Guiné > Fá Mandinga > Novembro de 1969 > O Alf Mil Art Cabral e parte dos seus feros guerreiros do Pel Caç Nat 63, incluindo a cabra e o cão.
© Jorge Cabral (2005)
1. Amigo Luís,
Continuo diariamente a acompanhar o teu/nosso blogue, o qual me propícia um fantástico manancial de recordações. Agradeço que corrijas a "arma" a que pertencia, a fim de não suscitar a ira dos homens dos obuses. Era Alferes Miliciano de Artilharia, especialidade sofrida em Vendas Novas, onde fui aspirante durante largos meses, sendo então amigo de alguns jovens Tenentes que mais tarde tiveram papel determinante na Revolução de Abril. Foi nessa altura que convivi com o Agordela e com o Passos Marques, os quais na Guiné voltei a encontrar.
Envio três "histórias" e duas fotos, e um grande abraço, extensivo ao Humberto [Reis], magnífico fornecedor das imagens dos caminhos e trilhos, os quais ainda percorro na busca das bajudas...
Até sempre em todos os dias.
Jorge
(ex-Alf Mil Art, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)
2. A grande história da guerra da Guiné nunca se fará sem a petite histoire do Cabral, do Jorge Cabral... Ele acaba de me mandar três estórias, qual delas a mais deliciosa, e que eu vou servir como slow food... Meus amigos, isto são pequenas obras-primas de nosso humor castrense, da irreverência e do non-sense que aprendemos a cultivar na Guiné, longe do Vietname, e que nos ajudou a resistir a tudo (sem esquecer o uísque, com ou sem água de Perrier). O absurdo (daquela guerra, do nosso quotidiano, das patéticas figuras de alguns dos nossos comandantes...) só se podia combater com o absurdo do nosso (quase sempre bom) humor...
Aqui vai a primeira estória. Estou grato ao Jorge, por ter arranjado um bocadinho do seu escasso tempo para nós e de se ter lembrado destes gourmands da Guiné...
A mulher do Major e o castigo do Cabral
Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso.
Desta personagem, que depois passou a ordenança do Polidoro Monteiro (1), papel gordo do Biombo, ex-soldado na Índia, falarei um dia.
Feitas as contas, bem acompanhadas de várias libações e seguindo uma hierarquia ascendente, passava ao Bar dos Sargentos, onde continuava a "matar a sede" e só por fim aterrava no Bar dos Oficiais.
Naquele dia quando entrei fiquei surpreendido. Além do simpático e solícito barman, apenas uma branca jovem senhora ali se encontrava. Desconhecendo em absoluto de quem se tratava, reparei que a mesma ficou espantada com a minha aparição. (Na verdade o meu aspecto não era muito civilizado. Enlameado até ao peito – havia atravessado a bolanha de Finete, ostentava um estrambólico bigode e amparava-me num pingalim-bengala prateado).
Logo da porta encomendei:
- Rapaz, uma sandes de chocolate e um whisky quádruplo - e, vendo pelo canto do olho a reacção da dama, iniciei um absurdo monólogo sobre a minha dieta alimentar:
- Ando cheio de fome, os presuntos de macaco não me sabem a nada, a sopa de formigas causa-me azia, até a vinagrada de orelhas de turra me provoca urticária...
O espanto da jovem dera lugar ao pânico, até que entrou o Major, que vendo a mulher pálida e aterrada, se afligiu:
– Que tens querida? Estás mal disposta? Olha, apresento-te o Alferes Cabral, de Missirá.
Não me estendeu a mão, nada balbuciou, saiu quase a correr…
Logo nessa noite recebi uma mensagem:
- Alferes Cabral proibido de se deslocar a Bambadinca, durante sessenta dias.
Cumprido o "castigo" voltei, mas nunca mais vi a mulher do Major. Contaram-me que a avisavam logo que eu entrava no quartel...
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Nota de L.G.
(1) Tenente-coronel, spinolista, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) na altura em que os quadros metropolitanos da CCAÇ 12 foram rendiidos individualmente (Fevereiro/Março de 1971).
Esta figura já aqui foi evocada, neste blogue, duas ou três vezes, pelo David Guimarães e por mim:
Vd post de 26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)
Vd post de 29d e Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2006
quarta-feira, 4 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P401: Pensando... A Guiné que em (re)(vi)vi (2005) (José Teixeira)
Guiné > Mampatá Foreá > Rescaldo de ataque do IN à hora do almoço (3 de Novembro de 1968)
© José Teixeira (2005)
Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970).
Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu, um quarto de século depois, é relatado nesta II parte... A Guiné que eu re(vi)vi (2005) (*):
Durante estes anos passados era esta a imagem que eu retinha da Guiné. Devorava todas as notícias que foram marcando aquela terra vermelha. Mas o sonho mantinha-se.
Precisava de voltar e apreciar as mudanças. Família e amigos apelidavam-me de "doido". Rompi barreiras, aceitei o desafio de um amigo e voltei.
Atravessei Espanha, Marrocos, Mauritânia e Senegal para entrar na Guiné por Pirada (1) e ser recebido como um amigo que volta a sua casa. De facto, senti-me em Portugal.
É verdade que hoje continuo a sonhar acordado e a dormir, com a Guiné, mas uma visão muito mais sadia. Pensava que uma ida aos locais onde vivi, me curaria da sodade ... a Guiné sair-me-ia do pensamento.
Se antes, sentia necessidade de ir buscar "paz" para o meu espírito, agora sinto uma vontade ainda maior de voltar, voltar sempre. Hoje, continuo a sonhar, mas com a outra Guiné. A de 2005 com o mesmo povo, franco, aberto, comunicativo e sobretudo alegre e acolhedor.
Os tempos da guerra passaram e, se deixaram marcas negativas, estas foram abafadas pelo que de bom lhe levamos. Formas de estar, de pensar e agir diferentes. Apesar de levarmos a guerra e o sofrimento, também levámos uma nobreza de alma.
Guiné-Bissau > Buba > 2005 > Chefe da Tabanca Lisboa, a 5 Km de Buba, um antigo centro de treino do IN...
O chefe da tabanca, onde vivem vários antigos combatentes do PAIGC, é por sua vez um antigo paraquedista, formado em Tancos, e que lutou ao lado dos portugueses...
© José Teixeira (2005)
A maior parte dos portugueses que foram chamados à Guiné, eram oriundos do interior de Portugal. Gente humilde e honrada. Gente que soube separar as águas e não ver nos Guineenses um inimigo a abater, mas pessoas que apenas tinham outra cor, outras culturas e hábitos, outra forma de vestir.
A simbiose fez-se naturalmente, sem dificuldades e a imagem que ficou, mantem-se. Somos queridos e bem vindos:
– Tu Português de Portugal, eu Português de Guiné - ouvi dizer algures na nova Guiné que visitei em 2005. Ou:
- Branco ê na volta ! Branco ê na volta mesmo – como me dizia a velhinha mulher do falecido Sambel, Homem Grande de Contabane (1) quando comovida me abraçava.
A visão panorâmica das aldeias locais (tabancas) mudou completamente e também mudou, felizmente, na minha mente.
Vi pistas de aviação foram transformadas em locais de habitação e de produção de Caju, vi casernas transformadas em escolas, por todas as tabancas por onde passei. Os espaços que mantínhamos capinados à voltas das tabancas por questões de segurança, são zonas de habitação e produção de cajueiros (2). As tabancas cresceram, romperam as barreiras de arame farpado, aproximaram-se umas das outras. Não há medos nem silêncios, há vida.
A estrada de Quebo a Mampatá Forea, outrora deserta e minada, quantas vezes, onde havia duas tabancas, Afia e Bacardado, esta última abandonada no meu tempo depois de incendiada pelo IN, é hoje uma passerelle contínua de pessoas em movimento, que se alonga por Uane, Sare Donhã e Samba Sábali. A estrada de Saltinho, Contabane a Quebo, fechada, após a destruição de Contabane(2), é outro corredor de interligação de pessoas.
Guiné-Bissau > 2005
... "Em Abril de 2005 tal como em 1968"...
© José Teixeira (2005)
Buba voltou a ter a vida que nos anais da história retratam como cidade comercial (transformada no tempo da guerra numa pequena povoação com um forte contingente militar – duas Companhias da tropa macaca, uma de Comandos ou Páras e uma de Fuzileiros). Banhada pelo Rio Grande Buba, braço de mar. Porto de ligação com a zona de Tombali. Centro comercial pela sua posição estratégica, cresceu imenso, gerando uma grande avenida que ultrapassa o fim da pista de aviação, actualmente transformada em zona habitacional e de comércio.
A picada para Fulacunda foi activada, dando acesso à tabanca de Sare Tuto, a cerca de 5 Km de Buba, conhecida por Tabanca Lisboa. Outrora base e centro de treino IN. Daí partiam para nos "incomodar" na estrada em construção, nas colunas para Quebo e nas tabancas onde estacionávamos (Buba, Nhala, Samba Sábali, etc.).
Insólito é que o Chefe de Tabanca actual é um antigo paraquedista das FAP [Força Aérea Portuguesa], talvez mais português que qualquer um de nós, até no português que fala sem sotaque local.
Os seus habitantes são ainda, na sua maioria antigos IN. O nosso amigo que se orgulha de ter servido Portugal tirou o Curso em Tancos e seguiu para a sua terra onde durante anos serviu Portugal nos Paras. No fim da guerra viveu clandestinamente durante dois anos e depois voltou... para a mulher que tinha do outro lado da barreira e vivia nesta linda tabanca de Sare Tuto (ou Lisboa), onde ainda hoje, quase só se fala Crioulo ou francês. As suas bases culturais depressa o guindaram ao lugar de Chefe de Tabanca. Tem em funcionamento uma escola de Português e está a criar outra no outro extremo da Tabanca. Conhecedor da mata como ninguém, é um excelente pisteiro, procurado pelos caçadores brancos que vão à Guiné e se instalam no Saltinho.
Aqui neste cantinho escondido da Guiné, tive o meu reencontro oficial com o IN. Quatro homens e mulheres, manga delas, observavam-nos à distância de 2 a 3 metros. Perguntei quem eram e tive como resposta:
- Turras!- Dirigi-me a eles:
- A bó bandido qui taka Buba, tempo di guera ? - Começaram se a rir e um deles retorquiu:
- A bó turra branco qui firma na Buba ? djobe. Manga di tempo qui guera na kaba. Parte mantanhas.
