1926, mas jornais como a "República" e o "Expresso" deram cobertura ao evento, transcrevendo inclusive alguns excertos; no "Diário de Lisboa", por seu turno, não há uma única linha sobre o acontecimento, nas edições de 22, 23 e 24 de fevereiro de 1974.)

Marcello Caetano, apesar da irritação do Ministro do Ultramar e da clara oposição do Presidente da República, Américo Tomás, não quis impedir a saída do livro (receoso das repercussões que a notícia da proibição poderia ter, a nível nacional, nomedamente entre os militares, e sobretudo a nível internacional) que foi autorizada pelo nº 1 da hierarquia militar, o CEMGFA, o gen Costa Gomes. 

O livro, de 248 páginas, tornou-se um best-seller. Mais de 300 mil exemplares foram vendidos, num ápice, dentro e sobretudo fora do circuito normal do mercado livreiro. Toda a gente o comprou. Mas poucos leitores, na época, terão tido a pachorra de o ler de fio a pavio e de entender e analisar as suas propostas (de algum modo, tardias, desfasadas e confusas) para pôr fim à "guerra de África" e repensar o regime... 

Confesso que eu fui um deles. A obra era um estopada. E estupidamente não me aprecebi da sua importância naquele momento da nossa História. Hoje dou a mão à palmatória. E prometo ir ao sótão  limpar-lhe o pó. 

É daqueles livros que se vende ainda hoje nas feiras de velharias, em saldo, a preço de um euro ou menos. Mesmo assim foi seguramente um dos livros que abalou uma época e um regime, e  ajudou a acelerar o caminho para o 25 de Abril. (Os oficiais das Forças Armadas, mais conservadores,  cautelosos, reservados, mas descontentes com a sua carreira devorada por uma guerra interminável), acabaram também por aderir às "teses spinolistas"; o livro deu-lhes respaldo moral e disciplinar para o seu descontentamento e até revolta, como aquela que, logo a seguir à demissão de Spín0la e Costa Gomes, foi ensaiada no dia 16 de março de 1974, o chamado "golpe das Caldas".

Recorde-se (porque a memória é curta) que, a 17 de janeiro de 1974, Spínola fora nomeado vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, por sugestão de Costa Gomes (CEMGFA). U cargo criado só para ele,  considerado um herói da guerra de África e com muito prestígio... Menos de 2 meses, a 15 de março, os dois generais serão afastados dos seus cargos (o topo da hierarquia militar) devido à recusa em participar na manifestação de apoio ao Governo e à sua política ultramarina, cena que ficou conhecida como a "brigada do reumático".

A demissão de Spínola e Costa Gomes (que teve amplo eco nos jornais da época, apesar da censura), acabou por ser um tiro de ricochete, isolando, desautorizando e fragilizando ainda mais o Govermo de Marcello Caetano que  já em 28 de fevereiro havia apresentado um pedido de demissão ao Presidente da República, Américo Tomás (que obviamente o recusou). 

Já antes, no dia do lançamento do livro, em reunião com Costa Gomes e Spínola, Marcello Caetano terá oferecido de bandeja o poder aos dois generais (que obviamente recusaram o presente envenenado).

Ao que se sabe hoje, Spínola oferecera um exemplar autografado a Marcello Cateano e pediu a sua autorização para o publicar, como mandavam as regras (sendo um militar no ativo, e n.º 2 da hierarquia militar, o vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas). No dia 20 de fevereiro de 1974, o professor e primeiro-ministro acabou de ler o livro. Confessaria, mais tarde, nas suas memórias, que o golpe militar que ele pressentia e temia há meses, já estava em marcha e era imparável. 

Há 15 anos atrás, o jornalista Luís Almeida Martins publicou, a propósito desta efeméride, na revista Visão,  (edição nº 833, de 19 a 25 de Fevereiro de 2009) um artigo com o título (irónico), "Portugal e o passado", e que termina com este parágrafo:

" (...) Poucos dias antes de morrer, a 13 de agosto de 1996, com 86 anos, [Spínola] foi visitado no Hospital da Estrela por Nino Vieira, presidente da Guiné-Bissau e antigo comandante do PAIGC. Ao sair do quarto, Nino trazia uma lágrima no olho. Os guerreiros têm uma conceção própria da vida e da morte. Não sabem é ler o futuro, como o livro de Spínola demonstrou à saciedade"... 

Curiosamente, Nino voltaria a referir este episódio, na audiência que concedeu, doze anos depois, em 6 de março de 2008 (a um ano de ser brutalmente assassinado), a um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guiledje, em que eu estava presente, e que registei.

De qualquer modo, o livro "Portugal e o Futuro" abalou Marcello Caetano e o seu regime, defendia, ha 15 anosm  o jornalista da Visão;

"Pela primeira vez, um oficial-general atrevia-se a discordar da doutrina oficial"... 

E não era um oficial qualquer. 

