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sexta-feira, 2 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26753: VI Viagem a Timor Leste: 2025 (Rui Chamusco, ASTIL) - IV (e última) Parte: de 9 a 19 de abril de 2025: um país, de cultura riquíssima, onde algumas das suas melhores tradições, como o Fase Matan, correm o risco de perder



A foto e a legenda é da página do Facebook do Nunes José Nunes Martins, com data de 27 de março ·

"Imagem com história verdadeira:  Primeiro Ministro de Timor-Leste, Xanana Gusmão, visita surpresa e celebra com a comunidade o 7ºaniversário da Escola São Francisco de Assis "Paz e Bem". Rui Chamusco sorri ao ver Xanana com tanto interesse na concertina aos ombros da menina que alegremente o recebe.

A imagem vale por mil palavras! (Nota: trata-se uma das  imagens oficiais do Governo de Timor!)



Rui Chamusco

1. Mensagem do Rui Chamusco, ainda em Díli, Timor-Leste, mas que entretanto já regressou à sua casa, na Lourinhã, Portugal, a 20 mil km de distância 

Data - sábado, 19/04, 13:00 (há 12 dias)
Assunto - Crónicas de Tiumor-Leste

Estimados amigos,

Desde a Terra do Sol Nascente,  os meus votos de Boas Festas de Páscoa. 

Que a alegria de Jesus Ressuscitado seja a nossa força e esperança num mundo melhor.

Quase a chegar ao fim desta minha estadia, envio-vos um cheirinho das últimas crónicas que escrevi.

Um grande abraço,  Rui

 
2. O Rui  Chamusco é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio de 2024. Tem mais de 60 referências no nosso blogue.  Natural da Malcata, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. É um dos cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra, com outros amigos, o luso-timorense Gaspar Sobral e a  malcatense  Glória Sobral. A ASTIL fundou em Boebau, nas montanhas de Liquiçá, uma escola, a ESFA (Escola São Francisco de Assis), em 2018. Voltou a Timor-Leste, em 2025, pela sexta vez. 



VI Viagem a Timor Leste: 2025 (Rui Chamusco, ASTIL) - IV (e última) Parte: de 9 a 19 de abril de 2025: um país, de cultura riquíssima,  onde algumas das suas melhores tradições, como o Fase Matan, correm o risco de perder



 
09.04.2025, quarta – As promessas são para ser cumpridas…

A seguir ao VII aniversário da ESFA prometi que eu voltaria a passar mais uns dias em Boebau antes de regressar a Portugal. E assim fiz… No dia 9 deste mês eu mais o inseparável Eustáquio (o que é que eu aqui faria sem este precioso amigo?), lá vamos nós outra vez a caminho da Escola São Francisco de Assis. E, já sabemos, que cada vez que vamos ou vimos de Boebau, temos de contar com as dificuldades e os imprevistos do percurso.

Estes dias tem chovido muito por cá, e há que contar com os buracos mais acentuados, com os lamaçais, com as terras que deslizaram para os caminhos, cvom os montes de pedra e areia que depositaram à borda desses caminhos devido às obras em curso promovidas pelo programa de desenvolvimento rural que está a ser implementado pelo governo timorense. Apesar de alguns melhoramentos já verificados, o baloiço e a aflição dão sempre cabo deste corpo que está cada vez mais escangalhado e em que o Pdi (Porra da Idade) faz questão de se fazer notar. Mas pronto. 

Como disse a primeira vez que a professora Cristina visitou Boebau,  “ vale a pena tanto esforço porque estas paisagens enchem-nos a alma. Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”… 

Então cá estamos nós a dar apoio a esta comunidade escolar de alunos, professores e todos aqueles que de uma forma ou de outra estão envolvidos neste projeto solidário.


10.04.2025, quinta – Outra vez com as portas fechadas

A casa dos professores está cheia. Desta vez pernoitamos nela seis pessoas, umas a dormir nos colchões que são três, outras a dormir no chão. Eu sou sempre um privilegiado, talvez por consideração em ser velho ou por respeito ao abô Rui, destinam-me sempre um quarto com colchão. 

Até aqui tudo bem. O pior é quando acontece o imprevisto. Eu tenho o costume, quando estou em Boebau, de me levantar várias vezes durante a noite para passear, para ver as paisagens ao luar, para ouvir as ribeiras que passam de ambos os lados, ou até para outras coisas. Ontem já passava da meia noite quando, regressando desse passeio noturno, me preparava para entrar de novo em casa. Então não é que a porta, que eu deixei aberta quando saí, estava bem fechada à chave? 