Demos um abraço e eu senti-me um homem feliz!
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Notas do autor:
(1) História que também merece ser contada, mais tarde.
(2) Contabane é uma tabanca que fica entre Quebo e Saltinho (Sinchã Shambel).
O Régulo Shambel teve a visita do IN na noite de São João de 1968. A tabanca foi incendiada e destruída, o Pelotão da CCAÇ 2382 teve de retirar com a roupa que trazia no corpo e a população refugiou-se em Quebo.
Actualmente a sua mulher vive em Sinchã Sambel do outro lado da ponte do Saltinho, cujo chefe é seu filho. Este era milícia em Mampatá Forea e casou com a Nana, filha do Alferes de milícia Aliu Baldé, régulo de Mampatá no meu tempo.
Tive o prazer de conviver de novo com esta mulher que era uma das mais belas bajudas que conheci, e continua a sê-lo, a par da sua amiga e futura cunhada Famara Baldé (minha lavandera).
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Nota de L.G.
(*) Vd a I parte > post de 4 de janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVIII: Pensando... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) (José Teixeira)
Guiné 63/74 - P400: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá (Carlos Marques Santos)
Guiné > Fá Mandinga > 1968 > Depois do ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1968, o Gr Comb do Fur Mil Santos - Os Solitários - é destacada para defender a Ponte do Rio Undunduma (que o IN tentou dinamitar); lá viveu duas semanas em tendas de campanha; mais tarde é destacado para reforçar Fá Mandinga. Ei-lo aqui, em diligência...
© Carlos Marques Santos (2005)
Texto do Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/70), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).
Sabendo que andámos pelos mesmos caminhos - cruzados, concerteza, sem o sabermos -, é hoje bom ver que aquilo que vivemos não esquecemos. É importante não esquecer!
Li no Blogue (Luís & Camaradas) uma referência ao pontão do Rio Undunduma (2). Eu e os meus camaradas da CART 2339 estivemos lá.
Em 28 de Maio de 1969 ouvimos rebentamentos para aqueles lados e pensámos ser na tabanca Moricanhe. Afinal, para nosso espanto, era mesmo em Bambadinca, sede do Batalhão (3).
Dia 29, pela 05.30 da manhã, seguimos para reforço da sede de Batalhão. 15 dias. Salvo erro com o Pel Caç Nat 63 estivemos em tendas (panos de tenda com botões), em vigília constante, àquela que era uma passagem importante [, a ponte sobre o Rio Undunduma, na estrada Xime-Bambadinca].
Guiné-Bissau > Estrada Bambadinca-Mansambo > Novembro de 2000 > Cruzamento em Bambadinca que dá para Xime e Bafatá, e Mansambo) . Foto tirada já na estrada que dá para Mansambo...
Placa rodoviária: Xime, 10 km; Bafatá, 28 km.
© Albano Costa (2005)
Depois disso, outros, e até da nossa CART 2339, estiveram lá. Nós, CART 2339, abandonámos em 12 de Julho de 1969.
Entretanto dali, e depois de uma série de ataques, em Amedalai, Mansambo e Xime, Bambadinca e outra vez Bambadinca, fomos para reforço a Fá (Mandinga), nosso aquartelamento de acolhimento, pois havia indicações de que poderia ser atacado.
Guiné-Bissau > Mansambo > Novembro de 2000 > A pequena tabanca de Mansambo à beira da estrada (alcatroada) de Bambadinca-Xitole-Saltinho-Quebo... Segundo lo fotógrafo, " estas tabancas ficam mais ou menos a 100 metros da porta do antigo aquartelamento de Mansambo (...) O quartel quase desapareceu, só ficou a entrada do destacamento, o resta (os abrigos) está tudo tapado".
O Albano e os seus amigos foram lá encontrar, na sua viagem à Guiné, em Novembro de 2000, um antigo soldado da CCAÇ 12.
© Albano Costa (2005)
O meu pelotão - e eu era o furriel mais velho e por ausência quase sistemática do Alferes, competia-me o comando - intitulou-se de "Os Solitários", pois por norma estava em diligência. Que palavra tão bonita.
Carlos Marques dos Santos
Coimbra
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 28d e Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCIX: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (1): a água da vida
(2) Vd. post de 3 de Janeiro de 2005 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma
(3) Sobre o célebre ataque a Bambadinca, de 28 de Maio de 1968, vd. post de 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
Guiné 63/74 - P399: Pensando... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) (José Teixeira)
Guiné > Ingoré (Cacheu) > Noite de São João > "Cá vai a marcha da tabanca"...
Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (Buba, Empada, região de Quínara))...
Apenas ensombrados pelo brutal episódio do 1º Cabo S... e do prisioneiro senegalês. Na foto, o enfermeiro Teixeira, de óculos, é o primeiro da direita
© José Teixeira (2005)
Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970) (1).
Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu nessas duas épocas diferentes (1968/70 e Março de 2005) é objecto deste texto ("Pensando...") que ele faz questão de partilhar connosco:
Pensando ... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) - I Parte (José Teixeira)
Arame farpado a rodear as tabancas (aldeias). Primeira fiada, segunda fiada. Garrafas vazias penduradas duas a duas para com o seu tilitar servir de aviso aos sentinelas nocturnas. Área capinada, armadilhas de fogo . . .. Recolhas ao interior da tabanca, ao pôr do Sol, silêncios...
As festas naturais da comunidade, momentos de alegria, convivências, partilha de amizades, como festas de nascimentos, casamentos, aniversários, convívios, tudo abafado no silêncio aterrador do medo.
Os ataques às tabancas, as correrias para os abrigos, o dormir com as crianças amarradas às costas para poder salvá-las ao mais pequeno sinal de perigo, os feridos, os mortos, as crianças a chorar...
As colunas sem fim, debaixo de sol abrasador, as emboscadas, as balas a assobiar por cima das nossas cabeças, as granadas com o característico som da saída da boca do canhão, que originava o grito: Aí estão eles !... e vida parava...
Saídas temerárias à bolanha (áreas de cultivo) para a labuta do ganha pão, nos arrozais, mancarrais, milheirais ou pesca, com medo de encontros desagradáveis. Os nacionalistas do PAIGC apelidados de Bandido, para os nativos (e Turras para a tropa branca), podiam surpreender com o Ágára ! ágára! é nosso ! (Agarra! Agarra!, que é nosso). Precisavam de alimentar as suas fileiras com combatentes, com transportadores e mão de obra para a produção de riqueza e sobretudo alimentos (trabalho nas bolanhas controladas). De nada servia dizer que tem família, tem minino prá cuidar.
Assim se vivia na Guiné que eu conheci.
O risco tornava-se maior se o encontro se dava com os tuga (tropa portuguesa), se esta os confundisse com bandido. Possivelmente de nada lhe serviria dizer amigo di tropa ou nem tempo teria para o fazer....
Recordo os dois jovens irmãos cuja captura testemunhei em Ingoré (2), suponho que para lá da fronteira, dentro do Senegal, numa das patrulhas que a minha Companhia fez. Recusaram-se ou não sabiam falar Português ou Crioulo, apenas francês que, julgo, ninguém do comando sabia o suficiente para os entender. O mais velho foi metido numa masmorra com a sua altura, dois metros de comprido por um de largo (vergonha nossa). Tinha apenas uma janela, com chapa em lugar de vidros, por onde entrou e depois se fechou.
Assim ficou no escuro alguns dias à espera de ser enviado para Bissau como turra. Apenas via a luz do sol, quando lhe levavam comida, duas vezes ao dia. Para as necessidades fisiológicas, um balde, que lhe possibilitava uns momentos de luz e ar ao ir despejá-lo à retrete, dia sim, dia não. Até que, cansado de tanto sofrer tentou a sua sorte. Quando lhe foram levar comida, atirou-lhes com o conteúdo do balde à cara. Era a última esperança. Liberdade ou morte. Esta vida, não... Foi barbaramente assassinado pelo Cabo S... com um tiro na boca, dentro da masmorra, momentos depois.
O Cabo S... regressou a Lisboa, passado um mês com a sua Companhia. Não houve processo, inquérito. Tudo tão natural. Aconteceu... Eu estava lá a cinco metros. Suponho que no relatório oficial da sua morte, se o houve, devia constar "morto ao tentar fugir".
O irmão, mais novo (17 anos), não cabia na masmorra. Ficou junto ao refeitório amarrado e guardado por dois soldados, até ir habitar o lugar que seu irmão deixou vago.
Tratei-o de um furúnculo que tinha no peito. Tive oportunidade de conversar algumas vezes com ele em francês. Criei alguma relação de amizade e cumplicidade. Continuei a visitá-lo a pretexto do tratamento. Nas conversas que tivemos confrontei-me com um jovem que tinha bases académicas avançadas para um jovem aldeão do interior da Guiné. As conversas que tivemos sobre vários temas, no meu parco francês confundiram-me.
Comecei por ver nele um possível IN que merecia ser tratado como pessoa, pois estava doente. Com o desenrolar dos contactos, comecei a gostar de conversar com ele. Foi como que uma realidade nova para os meus dois meses de Guiné, alguém que se afirma cidadão do Senegal, que rejeita a guerra e não sabe porque foi preso, pois ia para a sua bolanha no Senegal trabalhar com o irmão. Mas alguém que demonstra conhecimentos de geografia e história.
Isto tudo me leva hoje a acreditar na sua versão de estudante em Dakar – Senegal, a passar férias na aldeia. Foi ocupar a masmorra que o irmão deixara livre depois de ser assassinado. Acompanhei-o até à prisão. Despedimo-nos com um caloroso aperto de mão, como sempre o fazíamos quando a pretexto de "dar mezinho ao prisioneiro" o ia visitar. Uma lágrima teimosa percorreu a minha face, o coração comprimui-se. Não tive a coragem de lhe dizer o que aconteceu ao irmão.
No dia seguinte a masmorra estava aberta. Julgo que o levaram para Bissau para ser interrogado pela Pide.