(...) O homem do "pingalim e monóculo" ganhara uma "aura castrense talvez só suplantada pelas de Mouzinho de Albuquerque e de outros chefes militares das campanhas coloniais da viragem do século. Dando uma no cravo e outra na ferradura, combatia a guerrilha, enquanto, de pingalim na mão, organizava congressos dos povos guineenses e delegava poderes nas autoridades tradicionais. O seu monóculo tornou-se lendário. Alcunharam-no de 'Caco' e tinha uma corte de admiradores de camuflado que bebiam as suas palavras" (...).
 
O alcance efectivo da obra de Spínola e da sua tese do federalismo e do "diálogo" com os movimentos nacionalistas africanos, a começar pelo PAIGC (como solução política para uma guerra que não poderia ter solução militar), ainda é hoje objecto de discussão e controvérsia  entre especialistas, historiadores e antigos combatentes (como é o nosso caso).

De qualquer modo, importa sobretudo sinalizar a efeméride, mais uma vez. Ao fim e ao cabo, Spínola foi o comandante de muitos de nós, entre 1968 e 1973... e a ninguém deixou indiferente, pela positiva ou pela negativa, a sua figura, a sua conduta, o seu pensamento, a sua estratégia, o seu percurso. Um lugar na História da nossa Pátria ninguém lho tira.
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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25196: Efemérides (428): Homenagem aos Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar do Concelho de Resende - Freguesia de Anreade, no dia 13 de Abril, pelas 15h00 e S. Romão de Aregos, no dia 4 de Maio, à mesma hora

4 comentários:

Joaquim Luis Fernandes disse...

Nunca saberemos como teria sido a descolonização nas Províncias Ultramarinas se as teses do Gen. Spínola tivessem sido seguidas e feito História. Qual teria sido o seu contributo para a paz, o desenvolvimento e a felicidade dos povos que sofreram durante mais de uma dúzia de anos os horrores da guerra.

A opção dos Capitães de Abril, depois de aproveitarem o respaldo que Spínola lhes ofereceu, foi rejeitarem a sua pessoa, o seu pensamento político e as soluções que propunha para a descolonização. E nem terão tentado o diálogo e ajustarem as suas posições, em soluções próximas.

A opção foi o abandono das terras e povos que antes tinham estado sob a administração portuguesa, com a entrega do poder aos partidos que antes tinham combatido.
Curiosamente, ou talvez não, esses partidos que tomaram o poder, implantaram nos seus países "independentes" regimes políticos ditatoriais, de orientação marxista-leninista, configurados com a URSS, potência de quem tinham, recebido apoio durante a guerra e que agora se apresentava como seu credor.

E a história dessas independências e do que elas ganharam e perderam para os povos que albergavam, neste meio século, sabemos qual foi.
Como teria sido, se o caminho tivesse sido outro?

Nunca o saberemos, mas afigura-se-nos que teria sido muito diferente e para muito melhor.
Pelo menos, seria menos contraditório e não teria esta mazela, a lembrar traição, por se terem abandonado os povos e os militares e milícias que confiaram e foram leais a Portugal.

Atentamente
JLFernandes

Anónimo disse...

Li o livro que me mandaram pelo correio, num fôlego, e disse de mim para mim: dentro de pouco tempo vamos ter uma revolução e a guerra vai acabar.
Se me perguntarem se tinha sido melhor ( para os territórios em guerra) um acordo de cessação das hostilidades e adopção de um período de transição de vinte anos que permitisse a mobilização de todos os meios humanos e materiais para o desenvolvimento, tendo em vista a autodeterminação e (ou) independência, responderei, sem hesitação : sim. Mas jamais no-lo permitiriam os guerrilheiros, sedentos de ocuparem o poder, os lugares e as remunerações.
Um grande abraço.

Carvalho de Mampatá

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meus amigos e camaradas, o livro foi sobretudo uma "pedrada no charco"... A "questão do ultramar" era um tabu!... Os portugueses estavam "proibidos" de discutir o seu futuro, e muito menos o presnete... Os senhores coronéis do lápis azul estavam atentos à mais pequena notícia relativa ao ultramar ou às forças armadas... Era tudo tratado com pinças... Entrevistas com Spínola em 1973, ainda em Bissau, com jornalistas do "Expresso" e do "Diário de Lisboa", foram proibidias ou censuradas de alto abaixo... Nada nem ninguém podia pôr em causa o esforço da Nação de prosseguir a guerra até à vitória final!

O que importa sublinhar foram as ondas de choque que a publicação do livro desenacadeou, não tanto pelas suas propostas (vagas, difíceis de operacionalizar...), como sobretudo pelo seu autor!... O Spínola não era um general qualquer!...

Acho que temos de reler o livro,e levá-lo... a sério! 50 anos depois já não suscita qualquer entusiasmo, é evidente.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Os jovens de hoje não conheceram o país onde nasceram os seus pais. E não sabem, por exemplo, que cabiam aos militares (em gerais coroneis bares erva ou na reforma) o odioso papel de censores de livros, jornais, filmes, peças de teatro.

Desde 1926 até ao 25 de Abril!...Eram eles que formatavam o nosso pensamento e capacidade de expressão, balizando e vigiando as nossas fontes de informação e conhecimento... Um jornal como o "Expresso" em 150 edições teve 3600 cortes!