Que grande “tampa” me deram. E eu a pensar quem foi, quem não foi e a ter de tomar uma decisão ad hoc. Cá fora está frio, lá para dentro não posso ir, que fazer? Seis ou sete horas ao relento dão cabo de mim. A chave da escola também está lá dentro. E o tempo ia passando enquanto maus pensamentos me atormentavam, até que tomei a decisão de dar a volta à casa, e bater suavemente na porta traseira procurando que alguém ouvisse e me abrisse a porta. 

Depois de algum tempo alguém perguntou: 

– Quem é?

– É o Rui!” – respondi eu.

E quando ouço a chave da porta a desandar, todo o meu ser se aliviou. Afinal o Eustáquio e o professor Alarico ainda estavam conversando na sala.

 Quem fechou a porta?– perguntei.

– Foi o Alarico. Ele não sabia que o Tiu estava fora  disse o Eustáquio. 

Depois, foi rir à gargalhada com os comentários que fazíamos. Mas aprendi bem a lição: nunca mais sair à noite sem levar a chave comigo.


11.04.2025, sexta – Histórias da História: o homem que viajou na ponta de canhão

De vez em quando aparecem histórias destas por aqui. Depois de chegarmos a Ailok Laran, e enquanto bebíamos um café, o Eustáquio chamou-me a atenção para o senhor que conversava lá fora com o irmão Mari (Mário). 

– Quem é o Senhor? – perguntei.

– É o Apeo (Pedro)   
– respondeu. 

Então é assim. O Apeo no tempo da invasão indonésia em Timor Leste, não sei se em luta pela resistência timorense ou noutra situação, foi ferido pelos invasores, que atacavam com carros de combate. Como não tinham outro meio de transporte, colocaram o homem ferido na ponta do canhão, e assim foi transportado para Dili a fim se ser assistido. 

Pois o homem que andou na ponta de um canhão, aqui está ainda bem vivo e fresquinho, a fazer visita e companhia a este amigo Mari. Grande Apeo!...

14.04.2025, segunda  – O que fazer, quando não há nada para fazer?



Sim, há dias assim. E então, quando estás em terra estrangeira, privado dos meios de locomoção a que está habituado, ou seja sem o teu carro, dependente de segundos, o tempo que estás parado parece uma eternidade e suscita talentos não habituais que frequentemente não utilizamos, sobretudo a leitura e a escrita. 

E é por isso que estou escrevendo: E é por isso que por ser escritor durante as minhas seis estadias neste país irmão Timor Leste que as minhas crónicas já estão a chegar às trezentas páginas. Não fora Timor Leste o e projeto de solidariedade em que estamos empenhados, nada destes escritos teriam vindo a lume. Até por isso, valeu e vale a pena ter estado em Timor. 

Hoje é Dia de Ramos. E, enquanto eu estou retido neste habitáculo onde escrevo, uma multidão de gente está-se movimentando para participar na celebração deste evento religioso, o primeiro da semana santa que na igreja católica hoje se inicia. Uma semana repleta de rituais, de celebrações que nos levam à festa mais importante do calendário litúrgico: a Páscoa, a Ressurreição, a vida nova.

 Para os que têm fé e acreditam esta é a grande notícia: Cristo venceu a morte. Ressuscitou!... A Ressurreição de Cristo é a garantia da nossa ressurreição. “Se com Ele morremos, com Ele vivemos, com Ele cantamos: Aleluia!”

16.04.2025, quarta – “Rapaziada da vida airada…” / Cerimónia do “Fase Pima”

Hoje foi o dia escolhido pelos construtores da campa da Aurora (a saudos esposa do Eustáquio) para fazer o “remate”. Embora eles já tenham terminado a obra há bastantes dias, só agora a deram por acabada. E eu perguntava ao Eustáquio: 

– Já terminaram ?

– Sim! – disse ele. 

– Então por que deixaram aqui os materiais (baldes, colheres, fios, etc…)? 

– Porque agora tem de haver o ritual da lavagem dos materiais e a celebração. Aqui, em Timor é assim, faz parte da nossa cultura. Temos de fazer a cerimónia do “Fase Pima” (que, traduzido do tétum quer dizer “lavagem das mãos).