Perdoem-me, os camaradas tertulianos, este relembrar de situações dolorosas que poderão incomodar. São marcas que ficaram e não se podem esconder, para que a verdadeira história se faça (3).
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
(2) Ingoré: no norte, junto à fronteira com o Senegal, na estrada entre Sedengal e Bigene. Pertence à actual região do Cacheu.
(3) O Teixeira e eu decidimos não identificar o militar português aqui referido. Que fique claro: não era da CCAÇ 2381, era dos "velhinos". Chamámos-lhe apenas S..., que tanto pode ser Silva, como Santos, Sousa ou Silvestre.
Eis a mensagem que mandei ao autor:
"O cabo S... era da tua companhia ? É pseudónimo ? Estará ainda vivo ? Como vão reagir os teus camaradas da CCAÇ 2381 ? O que tu relatas é grave, mas o cabo tinha um furriel acima dele, o furriel um alferes, o alferes um capitão e pró aí fora... Acho bem que estas páginas negras da guerra vejam a luz do dia: julgo que muitos de nós nos comportámos com honra e dignidade, mas também tivemos camaradas que praticaram crimes de guerra e crimes contra a humanidade... O mesmo se terá passado no outro lado... Nem eles nem nós éramos meninos de coro... Louvo a tua coragem ao abordar este assunto delicado, mas não tens que pedir desculpa a ninguém: tu estavas lá. E como homem e como cristão, e até como português e como militar, não podias ficar indiferente...
"Temos,contudo, que ter algum cuidado com a identificação dos camaradas: o cabo S... era apenas uma peça da engrenagem, provavelmente um tipo a quem entregavam os trabalhos sujos... Se S... é pseudónimo temos que dizer isso... Se não é, temos que ver se ainda é fácil a sua identificação... Pode estar vivo, ter mulher e filhos... A solução é não identificar a companhia... Mas tu é que vês qual a melhor solução. O episódio deve ser factualmente relatado e comentado, como tu o fizeste, e bem".
Eis a resposta do José Teixeira:
"O 1º O Cabo S... era da companhia dos velhinhos que fomos substituir. Eu era periquito e não escrevi no Diário com medo de poder ser apanhado.
"Posso informar-te que não [fomos nós], um grupo da minha companhia que estava por perto, junto a mim, não lhe demos um tiro [ao 1º Cabo S...] porque foi logo protegido e afastado, mas houve quem chorasse de raiva.
"(...) Os colegas da CCAÇ 2381, se se lembrarem, concerteza que vão reflectir de novo sobre o assunto, que na altura nos dividiu. Uns diziam "era turra, teve o que merecia". Outros, como eu, interrrogavamo-nos e perguntavamos como se sabia se era turra ou não, dado que não falava português e [fora] capturado sem armas e longe da povoações nativas da Guiné, dentro do Senegal. Aliás, houve outra saída em que também entrámos no Senegal e depois tivemos de fugir a correr, porque o Alferes do meu grupo viu pessoas ao longe e mandou avançar para elas. O capitão mandou regressar ao grupo principal e ...(ouvi eu) disse:
- Você não sabe que estamos dentro do Senegal?! Vamos regressar já à base antes que haja sarilho.
"O Cabo S... acompanhava o soldado que levava comida ao prisioneiro. Iam desarmados, pois a janela estava alta e não era fácil sair.
Os dois apanharam com a penicada e o S... foi buscar a G-3 e disse mais ou menos isto:
- Não queres comer ? Vais comer de qualquer maneira!... - Apontou-lhe a arma à boca e disparou. Creio que o prisioneiro queria dizer qualquer coisa, mas ficou engasgado mortalmente com a bala.
"Pensas bem em não identificarmos a Companhia, que não sei qual era. Podes também [omitir o apelido do cabo], para evitar possíveis dissabores.
"Quanto às consequências possíveis, na altura para o Cabo, tudo foi abafado e fez-se constar que o abatido fora identificado como um perigoso turra.
"Claro que eu, simples cabito enfermeiro, não andava por dentro dos meandros do Comando, pelo que tudo o que possa dizer seria mera especulação. Apenas relato o que vi e senti.
"Há outros casos conhecidos e passados perto de mim, mas que não vivi, logo não posso nem devo falar deles".
Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (Buba, Empada, região de Quínara))...
Apenas ensombrados pelo brutal episódio do 1º Cabo S... e do prisioneiro senegalês. Na foto, o enfermeiro Teixeira, de óculos, é o primeiro da direita
© José Teixeira (2005)
Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970) (1).
Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu nessas duas épocas diferentes (1968/70 e Março de 2005) é objecto deste texto ("Pensando...") que ele faz questão de partilhar connosco:
Pensando ... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) - I Parte (José Teixeira)
Arame farpado a rodear as tabancas (aldeias). Primeira fiada, segunda fiada. Garrafas vazias penduradas duas a duas para com o seu tilitar servir de aviso aos sentinelas nocturnas. Área capinada, armadilhas de fogo . . .. Recolhas ao interior da tabanca, ao pôr do Sol, silêncios...
As festas naturais da comunidade, momentos de alegria, convivências, partilha de amizades, como festas de nascimentos, casamentos, aniversários, convívios, tudo abafado no silêncio aterrador do medo.
Os ataques às tabancas, as correrias para os abrigos, o dormir com as crianças amarradas às costas para poder salvá-las ao mais pequeno sinal de perigo, os feridos, os mortos, as crianças a chorar...
As colunas sem fim, debaixo de sol abrasador, as emboscadas, as balas a assobiar por cima das nossas cabeças, as granadas com o característico som da saída da boca do canhão, que originava o grito: Aí estão eles !... e vida parava...
Saídas temerárias à bolanha (áreas de cultivo) para a labuta do ganha pão, nos arrozais, mancarrais, milheirais ou pesca, com medo de encontros desagradáveis. Os nacionalistas do PAIGC apelidados de Bandido, para os nativos (e Turras para a tropa branca), podiam surpreender com o Ágára ! ágára! é nosso ! (Agarra! Agarra!, que é nosso). Precisavam de alimentar as suas fileiras com combatentes, com transportadores e mão de obra para a produção de riqueza e sobretudo alimentos (trabalho nas bolanhas controladas). De nada servia dizer que tem família, tem minino prá cuidar.
Assim se vivia na Guiné que eu conheci.
O risco tornava-se maior se o encontro se dava com os tuga (tropa portuguesa), se esta os confundisse com bandido. Possivelmente de nada lhe serviria dizer amigo di tropa ou nem tempo teria para o fazer....
Recordo os dois jovens irmãos cuja captura testemunhei em Ingoré (2), suponho que para lá da fronteira, dentro do Senegal, numa das patrulhas que a minha Companhia fez. Recusaram-se ou não sabiam falar Português ou Crioulo, apenas francês que, julgo, ninguém do comando sabia o suficiente para os entender. O mais velho foi metido numa masmorra com a sua altura, dois metros de comprido por um de largo (vergonha nossa). Tinha apenas uma janela, com chapa em lugar de vidros, por onde entrou e depois se fechou.
Assim ficou no escuro alguns dias à espera de ser enviado para Bissau como turra. Apenas via a luz do sol, quando lhe levavam comida, duas vezes ao dia. Para as necessidades fisiológicas, um balde, que lhe possibilitava uns momentos de luz e ar ao ir despejá-lo à retrete, dia sim, dia não. Até que, cansado de tanto sofrer tentou a sua sorte. Quando lhe foram levar comida, atirou-lhes com o conteúdo do balde à cara. Era a última esperança. Liberdade ou morte. Esta vida, não... Foi barbaramente assassinado pelo Cabo S... com um tiro na boca, dentro da masmorra, momentos depois.
O Cabo S... regressou a Lisboa, passado um mês com a sua Companhia. Não houve processo, inquérito. Tudo tão natural. Aconteceu... Eu estava lá a cinco metros. Suponho que no relatório oficial da sua morte, se o houve, devia constar "morto ao tentar fugir".
O irmão, mais novo (17 anos), não cabia na masmorra. Ficou junto ao refeitório amarrado e guardado por dois soldados, até ir habitar o lugar que seu irmão deixou vago.
Tratei-o de um furúnculo que tinha no peito. Tive oportunidade de conversar algumas vezes com ele em francês. Criei alguma relação de amizade e cumplicidade. Continuei a visitá-lo a pretexto do tratamento. Nas conversas que tivemos confrontei-me com um jovem que tinha bases académicas avançadas para um jovem aldeão do interior da Guiné. As conversas que tivemos sobre vários temas, no meu parco francês confundiram-me.
Comecei por ver nele um possível IN que merecia ser tratado como pessoa, pois estava doente. Com o desenrolar dos contactos, comecei a gostar de conversar com ele. Foi como que uma realidade nova para os meus dois meses de Guiné, alguém que se afirma cidadão do Senegal, que rejeita a guerra e não sabe porque foi preso, pois ia para a sua bolanha no Senegal trabalhar com o irmão. Mas alguém que demonstra conhecimentos de geografia e história.
Isto tudo me leva hoje a acreditar na sua versão de estudante em Dakar – Senegal, a passar férias na aldeia. Foi ocupar a masmorra que o irmão deixara livre depois de ser assassinado. Acompanhei-o até à prisão. Despedimo-nos com um caloroso aperto de mão, como sempre o fazíamos quando a pretexto de "dar mezinho ao prisioneiro" o ia visitar. Uma lágrima teimosa percorreu a minha face, o coração comprimui-se. Não tive a coragem de lhe dizer o que aconteceu ao irmão.
No dia seguinte a masmorra estava aberta. Julgo que o levaram para Bissau para ser interrogado pela Pide.
Perdoem-me, os camaradas tertulianos, este relembrar de situações dolorosas que poderão incomodar. São marcas que ficaram e não se podem esconder, para que a verdadeira história se faça (3).
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
(2) Ingoré: no norte, junto à fronteira com o Senegal, na estrada entre Sedengal e Bigene. Pertence à actual região do Cacheu.
(3) O Teixeira e eu decidimos não identificar o militar português aqui referido. Que fique claro: não era da CCAÇ 2381, era dos "velhinos". Chamámos-lhe apenas S..., que tanto pode ser Silva, como Santos, Sousa ou Silvestre.