Fiquei estupefato, e a pensar comigo: "mais comes e bebes, mais bebedeiras, mais cigarros, mais despesas para a família.” 

Então logo de manhã aparecem os três moços que construíram a campa, que mais não vi fazer do que ouvir músicas nos telemóveis, fumar cigarros e um pouco de conversa. Depois do almoço é que foi a festa. Começaram a juntar-se junto à campa a rapaziada da vida airada, alguns já bem nossos conhecidos pelos seus excessos alcoólicos e pelas figuras tristes que daí lhes advêm. E não foi certamente para rezarem pela alma da Aurora, mas sim para entre copos, alguma comida, música e muitos cigarros, se divertirem e fazerem a festa à sua maneira. 

Coitada da Aurora! O que dirá ela perante estes festejos?... Ela que me perdoe, mas não são nada ao meu gosto. Mas, por respeito aos mortos e aos vivos deste país, que tem a sua tradição e cultura identitária, tenho de respeitar e aceitar que façam assim.

18.04.2025, sexta feira santa – Da terra para o mar…

Há dias assim. Hoje, sexta feira santa, quando tudo fazia crer que não havia nada para fazer, surge um convite depois do almoço. O Fred (Frederico Sobral),  filho do Abeca, veio convidar-me para ir a Casait visitar o projeto de criação de tartarugas, que desde há três anos vem desenvolvendo um pequeno grupo de doze voluntários, em prole da preservação desta espécie marinha. 

Anui sem hesitação, e sem demoras pusemo-nos a caminho no jipe da família,  um Pajero Patrol, que mesmo a cair aos bocados, arrancou todo contente pelas ruas e estradas que nos conduzem de Ailok Laran ao local do destino. 

A título de memória, foi este carro que me(nos) levou a primeira vez a Boebau e que consta em descrições nas Primeiras Crónicas de 2016. Carregado com viajantes como eu, a Adobe, a Glória, o Afun e o condutor Fred, depressa galgou os quilómetros do percurso, deixando-nos mesmo á beira mar, junto às pequenas instalações onde os ovos e as pequenas tartarugas dão início às suas vidas. 

Este projeto que muitos já conhecem porque o visitaram ou viram reportagens televisivas sobre o mesmo, e que, sem qualquer apoio do Estado ou de outras entidades procuram manter apesar das muitas dificuldades, por exemplo muitas das tartarugas bebés morrem por falta de
alimento apropriado (gema de ovos), é um exemplo do empenho e dedicação destes doze jovens que, sem qualquer remuneração monetária, fazem este belo trabalho de procurarem os
ovos na praia, arranjar os tanques incubadores, alimentar os bebés e devolver estas novas criaturas ao seu habitat natural que é o mar. 

De vez em quando são anunciados os dias em que se vai fazer o lançamento no mar, E é então que as pessoas interessadas, e sobretudo as crianças das escolas, se deslocam para vivenciar este espetáculo único. Nós tivemos o privilégio de, orientados pelos amigos Frederico Sobral e N… Braz (dois dos fundadores deste movimento) conhecermos ao pormenor todas estas etapas. 

E confesso que tive uma emoção enorme quando eles apareceram com três pequenas tartarugas, cada uma dentro de uma metade de coco, a nadarem e nos disseram para dar o nome a cada uma. E eu adiantei: Glória, Adobe e Rui, e assim foram batizadas. Depois, cada um de nós com o seu bebé, entramos um pouco no mar e, ao sinal de contagem de três a zero, largamos as meninas carinhosamente, até vê-las desaparecer. 

Foi-nos dito que as fêmeas, porque já está gravado no seu ADN, vão voltar. Que mais não seja para pôr os seus ovos. À semelhança de São Francisco de Assis direi:

“Louvado sejas meu Senhor por todas as tuas criaturas, e especialmente pelas irmãs tartarugas
que são tão lindas e belas. De Ti,  Altíssimo nos fazem lembrar”.

19.04.2025, sábado – O “Fase Matan”

Logo de manhã, ao consultar as notícias no Facebook, deparo com uma publicação do jornal nacional  "Diligente” que me surpreendeu e passo a registar nesta crónicas.

Sendo eu ávido da cultura timorense, não poderia ficar insensível a tal publicação, mais a mais envolvendo rituais em que os protagonistas são as crianças.





"Cresce com dedicação ao trabalho. Aprende a limpar a tua casa, a preparar a terra e a plantar o teu próprio alimento"


Quando ver é mais do que olhar: a tradição do Fase Matan em Timor

Jornal “Diligente” |  Rilijanto Viana | 19 de abril de 2025 (reproduzido com a devida vénia)


Segundo a crença dos timorenses, a tradição do Fase Matan — que significa literalmente “lavar os olhos” — é realizada para garantir que, no futuro, a criança desenvolva uma visão clara e apurada. Além disso, marca simbolicamente a libertação da mãe, permitindo-lhe voltar a sair de casa e usar água fria. Contudo, esta prática começa a rarear na sociedade atual, levando os praticantes a apelar à preservação deste ritual ancestral.

O sol ainda mal iluminava as montanhas de Dare, aldeia situada a cerca de dois quilómetros de Díli. Eram seis da manhã. Crianças corriam e brincavam sob tendas improvisadas; mulheres mais velhas preparavam comida nas cozinhas; e os homens estendiam um tapete à entrada da casa. As famílias começavam a juntar-se para dar início à cerimónia.

Sobre o tapete, foram colocados dois pratos cheios de água, folhas, um anel e uma moeda de dez centavos. Ao lado, também estavam a noz de areca e cigarros tradicionais. Dentro da casa, a tia Rosa de Aleixo trazia às costas um cesto, uma alavanca e uma catana, enquanto o tio Virgílio Fátima carregava o bebé recém-nascido, segurando um caderno e um lápis nas mãos.

Pouco depois, saíram do quarto. Lá fora, todos os familiares se levantaram para os acompanhar, caminhando lentamente até à esteira, colocada a cerca de três metros de distância. Quando chegaram, tia Rosa começou a cortar as ervas com a catana e, com a alavanca, abriu um pequeno buraco na terra, dizendo em voz alta: 

“Cresce com dedicação ao trabalho. Aprende a limpar a tua casa, a preparar a terra e a plantar o teu próprio alimento.”

De seguida, o tio Virgílio sentou-se com o bebé na esteira e, com grande delicadeza, passou as folhas sobre os olhos da criança, dizendo: “Lavo os teus olhos para que no futuro vejas tudo claramente.” Depois, pegou no anel e repetiu o gesto, pronunciando:

“Lavo os teus olhos para que no futuro possas ver toda a tua família, sejas sábio e saibas observar o mundo à tua volta.”

Terminada esta fase, o tio abriu o caderno onde estavam escritos o nome completo e a
data de nascimento do bebé, e murmurou-lhe ao ouvido: “

"O teu nome é Queinaya Viana de Aleixo. Este caderno e este lápis são para tu segurares, escreveres e estudares, para que tenhas pensamentos brilhantes.”

Ergueu então o bebé em direção ao sol nascente, para que recebesse a luz e a energia do novo dia. Após este gesto, tanto o tio como a tia esfregaram os próprios olhos com as folhas, a Moeda e o anel, como sinal de proteção. Os restantes membros da família também repetiram o ritual, esfregando estes objetos nos olhos.


Os familiares presentes na cerimónia também devem lavar seus olhos para os proteger

Foto: Diligente


Um gesto ancestral para proteger e abençoar a criança


 
 A cerimónia do Fase Matan é realizada desde tempos ancestrais. Costuma acontecer três dias ou uma semana após o nascimento. De acordo com a tradição, lavar os olhos do bebé evita que a sua visão se torne “cinzenta” e também assinala o momento em ue a mãe pode voltar a usar água fria.

Além da cerimónia, a ocasião é também um momento de convívio comunitário. Familiares e vizinhos trazem ofertas práticas como sabonete, sabão em pó, fraldas e toalhas para dar as boas-vindas ao recém-nascido.

Afonso Aleixo Bareto, representante da família, explicou que o Fase Matan é uma prática para pedir matak malirin — a bênção natural — para que a criança cresça saudável. “Se não realizarmos esta prática, no futuro a criança poderá não compreender bem o mundo”, alertou.

A cerimónia deve ocorrer antes do nascer do sol, para que a criança aprenda a levantar-se cedo e desenvolver hábitos de responsabilidade. Afonso sublinhou ainda que todos os que assistiram ao parto — seja em casa ou no hospital — devem participar no ritual de lavar os olhos, como forma de proteger a própria visão.