Eis a mensagem que mandei ao autor:
"O cabo S... era da tua companhia ? É pseudónimo ? Estará ainda vivo ? Como vão reagir os teus camaradas da CCAÇ 2381 ? O que tu relatas é grave, mas o cabo tinha um furriel acima dele, o furriel um alferes, o alferes um capitão e pró aí fora... Acho bem que estas páginas negras da guerra vejam a luz do dia: julgo que muitos de nós nos comportámos com honra e dignidade, mas também tivemos camaradas que praticaram crimes de guerra e crimes contra a humanidade... O mesmo se terá passado no outro lado... Nem eles nem nós éramos meninos de coro... Louvo a tua coragem ao abordar este assunto delicado, mas não tens que pedir desculpa a ninguém: tu estavas lá. E como homem e como cristão, e até como português e como militar, não podias ficar indiferente...
"Temos,contudo, que ter algum cuidado com a identificação dos camaradas: o cabo S... era apenas uma peça da engrenagem, provavelmente um tipo a quem entregavam os trabalhos sujos... Se S... é pseudónimo temos que dizer isso... Se não é, temos que ver se ainda é fácil a sua identificação... Pode estar vivo, ter mulher e filhos... A solução é não identificar a companhia... Mas tu é que vês qual a melhor solução. O episódio deve ser factualmente relatado e comentado, como tu o fizeste, e bem".
Eis a resposta do José Teixeira:
"O 1º O Cabo S... era da companhia dos velhinhos que fomos substituir. Eu era periquito e não escrevi no Diário com medo de poder ser apanhado.
"Posso informar-te que não [fomos nós], um grupo da minha companhia que estava por perto, junto a mim, não lhe demos um tiro [ao 1º Cabo S...] porque foi logo protegido e afastado, mas houve quem chorasse de raiva.
"(...) Os colegas da CCAÇ 2381, se se lembrarem, concerteza que vão reflectir de novo sobre o assunto, que na altura nos dividiu. Uns diziam "era turra, teve o que merecia". Outros, como eu, interrrogavamo-nos e perguntavamos como se sabia se era turra ou não, dado que não falava português e [fora] capturado sem armas e longe da povoações nativas da Guiné, dentro do Senegal. Aliás, houve outra saída em que também entrámos no Senegal e depois tivemos de fugir a correr, porque o Alferes do meu grupo viu pessoas ao longe e mandou avançar para elas. O capitão mandou regressar ao grupo principal e ...(ouvi eu) disse:
- Você não sabe que estamos dentro do Senegal?! Vamos regressar já à base antes que haja sarilho.
"O Cabo S... acompanhava o soldado que levava comida ao prisioneiro. Iam desarmados, pois a janela estava alta e não era fácil sair.
Os dois apanharam com a penicada e o S... foi buscar a G-3 e disse mais ou menos isto:
- Não queres comer ? Vais comer de qualquer maneira!... - Apontou-lhe a arma à boca e disparou. Creio que o prisioneiro queria dizer qualquer coisa, mas ficou engasgado mortalmente com a bala.
"Pensas bem em não identificarmos a Companhia, que não sei qual era. Podes também [omitir o apelido do cabo], para evitar possíveis dissabores.
"Quanto às consequências possíveis, na altura para o Cabo, tudo foi abafado e fez-se constar que o abatido fora identificado como um perigoso turra.
"Claro que eu, simples cabito enfermeiro, não andava por dentro dos meandros do Comando, pelo que tudo o que possa dizer seria mera especulação. Apenas relato o que vi e senti.
"Há outros casos conhecidos e passados perto de mim, mas que não vivi, logo não posso nem devo falar deles".
terça-feira, 3 de janeiro de 2006
Guine 63/74 - P398: A nossa tertúlia e a RDP África (Luís Graça)
Mensagem enviada, por e-mail, em 11 de Novembro de 2005, à RDP África divulgando a nossa tertúlia. Não obteve resposta ou comentário (pelo menos, por por e-mail).
Amigos:
1. As minhas felicitações à magnífica equipa da RDP África, não só pela excelente música que passa, mas também pelas notícas, entrevistas e reportagens de qualidade, referentes aos países lusófonos. Mais concretamente, felicito-vos por dedicarem um programa à guerra colonial (que, contudo, não cheguei a ouvir).
Sou ouvinte, da 2ª circular, da RDP África. Infelizmente o programa não sempre se consegue ouvir on line, em boas condições no meu gabinete de trabalho, no alto da Av Padre Cruz, frente a Telheiras. E fora de Lisboa, não consigo sintonizá-lo quando em estou em viagem. Eu sugeria, à administração da RDP, que apostasse mais seriamente na lusofonia... A língua portuguesa é um trunfo estratégico que não sabemos que temos
2. Aproveito para vos dar conhecimento da existência de um tertúlia virtual sobre a guerra colonial que é já, modéstia à parte, uma referência incontornável para qualquer ex-combatente da guerra colonial na Guiné. Cerca de 40 pessoas [ hoje 60 ], que não se conhecem (a maior parte delas, tendo no entanto estado na Guiné), partilham através de e-mail e da Net, fotos, estórias, emoções, sentimentos e outras memórias. E nem todos foram combatentes. Alguns são naturais da Guiné. Mas todos acreditam , de uma maneira ou de outra, que - como alguém disse - salvaguardar a memória é a melhor maneira de a vida acabar por triunfar sobre a morte: em Bambadinca, em Guileje, em Barro, em Mansambo, no Xime, no Xitole, em Geba, em Bafatá, em Bissau, em Cansissé, em Banjara, em Cantacunda, e em tantos outros lugares que estão na nossa memória, e onde nos batemos, de armas na mão, mas onde ainda hoje se calhar não chegou a paz, a saúde, a educação.
A geração que fez a guerra colonial (como eu, na Guiné, entre 1969/71) ainda não liquidou as contas com o passado e vê, com apreensão, que os jovens lusófonos pouco ou nada sabem deste terrível e longo período, de 1961 a 1974, para não falarmos da outra tragédia que foi o período pós-colonial.
O blogue Luís Graça & Camaradas > Blogue-Fora-Nada e as páginas que dedicamos às memórias dos lugares em Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (1963/74) são apenas um modesto contributo para que os nossos jovens, de Lisboa a Bissau, não digam, quando inquiridos: "Guiné ?... Guerra colonial ? ... Não, nunca ouvi falar!"... E pretendem também ser uma pequena ponte para o futuro dos nossos dois países que a história e a língua uniram indelevelmente.
Mantenhas pa tudus
Luís Graça
Amigos:
1. As minhas felicitações à magnífica equipa da RDP África, não só pela excelente música que passa, mas também pelas notícas, entrevistas e reportagens de qualidade, referentes aos países lusófonos. Mais concretamente, felicito-vos por dedicarem um programa à guerra colonial (que, contudo, não cheguei a ouvir).
Sou ouvinte, da 2ª circular, da RDP África. Infelizmente o programa não sempre se consegue ouvir on line, em boas condições no meu gabinete de trabalho, no alto da Av Padre Cruz, frente a Telheiras. E fora de Lisboa, não consigo sintonizá-lo quando em estou em viagem. Eu sugeria, à administração da RDP, que apostasse mais seriamente na lusofonia... A língua portuguesa é um trunfo estratégico que não sabemos que temos
2. Aproveito para vos dar conhecimento da existência de um tertúlia virtual sobre a guerra colonial que é já, modéstia à parte, uma referência incontornável para qualquer ex-combatente da guerra colonial na Guiné. Cerca de 40 pessoas [ hoje 60 ], que não se conhecem (a maior parte delas, tendo no entanto estado na Guiné), partilham através de e-mail e da Net, fotos, estórias, emoções, sentimentos e outras memórias. E nem todos foram combatentes. Alguns são naturais da Guiné. Mas todos acreditam , de uma maneira ou de outra, que - como alguém disse - salvaguardar a memória é a melhor maneira de a vida acabar por triunfar sobre a morte: em Bambadinca, em Guileje, em Barro, em Mansambo, no Xime, no Xitole, em Geba, em Bafatá, em Bissau, em Cansissé, em Banjara, em Cantacunda, e em tantos outros lugares que estão na nossa memória, e onde nos batemos, de armas na mão, mas onde ainda hoje se calhar não chegou a paz, a saúde, a educação.
A geração que fez a guerra colonial (como eu, na Guiné, entre 1969/71) ainda não liquidou as contas com o passado e vê, com apreensão, que os jovens lusófonos pouco ou nada sabem deste terrível e longo período, de 1961 a 1974, para não falarmos da outra tragédia que foi o período pós-colonial.
O blogue Luís Graça & Camaradas > Blogue-Fora-Nada e as páginas que dedicamos às memórias dos lugares em Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (1963/74) são apenas um modesto contributo para que os nossos jovens, de Lisboa a Bissau, não digam, quando inquiridos: "Guiné ?... Guerra colonial ? ... Não, nunca ouvi falar!"... E pretendem também ser uma pequena ponte para o futuro dos nossos dois países que a história e a língua uniram indelevelmente.
Mantenhas pa tudus
Luís Graça
Guiné 63/74 - P397: Herr Spínola na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Estrada Xime - Bambadinca > 1997 : Ponte (velha) do Rio Udunduma.
Em 1969/71, a segurança desta ponte era vital para as NT. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No célebre e pavoroso ataque a Bambadinca, em 31 de Maio de 1969, o IN tentara dinamitá-la.
Desde Junho de 1969 a ponte era defendida por duas secções da CART 2520 (Xime). A partir de 16 de Dezembro de 1969 a segurança permanente passou a ser feita pelos Gr Comb da CCAÇ 12 e pelos Pel Caç Nat 63 e 52 (Bambadinca). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá). Todos os direitos reservados.
1. Excertos do Diário de um Tuga (L.G.)
Ponte do Rio Udunduma, 3 de Fevereiro de 1971
De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande, o Caco Baldé). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi.
Mas o que é que faz correr este velho soldado, como ele próprio gosta de se chamar ? É difícil adivinhar-lhe a sua paixão secreta, o seu móbil, sob a sua impassibilidade de samurai (ou de figura de cera?): a mitomania, o culto da personalidade ou, hélàs!, a presidência da república ?
Há qualquer coisa de sinistro na sua voz de ventríloquo, no seu olhar vidrado ou no seu sorriso sardónico: talvez seja a superioridade olímpica do guerreiro.
Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba…
A visita-surpresa do Deus-Todo-Poderoso foi o meu único monumento de glória em toda esta guerra… Ao fim de vinte meses!... Só quero regressar, são e salvo, a casa, daqui a um mês e, se possível, levar comigo a barba que deixei crescer… na Guiné, longe do Vietname.
Guiné 63/74 - P396: Antologia (35): A missão do velho Ali (Luís Graça)
Guine-Bissau > As velhas canoas começam a dar lugar a embarcações motorizadas...
© Jorge Neto (2005) (com a devida vénia)
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
© Jorge Neto (2005) (com a devida vénia)
A Pesca
De manhã muito cedinho Ali vai na canoa para a pesca.
Ali é um velho que nunca está cansado.
Ele pesca nos pequenos rios
que levam as suas águas ao Rio Cacine.
Ele sai à procura de mafé
para os seus valentes filhos – os guerrilheiros.
Nada pode levar o velho Ali a não cumprir a sua missão.
Ele não tem medo do rio com os seus jacarés.
Nem dos colonialistas com os seus canhões e bombardeiros.
O velho Ali sabe que tem uma missão a cumprir.
E que vai cumprir a sua missão com orgulho.
Texto extraído de O Nosso Primeiro Livro de Leitura, edição do PAIGC (Apanhado num acampamento do Poidon/Ponta Varela, região do Xime, Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969)(1).
Transcrito em Diário de um Tuga, Setembro de 1969, s/d. L.G.
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
segunda-feira, 2 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P395: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968
Guiné > Empada > 1969 > Desdobrável de propaganda, distribuído pelas NT, com apelo do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné Portuguesa para o IN e para a população sob o seu controlo se apresentarem às autoridades portuguesas.
© José Teixeira (2005)
Transcrição:
Legenda da imagem de cima:
"Faz como eles. Eles eram população que terrorista guardava no mato e que fugiu. Foge também e apresenta-te à autoridade civil ou à tropa que dá ajuda, comida, mezinho, paz e liberdade".
Legenda da imagem de baixo:
"Faz como eles. Eles são terroristas arrependidos. Apresenta-te também à tropa. Também terás paz, comida, mezinho e liberdade. Se levar arma, tropa dá prémio. Bandeira portuguesa é bandeira de nós todos! Autoridade Portuguesa ajuda toda a gente! Tropa dá protecção. Apresenta-te com esta guia"
__________________________________________________________________________________
Continuação da publicação do diário que o José Teixeira, 1º cabo enfermeiro da CCAÇ 2381, foi escrevendo durante a sua comissão na Guiné (1968/70). É um notável documento humano onde também vêm ao de cima as dúvidas e a angústia do cristão. Nesse Agosto de 1968, em Aldeia Formosa (hoje, Quebo), o 1º Cabo Enfermeiro Teixeira escreve, dilacerado pelo absurdo daquela guerra: "Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo".
O meu diário (cont.)
Aldeia Formosa, 1 de Agosto 1968
É dia de correio, mas pelos vistos o avião já não vem. Ontem aterraram dois Dakotas com páras e espera-se outro hoje. Mau sinal. Ou me engano muito ou em breve vamos ter "manga de chocolate".
No dia de S. João, enquanto me divertia em Ingoré nas marchas improvisadas do S. João, o pessoal da Companhia 2382 viu arder tudo o que trouxeram da Metrópole, aqui ao lado em Contabane, num ataque inimigo. Felizmente só tiveram 4 feridos. Que rico S. João !
Aldeia Formosa, 2 de Agosto 1968
A guerra é triste... Na estrada da Xamarra ia-se dando mais um drama. Vinte e sete abrigos de três homens e dois fornilhos a serem montados, eram a espera para a Secção que vem todos os dias a Aldeia buscar víveres. Quatro milícias passaram perto e avistando o IN abriram fogo. Três acabaram as munições e fugiram, o quarto, sozinho pôs o IN em fuga. Não fora os milícias e nesse dia a Secção podia ser apanhada à mão.
Pouco tempo antes o IN tinha tentado a sorte no mesmo local. Dizem que um nativo de 12 anos ao ver um branco com farda diferente da do nosso exército lhe apontou a Mauser e matou-o. Era um cubano que junto com outros tinha uma emboscada montada. O miúdo tentou avisar Xamarra e conseguiu-o, mesmo depois de ter apanhado um tiro de raspão no nariz.
Crianças na guerra, será possível ? Que futuro para esta gente que cresce no ódio, na guerra ?.
Aldeia Formosa, 4 de Agosto 1968
Ontem foi comemorado pelo IN o V Aniversário da implantação da luta pela independência da Guiné. No sector de Buba a festa começou cerca das 22 horas com um ataque a Mampatá com quatro canhões sem recuo e terminou às 3.30 horas em Aldeia Formosa (1).
Às 22 horas iniciaram em Mampatá. Às 22.30 acordaram Aldeia Formosa com algumas morteiradas e continuaram em Gandembel, Guilege e Buba. Às 24 h recomeçaram em Aldeia Formosa com pequenos intervalos até as 3.30 h.,não fazendo feridos.
Hoje o Senhor concedeu-me a graça de ouvir a missa pela telefonia. Sinto-me outro, mais [?]... Hoje é dia de correio. Para completar esta boa disposição é preciso que venhas também até mim com a tua confiança.
Ouvi o Spínola dar as boas vindas à tropa vinda da Metrópole. Segundo ele, o tempo de Comissão é de 21 meses.
Buba, 8 de Agosto de 1968
A Guerra e . . . a minha "paz"
Avisto a Selva,
Do outro lado, o mar...
Corpos negros,
Corpos brancos.
Almas assassinas
Que destroem, matam.
Não sabem amar.
Quando entro na guerra,
Esqueço quem sou.
Deram-me uma arma
Tenho que lutar...
Que coisa terrível !
Marca espíritos,
Destrói sentimentos,
Origina ódios.
Mais que tudo isto,
Ensina a matar !...
Mas se eu matar
E a "pátria" o afirma,
Em defesa dos "inocentes"
Buscando a "paz",
Porquê este remorso
Se quero somente amar !?
Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968
Cheguei à uma da madrugada de Buba. Tinha partido para baixo em coluna no dia 6. Desta vez o IN não apareceu. Fomos e voltámos pela estrada de Nhala.
Estava com medo desta coluna, depois do que aconteceu na última, mas o Senhor protegeu-me, a mim e aos meus colegas de aventura.
Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem.
Os homens não ouvem a voz de Deus, abafam a tua voz com o matraquear das armas. Matar pessoas, porquê ? ... E aquele corte de orelhas, vitorioso !?... Como se fosse um animal ! E se fosse, quem deu ao homem tal direito ?!...
Que faço eu nesta guerra ?... Curo uns e procuro matar outros para salvar a pele? Que culpa tenho eu que os homens não se amem ?!... Me queiram matar sem eu lhes fazer mal nenhum ?!...
Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo.
____
Nota de L.G.
(1) Em Aldeia Formosa vivia 0 Cherno Rachid, a autoridade máxima do Islão na Guiné. Eis po esc´revoi do Diário de um Tuga, Bbamdainca, 10 de Janeiro de 1970:
"De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sedeado urn batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo".
Vd. post de 15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás,Quebo)
Guiné 63/74 - P394: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (3): Aldeia Formosa, Julho de 1968
Guiné > Buba> 1968> Domingo de Páscoa > 1º Cabo Enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
© José Teixeira (2005)
O meu diário (continuação)
Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968
Ontem Aldeia Formosa voltou a ser atacada. Três vezes numa semana é muito.
Hoje fui fazer uma coluna a Gandembel. Tudo correu bem. O IN não atacou nem colocou minas na picada. Só tivemos uma tempestade de chuva. Começamos por ouvir um ruido assustador que se aproximava de nós. De repente surge uma forte ventania que nos arrastava, seguida de uma tromba de água que transformou a picada num rio. Um quarto de hora depois tudo desapareceu e voltou o sol quente que rapidamente nos secou.
Pouca antes de chegar a Gandembel vimos o IN atacar um Fiat das FAP que se incendiou, tendo o piloto saltado de pára-quedas.
Passei no sítio onde há pouco tempo se deu uma terrível emboscada que roubou seis vidas. Quinze fornilhos colocados em série num local onde a tropa ao sentir as primeiras balas da emboscada se esconde. Doze rebentaram no momento em que se iniciou a emboscada e ceifaram seis vidas. Foi uma sorte não ter lá ficado toda a Companhia.
Quando chegamos a Gandembel (1) fomos saudados pelo IN com um pequeno ataque ao aquartelamento, sem consequências. Os Camaradas que estão aqui estacionados dizem que comem disto todos os dias e mais que uma vez. Como é terrível...
Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné/Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à "estrada da morte" impedindo o IN de fazer os abastecimentos.
-Será verdade que vamos ficar nesta zona por muito tempo ?
Odeio... Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles...
O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores...
Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de "bom biaje", se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha, prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ?
Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN porque é traiçoeiro,porque mata.
Aldeia Formosa, 30 de Julho 1968
Ontem o IN voltou a atacar Aldeia Formosa. Meia dúzia de granadas de morteiro, que caíram bem longe. Que quererá o IN com estes pequenos ataques ?
As Mãos de minha mãe
As mãos de minha mãe!
Mãos belas e puras,
Mãos de santa.
Mãos que sofreram, trabalharam,
Mãos que se sacrificaram,
... Para que não me faltasse o pão.
Mãos calejadas, doridas,
Sangrentas, mesmo.
As mãos de minha mãe !...
Era pequenino,
Talvez ainda não compreendesse
As mil carícias que me faziam,
Todo o amor que me dedicavam
Mas já sentia o calor dessas mãos.
Já sentia o seu amor,
O seu carinho.
Parece que sentia mesmo,
O enorme esforço dessas mãos.
Os sacrifícios de minha mãe.
O trabalho a que se votava,
A fome que passava
Para que nada faltasse
À criança
Que no berço dormia feliz,
Embalada com tanto amor.