Entre os materiais essenciais estão água retirada diretamente de uma nascente natural, para garantir frescura e pureza; folhas da planta ai lauk, conhecidas pela sua energia vitalizante; um anel ou uma moeda de dez centavos, símbolos de luz e roteção visual e materiais agrícolas e escolares, para orientar o bebé no trabalho e no estudo.

“O ai lauk cresce perto da nascente e é ele que dá vida à água, por isso consideramos
que ele transmite essa energia vital ao desenvolvimento da criança”, explicou.

As mulheres realizam o ritual dentro da casa, simbolizando o trabalho doméstico, enquanto os homens realizam-no no exterior, representando o trabalho agrícola.

O cesto, a catana e a alavanca representam a ligação da criança à agricultura, enquanto o caderno e o lápis incentivam a sabedoria e o estudo. “Se estes materiais não acompanharem o bebé, ele poderá crescer com preguiça de trabalhar e estudar”, afirmou Afonso.


As diferentes práticas do Fase Matan em Timor

Tomás Alves Madeira, de Letefoho, Ermera, explicou que na sua comunidade o Fase Matan é sempre feito de madrugada, para que o bebé receba a bênção da luz das estrelas e do sol. O ritual inclui medir o bebé dos pés à cabeça — gesto simbólico para que a criança cresça saudável e alta — e passar uma moeda de dez centavos nos olhos do bebé.

“É necessário realizar o Fase Matan para que a criança possa receber a luz das estrelas e  do sol, de modo a que os seus olhos fiquem claros e consigam ver tudo com nitidez”, destacou.

Tomás contou que, durante a cerimónia, os familiares colocam água num prato e adicionam uma moeda de dez centavos, que é depois colocada em frente à casa, juntamente com bua malus (noz de areca e betel, em português). 

“Pegamos numa moeda de 10 centavos para passar nos olhos do bebé, para que os seus olhos brilhem como a lua e as estrelas. E não é apenas para proteger os olhos do bebé, mas também para todos os familiares, para que ninguém fique com a visão cinzenta demasiado cedo”, explicou.

Disse ainda que, durante o processo, deve ser escolhida uma pessoa para realizar a medição do bebé, passando as mãos dos pés até à cabeça, com o objetivo de que, no futuro, a criança possa crescer com boa estatura. Após essa medição, a criança é levada para fora de casa para se realizar o ritual do Fase Matan, utilizando a água e a moeda que foram previamente colocadas no prato. “Depois, o bebé é erguido em direção ao nascer do sol, para que possa receber a força e a bênção da luz do dia”, explicou.

Tomás Madeira concordou que o Fase Matan é uma tradição feita para conceder atak malirin (bênção da natureza) ao bebé e que, ao mesmo tempo, serve como um ritual de libertação, permitindo que tanto o bebé como a mãe possam voltar a sair de casa e sentar-se ao ar livre.

João Rui Lemos, de Laclubar, Manatuto, descreveu o ritual como uma espécie de “batismo cultural”. Na sua tradição, além de lavar os olhos, a família entorna água sobre a moleira do bebé e anuncia-lhe oficialmente o nome, geralmente herdado dos avós. Caso o nome escolhido não seja o adequado (por exemplo, se o bebé chorar muito), a família procura outro nome dentro da linhagem familiar.

A pessoa que carrega o bebé: espelho do seu futuro

Os praticantes do Fase Matan acreditam que a pessoa que carrega o bebé durante o ritual influencia o seu caráter futuro. Por isso, a escolha é criteriosa. O homem torna- se o Aman Kous (“pai acolhido”) e a mulher, a Inan Kous (“mãe acolhida”).

Afonso explicou: “Se escolhermos alguém que não respeita os outros ou que tem maus
comportamentos, a criança poderá crescer com essas mesmas características.”

“Se escolhermos uma pessoa que gosta de causar problemas, que não respeita os outros e age com arrogância, esse comportamento refletir-se-á na criança”, disse Afonso. Mencionou que essa situação aconteceu na sua própria família. “A minha filha, agora, fala muito, tal como a tia que a acolheu durante o Fase Matan“, afirmou.

Tomás Madeira acrescentou que, mais tarde, realiza-se outra cerimónia chamada
Oidu (“trazer para fora”), na qual o bebé é levado para fora de casa com utensílios agrícolas
e materiais escolares, reforçando a ligação entre trabalho e estudo.