... Como são belas
As mãos de minha mãe !...
_____________
(1) Vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel
Guiné 63/74 - P393: Tabanca Grande: Patrício Ribeiro, empresário, mais um amigo em Bissau
Guiné- Bissau > Bissau > Novembro de 2000 > O actual hospital civil [Hospital Nacional Simão Mendes]
© Albano Costa (2005)
1. Há dias o A. Marques Lopes recebeu uma mensagem alertando para o facto de uma foto de sua autoria, na nossa página sobre Bissau, estar mal identificada: aparece como sendo referente ao Hospital de Bissau, qaundo se trata "provavelmente, dum lapso já que a foto apresentada é a do antigo Grande Hotel, situado na Av. Mousinho de Albuquerque e cujo gerente foi, durante largos anos, o sr. Luís Marques. Caso se pretendam quaisquer esclarecimento complementares, poderei ser contactado pelo telefone 21 922 9058 pelo telemóvel 96 269 6155)". António Estácio
O fotógrafo reconhece o erro: "É possível que tenha sido um lapso meu. Foi uma passagem muito rápida por Bissau [em 1998], que eu até não conheço bem. No meio de outras fotografias deu-me para pensar que seria o hospital. As minhas desculpas e obrigado. A. Marques Lopes". Por nossa parte, também já procedemos à correcção da legenda.
O Albano Costa, por sua vez, que esteve na Guiné na Guiné-Bissau, com um grupo de camaradas em Novembro de 2000, envia-nos gentilmente uma foto do hospital em causa (que agora se chama Hospital Nacional Simão Mendes), além do tristemente famoso, no nosso tempo, Hospital Militar de Bissau, hoje em ruínas...
Guiné- Bissau > Bissau > Novembro de 2000 > O antigo Hospital Militar de Bissau
© Albano Costa (2005)
2. Mensagem de Patrício Ribeiro:
Caros Ex-Combatentes
Tenho estado a ler neste final de ano, um pouco de tudo que vem na vossa tertúlia, gosto!...
Sou um apaixonado por tudo o que seja relacionado com a Guiné. Há mais de 20 anos que percorro todos os caminhos e canoas da Guiné, desde Sucujaque até Campeane, das Ilhas do Poilão e Unhucomo até Buruntuma, em trabalhos profissionais.
Como já visitei milhares de tabancas, encontro muitos antigos quartéis e desde há muito que me interrogo: como seria isto em outros tempos ? Agora encontro as respostas, formidável!
É verdade que não fui militar na Guiné, mas fui em Angola de 69 a 72 e desconhecia como tinha sido por cá a vida. Embora falando com muitos amigos e antigos combatentes portugueses, naturais da Guiné, e com outros tantos do PAIGC e percorrendo o mato, verifiquei que a vida não era fácil.
Agradeço o lançamento na Net das cartas militares, que estão actualizadas, já que são as últimas a serem feitas, que me facilitam a vida no meu trabalho. As existentes para venda em Bissau, com a guerra de 1998, arderam.
Poderei indicar alojamento em hotéis ou pequenas pensões, por toda a Guiné, às pessoas que queiram visitar a Guiné.
Estou em Águeda na 1ª semana de Janeiro; viajo para Bissau na 2ª semana e vou para ao Norte, Varela; 3ª em Bolama e Bubaque; 4ª em Bissau e Farim. Fevereiro: Xitol, Rio Buba, Cacine, Catio.
Em Bissau, não tenho a mesma facilidade de contacto com a Net, nem em muitos locais há o telefone. Os telemóveis estão agora a ser lançados. A única forma de estar contactável é ser rádio amador. Mas através do Jorge Neto ou do Patrício Ribeiro.
Comentário de L.G.
Fico sem saber, concretamente, qual é a actividade profissional que o Patrício desenvolve na Guiné, mas presumo que trabalhe na área da cooperação, saúde ou educação. Ou que seja empresário, como é mais provável. Eu e o resto da nossa tertúlia ficamos muito gratos pela amabilidade das suas palavras e pela disponibilidade para futuros contactos e "appoio em Bissau".
Ficamos satisfeitos por saber que o nosso trabalho (a começar pelas cartas militares que estão disponíveis on line) também é apreciado por (e é útil a) aqueles que trabalham e vivem hoje na República da Guiné-Bissau. Creio que ganhámos mais um amigo, a somar àqueles que jká temos em Bissau.
Desejamos-lhe, ao Patrício, bom regresso à Guiné-Bissau, boa saúde e bom trabalho. E, já agora, pedimos-lhe que divulgue também a nossa tertúlia, o nosso blogue e as nossas páginas sobre a Guiné-Bissau de ontem e de hoje...
© Albano Costa (2005)
1. Há dias o A. Marques Lopes recebeu uma mensagem alertando para o facto de uma foto de sua autoria, na nossa página sobre Bissau, estar mal identificada: aparece como sendo referente ao Hospital de Bissau, qaundo se trata "provavelmente, dum lapso já que a foto apresentada é a do antigo Grande Hotel, situado na Av. Mousinho de Albuquerque e cujo gerente foi, durante largos anos, o sr. Luís Marques. Caso se pretendam quaisquer esclarecimento complementares, poderei ser contactado pelo telefone 21 922 9058 pelo telemóvel 96 269 6155)". António Estácio
O fotógrafo reconhece o erro: "É possível que tenha sido um lapso meu. Foi uma passagem muito rápida por Bissau [em 1998], que eu até não conheço bem. No meio de outras fotografias deu-me para pensar que seria o hospital. As minhas desculpas e obrigado. A. Marques Lopes". Por nossa parte, também já procedemos à correcção da legenda.
O Albano Costa, por sua vez, que esteve na Guiné na Guiné-Bissau, com um grupo de camaradas em Novembro de 2000, envia-nos gentilmente uma foto do hospital em causa (que agora se chama Hospital Nacional Simão Mendes), além do tristemente famoso, no nosso tempo, Hospital Militar de Bissau, hoje em ruínas...
Guiné- Bissau > Bissau > Novembro de 2000 > O antigo Hospital Militar de Bissau
© Albano Costa (2005)
2. Mensagem de Patrício Ribeiro:
Caros Ex-Combatentes
Tenho estado a ler neste final de ano, um pouco de tudo que vem na vossa tertúlia, gosto!...
Sou um apaixonado por tudo o que seja relacionado com a Guiné. Há mais de 20 anos que percorro todos os caminhos e canoas da Guiné, desde Sucujaque até Campeane, das Ilhas do Poilão e Unhucomo até Buruntuma, em trabalhos profissionais.
Como já visitei milhares de tabancas, encontro muitos antigos quartéis e desde há muito que me interrogo: como seria isto em outros tempos ? Agora encontro as respostas, formidável!
É verdade que não fui militar na Guiné, mas fui em Angola de 69 a 72 e desconhecia como tinha sido por cá a vida. Embora falando com muitos amigos e antigos combatentes portugueses, naturais da Guiné, e com outros tantos do PAIGC e percorrendo o mato, verifiquei que a vida não era fácil.
Agradeço o lançamento na Net das cartas militares, que estão actualizadas, já que são as últimas a serem feitas, que me facilitam a vida no meu trabalho. As existentes para venda em Bissau, com a guerra de 1998, arderam.
Poderei indicar alojamento em hotéis ou pequenas pensões, por toda a Guiné, às pessoas que queiram visitar a Guiné.
Estou em Águeda na 1ª semana de Janeiro; viajo para Bissau na 2ª semana e vou para ao Norte, Varela; 3ª em Bolama e Bubaque; 4ª em Bissau e Farim. Fevereiro: Xitol, Rio Buba, Cacine, Catio.
Em Bissau, não tenho a mesma facilidade de contacto com a Net, nem em muitos locais há o telefone. Os telemóveis estão agora a ser lançados. A única forma de estar contactável é ser rádio amador. Mas através do Jorge Neto ou do Patrício Ribeiro.
Comentário de L.G.
Fico sem saber, concretamente, qual é a actividade profissional que o Patrício desenvolve na Guiné, mas presumo que trabalhe na área da cooperação, saúde ou educação. Ou que seja empresário, como é mais provável. Eu e o resto da nossa tertúlia ficamos muito gratos pela amabilidade das suas palavras e pela disponibilidade para futuros contactos e "appoio em Bissau".
Ficamos satisfeitos por saber que o nosso trabalho (a começar pelas cartas militares que estão disponíveis on line) também é apreciado por (e é útil a) aqueles que trabalham e vivem hoje na República da Guiné-Bissau. Creio que ganhámos mais um amigo, a somar àqueles que jká temos em Bissau.
Desejamos-lhe, ao Patrício, bom regresso à Guiné-Bissau, boa saúde e bom trabalho. E, já agora, pedimos-lhe que divulgue também a nossa tertúlia, o nosso blogue e as nossas páginas sobre a Guiné-Bissau de ontem e de hoje...
domingo, 1 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P392: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968
Guiné > Empada > 1969> 1º Cabo Enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
© José Teixeira (2005)
Texto de José Texeira (ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
O meu diário (continuação)
Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968
Comecei a Guerra. Saí de Buba dia vinte e quatro, às seis da manhã, e cheguei a Aldeia Formosa dia vinte e cinco, às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades.
A estrada (picada) está num estado lastimoso: buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros foram percorridos em oito horas e meia.
O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo sentado na berma, entre os arbustos, a conselho de um africano que estava a meu lado e não sofri uma picada. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada, um tanto hilariante. Se o IN tivesse atacado nesse momento era um desastre total, tal foi a desorganização gerada.
Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo... Inimigo cobarde !... Frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.
Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas mãos, que os homens não se amem ? Que culpa tenho eu ?
A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...
Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer.
Esperávamos que o IN atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu, entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçámos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.
Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate mal chegou para o primeiro dia. À frente havia IN, "manga dele", havia buracos, pontes interrompidas. Havia minas, só não havia comida.
Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bigrupos esperavam-nos. Felizmente a Milícia que protegia os flancos, descobriu-os e, sem compaixão, todas as máquinas de guerra funcionaram. O meio e a rectaguarda da coluna embrenhados no mato aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da rectaguarda ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.
A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento (três obuses 14, entre outro material). A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de héli. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.
Agora que sinto o barulho do matraquerar das armas, que sinto o silibar das balas assassinas sobre a minha cabeça, começo a sentir um tremendo ódio a tudo o que seja guerra. Sim. Odeio os homens que, em vez de se amarem, se guerreiam. Que culpa tenho eu que os homens não vivam o amor ?
Quando abriu a emboscada escondi-me debaixo de uma viatura e senti bem perto as balas a assobiarem, pois um IN estava em cima de uma palmeira à minha frente, a fazer fogo. Ainda tentei usar a arma que tinha comigo, mas esta encravou à primeira tentativa e ainda bem. Fui apenas um espectador
Que eu jamais faça guerra... Que eu ame sempre.
Hoje, 26, recebi uma carta, a que tanto precisava para acordar o meu espírito.
Aldeia Formosa, o meu novo poiso, também foi atacada ao anoitecer . O IN teve fraca pontaria e não meteu uma dentro do quartel. A mesma sorte não foi para Gandembel há cerca de quinze dias: quando atacaram aquele destacamento com 11 canhões s/recuo, mataram um alferes e feriram vários militares.
© José Teixeira (2005)
Texto de José Texeira (ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
O meu diário (continuação)
Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968
Comecei a Guerra. Saí de Buba dia vinte e quatro, às seis da manhã, e cheguei a Aldeia Formosa dia vinte e cinco, às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades.
A estrada (picada) está num estado lastimoso: buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros foram percorridos em oito horas e meia.
O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo sentado na berma, entre os arbustos, a conselho de um africano que estava a meu lado e não sofri uma picada. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada, um tanto hilariante. Se o IN tivesse atacado nesse momento era um desastre total, tal foi a desorganização gerada.
Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo... Inimigo cobarde !... Frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.
Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas mãos, que os homens não se amem ? Que culpa tenho eu ?
A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...
Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer.
Esperávamos que o IN atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu, entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçámos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.
Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate mal chegou para o primeiro dia. À frente havia IN, "manga dele", havia buracos, pontes interrompidas. Havia minas, só não havia comida.
Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bigrupos esperavam-nos. Felizmente a Milícia que protegia os flancos, descobriu-os e, sem compaixão, todas as máquinas de guerra funcionaram. O meio e a rectaguarda da coluna embrenhados no mato aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da rectaguarda ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.
A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento (três obuses 14, entre outro material). A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de héli. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.
Agora que sinto o barulho do matraquerar das armas, que sinto o silibar das balas assassinas sobre a minha cabeça, começo a sentir um tremendo ódio a tudo o que seja guerra. Sim. Odeio os homens que, em vez de se amarem, se guerreiam. Que culpa tenho eu que os homens não vivam o amor ?
Quando abriu a emboscada escondi-me debaixo de uma viatura e senti bem perto as balas a assobiarem, pois um IN estava em cima de uma palmeira à minha frente, a fazer fogo. Ainda tentei usar a arma que tinha comigo, mas esta encravou à primeira tentativa e ainda bem. Fui apenas um espectador
Que eu jamais faça guerra... Que eu ame sempre.
Hoje, 26, recebi uma carta, a que tanto precisava para acordar o meu espírito.
Aldeia Formosa, o meu novo poiso, também foi atacada ao anoitecer . O IN teve fraca pontaria e não meteu uma dentro do quartel. A mesma sorte não foi para Gandembel há cerca de quinze dias: quando atacaram aquele destacamento com 11 canhões s/recuo, mataram um alferes e feriram vários militares.
Guiné 63/74 - P391: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968
Guiné > Ingoré > 1968 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381 (1968/70), posando em cima de uma autrometralhadora Daimler.
© José Teixeira (2005)
Damos hoje início à publicação do diário que o José Teixeira foi escrevendo durante a sua comissão na Guiné. Além de ser um notável documento humano - escrito por um homem dos serviços de saúde militares, um enfermeiro de campanha, que estava sujeito aos mesmos riscos que qualquer operacional -, tem um grande interesse documental para melhor se conhecer o quotidiano dos militares portugueses no sul da Guiné:
"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional. Seguimos depois para Buba e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968].
"Aí a CCAÇ 23881 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.
"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico/emocional fomos enviados, a partir de 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão".
Guiné - O presente no passado > O MEU DÁRIO
PRÓLOGO
Buba, 20 de Julho de 1968
Após dois meses e vinte dias de vivência em estado de guerra na Guiné, inicio o meu DIÁRIO que não é "diário". Nele apontarei somente os casos ou situações mais importantes do meu dia a dia para a história da minha vida .
NOITE
Buba, 20 de Julho de 1968
Noite escura...
A chuva cai fortemente,
Atiçada pelo vento impiedoso.
O Capim dobra-se
Em homenagem àquele grupo de valentes
Que, esgotados pela longa espera,
Sedentos e esfomeados,
Aguardam impacientes
A ordem de retirar.
Os donos da Selva surgem,
Traiçoeiros, em massa.
Por largos momentos, o matraquear das automáticas,
O rebentar das granadas.
Os gritos de algum ferido .
Tudo fazem esquecer.
Trava-se uma luta de vida ou de morte.
Até que as armas se calam.
O Inimigo foge,
Protegido pela escuridão.
... E vinte jovens,
Valentes, decididos,
Dedo firme no gatilho,
Ouvido atento,
Lá se vão a caminho do Quartel,
Com mais uma missão cumprida.
Buba, 21 de Julho de 1968
Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado.
22 de Julho de 1968
Começou a guerra a sério para mim. Ainda esgotado pelo esforço de ontem, saí às seis da manhã para esperar a coluna vinda de Aldeia Formosa (Quebo). Às oito embosquei junto à "ponte interrompida" e por volta das doze recebi ordem para avançar. A coluna aproximava-se. Ouvi dois rebentamentos e fiquei preocupado... Será que a coluna foi atacada ?...
Cerca das dezassete deu-se o encontro de forças e soube então que detectaram cinco minas anti-carro, duas das quais rebentaram.
Todos alegres, voltamos a Buba com o simples café, a camisa molhada de chuva e suor à mistura.
Ainda mal tinhamos chegado quando o IN apareceu a baptizar a Companhia, atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". Tentou durante alguns minutos arrasar Buba, o que não conseguiu por fraca pontaria ou porque não quis.
Deitado na vala e a aguentar uma tempestade de chuva, completamente nu ( fui apanhado a tomar banho) assim esperei que acabasse a "festa", para ir jantar.
Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos deles nus) encharcados, mas alegres, saíam das valas... Mais uma vez escaparam...
Encontrei três colegas da recruta. À noite, vieram-me procurar. Encharcados pela chuva, cansados da coluna, com receio de novo ataque, queriam dormir e não tinham onde...
Também eles estão nesta Guerra. Nove meses já se passaram, a meta final aproxima-se, mas quantos sacrifícios lhes vão ser exigidos ainda ?
_________
(1) Vd post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
© José Teixeira (2005)
Damos hoje início à publicação do diário que o José Teixeira foi escrevendo durante a sua comissão na Guiné. Além de ser um notável documento humano - escrito por um homem dos serviços de saúde militares, um enfermeiro de campanha, que estava sujeito aos mesmos riscos que qualquer operacional -, tem um grande interesse documental para melhor se conhecer o quotidiano dos militares portugueses no sul da Guiné:
"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional. Seguimos depois para Buba e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968].
"Aí a CCAÇ 23881 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.
"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico/emocional fomos enviados, a partir de 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão".
Guiné - O presente no passado > O MEU DÁRIO
PRÓLOGO
Buba, 20 de Julho de 1968
Após dois meses e vinte dias de vivência em estado de guerra na Guiné, inicio o meu DIÁRIO que não é "diário". Nele apontarei somente os casos ou situações mais importantes do meu dia a dia para a história da minha vida .
NOITE
Buba, 20 de Julho de 1968
Noite escura...
A chuva cai fortemente,
Atiçada pelo vento impiedoso.
O Capim dobra-se
Em homenagem àquele grupo de valentes
Que, esgotados pela longa espera,
Sedentos e esfomeados,
Aguardam impacientes
A ordem de retirar.
Os donos da Selva surgem,
Traiçoeiros, em massa.
Por largos momentos, o matraquear das automáticas,
O rebentar das granadas.
Os gritos de algum ferido .
Tudo fazem esquecer.
Trava-se uma luta de vida ou de morte.
Até que as armas se calam.
O Inimigo foge,
Protegido pela escuridão.
... E vinte jovens,
Valentes, decididos,
Dedo firme no gatilho,
Ouvido atento,
Lá se vão a caminho do Quartel,
Com mais uma missão cumprida.
Buba, 21 de Julho de 1968
Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado.
22 de Julho de 1968
Começou a guerra a sério para mim. Ainda esgotado pelo esforço de ontem, saí às seis da manhã para esperar a coluna vinda de Aldeia Formosa (Quebo). Às oito embosquei junto à "ponte interrompida" e por volta das doze recebi ordem para avançar. A coluna aproximava-se. Ouvi dois rebentamentos e fiquei preocupado... Será que a coluna foi atacada ?...
Cerca das dezassete deu-se o encontro de forças e soube então que detectaram cinco minas anti-carro, duas das quais rebentaram.
Todos alegres, voltamos a Buba com o simples café, a camisa molhada de chuva e suor à mistura.
Ainda mal tinhamos chegado quando o IN apareceu a baptizar a Companhia, atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". Tentou durante alguns minutos arrasar Buba, o que não conseguiu por fraca pontaria ou porque não quis.
Deitado na vala e a aguentar uma tempestade de chuva, completamente nu ( fui apanhado a tomar banho) assim esperei que acabasse a "festa", para ir jantar.
Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos deles nus) encharcados, mas alegres, saíam das valas... Mais uma vez escaparam...
Encontrei três colegas da recruta. À noite, vieram-me procurar. Encharcados pela chuva, cansados da coluna, com receio de novo ataque, queriam dormir e não tinham onde...
Também eles estão nesta Guerra. Nove meses já se passaram, a meta final aproxima-se, mas quantos sacrifícios lhes vão ser exigidos ainda ?