Disse que a pessoa escolhida para carregar o bebé para fora de casa deve ter boas atitudes e conhecimento, pois, no futuro, esses comportamentos refletir-se-ão na criança à medida que crescer.

“Quando uma criança é traquina e as pessoas comentam que ela não respeita ninguém, as famílias perguntam logo aos pais: ‘Quem levou a criança para fora de casa durante o Fase Matan?’ Se os pais indicarem uma pessoa conhecida por esse tipo de comportamento, então as famílias dizem: ‘É por isso que o comportamento do teu filho ou filha é igual ao dessa pessoa;”, explicou.

Um apelo urgente: preservar uma tradição em risco

Apesar da sua importância cultural, o Fase Matan está a desaparecer, sobretudo devido à modernização e às mudanças nos valores familiares. Afonso Aleixo explicou que, mesmo onde ainda se pratica o barlaque (casamento tradicional), a cerimónia já enfrenta dificuldades.

“Se a casa sagrada deixar de dar importância a estas práticas, a tradição poderá desaparecer. Podemos registá-las por escrito, mas a sua verdadeira força está na prática”, lamentou João Lemos.

Tomás Alves Madeira observou que, em Ermera, a tradição ainda resiste, mas nas famílias que se mudaram para Díli o ritual tem vindo a perder-se.

Todos apelam para que se continue a praticar e a investigar o Fase Matan, para que as gerações futuras possam conhecer e valorizar esta herança ancestral. “Precisamos que os estudantes pesquisem, registem e divulguem esta tradição, porque ela está seriamente ameaçada de desaparecer”, concluiu Tomás.

Entre a luz e a cegueira

Em Timor-Leste, a visão não é apenas física: é também um dom espiritual, um guia para a vida. O ritual do Fase Matan reflete esta conceção ancestral — lavar os olhos do recém-nascido para que ele possa ver o mundo com clareza, sabedoria e responsabilidade.

Este simbolismo ecoa também na literatura timorense, nomeadamente no romance Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo, de Luís Cardoso. A protagonista, Beatriz, nasce com olhos enormes e mágicos, mas é vendada para ser protegida das dores do mundo e por julgarem que ela padece de uma doença. Paradoxalmente, é ela, cega para o exterior, quem melhor compreende as verdades escondidas, enquanto aqueles que mantêm os olhos abertos permanecem presos à ignorância e à ilusão.

Tal como em Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, Luís Cardoso mostra-nos que ver fisicamente não significa necessariamente compreender. A verdadeira cegueira é espiritual: é não querer ver, é não querer saber. Em Timor, nas tradições como o Fase Matan, preserva-se o valor de ensinar a ver para além do imediato — de formar crianças capazes de interpretar o mundo com lucidez e compaixão.

Num país onde a visão representa tanto uma bênção como uma responsabilidade, osrituais e as histórias lembram-nos que, mais importante do que abrir os olhos, é aprender a ver. Como diria José Saramago, no seu Ensaio sobre a Cegueira, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

Texto e fotos:  Rilijanto Viana | Jornal “Diligente” |  19 de abril de 2025  

(Revisão / fixação de texto para publicação no blogue: LG)

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Nota do editor:

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2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Matan-bubu" (olhos inchados) era, em tétum, a alcunha dada aos japoneses pelos timorenses e portugueses durante a ocupação do território, na II Guerra Mundial.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rui, com seis viagens a Timor-Leste, mais de 240 mil quilómetros feitos ("by air"), e muitas centenas de quilómetros a penanets, de motiorizada e de "pickup", por montes e vales no território, dezenas de crónicas escritas e enviadas por e-mail, mais de 300 páginas, centenas de fotos, milhares de emoções, uma nova família, histórias, umas mais felizes, outras mais dramáticas (incluindo as do tempo de ocupação e guerra que viveram os novos amigos)... está na altura de publicares o teu livro. Uma seleção das melhores páginas.

Para além do músico e do grande ser humano que tu és, revelaste-te um escritor de mão-cheia, extremamente atento à cultura, à história e ao quotidiano das gentes de Timor-Leste...

Os timorenses, Liquiçã, Boebau, as crianças, os professores, os membros da ASTIL e todos nós merecemos esse livro. Tu mereces esse livro. Sem esquecer o nosso saudoso Eduardo Jorge que te apresentou o João Crisóstomo...

Uma abraço fraterno e solidário, Luís