_________
(1) Vd post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
Giné 63/74 - P390: Cancioneiro de Mansoa (5): Para além do paludismo (Magalhães Ribeiro)
Dos cadernos (1) do Magalhães Ribeiro, ex-furriel milicano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612 , que teve o seu momento de glória em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974 (2).
Para além do paludismo
Escrever sobre a guerra d’África,
Fiel aos factos e à verdade,
É além de uma questão de honra,
Um dever, justiça e lealdade.
Assim, sobre diversos aspectos
Já se falou, debateu e escreveu
Sobre políticas e estratégias,
Mas algo um pouco se esqueceu.
Por isso dedico estas linhas
Aos seis sentidos d’um combatente,
Aos actos vivos que o atormentam
N’um passado sempre presente.
Àquele que penou na picada,
Que ficou marcado p’ra toda vida...
Como traduzi-lo em palavras
Sem lhe abrir de novo a ferida ?!
Que conste na nossa História ,
Sem salamaleques, com coragem,
Que ali, na guerrilha, no mato
Cada dia... é uma contagem.
Nas folhas dum calendário
Risca-se mais um dia que passou,
Mede-se assim o pesadelo
E, ali, o fim... mais se aproximou.
Lá se foi uma porção da vida
Nos longos dias até ali riscados,
Esfumou-se de vez a juventude
Em factos na memória cicratizados.
Porque a guerra é muito mais...
É a lenta progressão na lama,
É o mistério da mata densa,
É o pressentimento do drama.
É sobreviver no lodo do rio,
É o calor... a chuva... o vento,
É o suor e o pó no rosto,
É o odor do corpo... nojento.
É o peso das armas e munições,
É a mochila, o cantil e o bornal,
É o comer, o dormir nos covões,
É as rações de combate... sabem mal .
É o chilrear da bicharada,
É sentir os mosquitos a picar,
É o cintilar das cobras e dos lagartos,
É as sanguessugas no corpo a sugar.
É o pousar das botas no solo,
É o terror de tropeçar na mina,
É o abandono do ser racional,
É o poder da adrenalina.
É o emperrar do pensamento,
É o cheiro diferente no ar,
É a observação... olhos atentos,
É um subtil movimento notar.
É um galho fresco partido,
É um ruído anormal captar,
É uma pegada... um objecto caído,
É um brilho fugaz detectar.
É dado o alerta e, de repente,
É o romper do silêncio... tolhe,
É o cheiro da pólvora queimada,
É a morte que chegou... e escolhe.
É logo saltar, correr, rastejar,
É o som da metralha infernal,
É o explodir seco das bombas,
É o deflagrar das granadas...mortal.
É o turra? Quantos?... Não se vê!
É algo que no capim se esconde,
É responder aos tiros, cuidado!
É uma armadilha ali... Onde?
É a sina; morrer ou matar!
É o alvo que surge numa fracção,
É premir o gatilho, o tiro certeiro,
É o momento da redenção.
É quando as armas se calam,
É ouvir os gemidos... regelar!
É a agonia dos feridos tombados.
É o assistir à carne a rasgar.
É o sangue do amigo...irmão!
É os buracos dos estilhaços,
É a angústia... o desespero,
É o vê-lo morrer... nos meus braços.
É aquele eterno minuto a escoar,
É a impotência, a frustração,
É mais um’eterna noite d’insónia,
É tempo de mais uma oração.
É um pedaço meu que morre também,
É a família, um breve recordar,
É a revolta das emoções,
É um lamento mais... escutar.
É um inacabar de missões,
É a incerteza do fim... que sorte?
É passar ao lado das balas,
É viver a par com a morte!
É contar o tempo que falta,
É o sonho com o regresso ao lar,
É recontar os dias que passam,
É uma contagem... por acabar!
RANGER Magalhães Ribeiro
Furriel Miliciano da CCS do Batalhão 4612/74
Mansoa - Guiné
______________
Notas de L.G.:
(1) Vd. pos de 21 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1):o esplendor de Portugal
(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
Para além do paludismo
Escrever sobre a guerra d’África,
Fiel aos factos e à verdade,
É além de uma questão de honra,
Um dever, justiça e lealdade.
Assim, sobre diversos aspectos
Já se falou, debateu e escreveu
Sobre políticas e estratégias,
Mas algo um pouco se esqueceu.
Por isso dedico estas linhas
Aos seis sentidos d’um combatente,
Aos actos vivos que o atormentam
N’um passado sempre presente.
Àquele que penou na picada,
Que ficou marcado p’ra toda vida...
Como traduzi-lo em palavras
Sem lhe abrir de novo a ferida ?!
Que conste na nossa História ,
Sem salamaleques, com coragem,
Que ali, na guerrilha, no mato
Cada dia... é uma contagem.
Nas folhas dum calendário
Risca-se mais um dia que passou,
Mede-se assim o pesadelo
E, ali, o fim... mais se aproximou.
Lá se foi uma porção da vida
Nos longos dias até ali riscados,
Esfumou-se de vez a juventude
Em factos na memória cicratizados.
Porque a guerra é muito mais...
É a lenta progressão na lama,
É o mistério da mata densa,
É o pressentimento do drama.
É sobreviver no lodo do rio,
É o calor... a chuva... o vento,
É o suor e o pó no rosto,
É o odor do corpo... nojento.
É o peso das armas e munições,
É a mochila, o cantil e o bornal,
É o comer, o dormir nos covões,
É as rações de combate... sabem mal .
É o chilrear da bicharada,
É sentir os mosquitos a picar,
É o cintilar das cobras e dos lagartos,
É as sanguessugas no corpo a sugar.
É o pousar das botas no solo,
É o terror de tropeçar na mina,
É o abandono do ser racional,
É o poder da adrenalina.
É o emperrar do pensamento,
É o cheiro diferente no ar,
É a observação... olhos atentos,
É um subtil movimento notar.
É um galho fresco partido,
É um ruído anormal captar,
É uma pegada... um objecto caído,
É um brilho fugaz detectar.
É dado o alerta e, de repente,
É o romper do silêncio... tolhe,
É o cheiro da pólvora queimada,
É a morte que chegou... e escolhe.
É logo saltar, correr, rastejar,
É o som da metralha infernal,
É o explodir seco das bombas,
É o deflagrar das granadas...mortal.
É o turra? Quantos?... Não se vê!
É algo que no capim se esconde,
É responder aos tiros, cuidado!
É uma armadilha ali... Onde?
É a sina; morrer ou matar!
É o alvo que surge numa fracção,
É premir o gatilho, o tiro certeiro,
É o momento da redenção.
É quando as armas se calam,
É ouvir os gemidos... regelar!
É a agonia dos feridos tombados.
É o assistir à carne a rasgar.
É o sangue do amigo...irmão!
É os buracos dos estilhaços,
É a angústia... o desespero,
É o vê-lo morrer... nos meus braços.
É aquele eterno minuto a escoar,
É a impotência, a frustração,
É mais um’eterna noite d’insónia,
É tempo de mais uma oração.
É um pedaço meu que morre também,
É a família, um breve recordar,
É a revolta das emoções,
É um lamento mais... escutar.
É um inacabar de missões,
É a incerteza do fim... que sorte?
É passar ao lado das balas,
É viver a par com a morte!
É contar o tempo que falta,
É o sonho com o regresso ao lar,
É recontar os dias que passam,
É uma contagem... por acabar!
RANGER Magalhães Ribeiro
Furriel Miliciano da CCS do Batalhão 4612/74
Mansoa - Guiné
______________
Notas de L.G.:
(1) Vd. pos de 21 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1):o esplendor de Portugal
(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
sábado, 31 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P389: Tabanca Grande: Jorge Tavares, ex-Fur Mil Radiomontador do BCAÇ 2856 - A doce nostalgia de Bafatá
Caro Luís Graça,
Tomei conhecimento do seu site sobre a Guiné, o que me deu uma certa nostalgia do tempo que por lá passei.
Sou o ex-Furriel Miliciano Tavares, Radiomontador, do Batalhão de Caçadores 2856 que esteve em Bafatá, de 1968 a 1970.
Junto em anexo algumas fotos dessa altura e que, caso tenham interesse para juntar ao site, está por mim autorizado a fazê-lo. Tenho mais exemplares caso esteja interessado, mas são fotos de grupo, em lazer.
A referência das fotos vai embebida nas propriedades das mesmas.
Com os melhores cumprimentos e os votos de Boas Festas,
Jorge Tavares
1. Comentário de L.G.:
Tenho um especial afecto pela doce Bafatá que eu conheci ao longo da minha comissão, na CCAÇ 12 (1969/71). Bafatá era a única escapadela que nós tínhamos, nos escassos intervalos da nossa intensa actividade operacional no Sector L1 (Bambadinca). Muitas vezes à civil e sem armas, lá arrancávamos nós, de Bambadinca, de manhã cedo, a caminho do "bife com batatas fritas" da Transmontana e das nossas amigas de Bafatá (Quem não se lembra da alegre e doce Helena, amante de inúmeros batalhões que passaram pela zona leste, que eu um dia destes vou pôr na galeria dos meus heróis da guerra colonial ?!... ).
Pois fico muito sensibilizado com a vinda de mais um tertuliano, ainda por cima da zona leste, da minha zona, do chão fula, da terra dos meus nharros... É muito provável que eu e o Jorge nos tenhamos cruzado em Bafatá. De qualquer modo, estou-te muito obrigado pelas fotos que nos enviaste e que vão, seguramente, enriquececer a memória desse lugar que ainda temos no coração e que era a Bafatá, de pitorescas casas colonais, de ruas direitas e limpinhas, de gente afável e tranquila, que nós ainda tivémos o privilégio de conhecer...
Jorge: está intimado a voltar a comparecer aqui, depois do Ano Novo!... E, como já, percebeste, nesta tertúlia todos os camaradas e amigos se tratam por tu... É um das poucas regras que temos e que respeitamos.
Guiné > Bafatá > 1968> A rua principal (alcatroada, como todas as demais) da doce e tranquila Bafatá, com as suas casas de arquitectura tipicamente colonial. Ao fundo era o mercado e cortava-se à direita, para a piscina. Na primeira à direita, ficava o Restaurante A Transmontana. Do lado esquerdo, no início da foto, ficava a casa do Administrador e os CTT. A meio, a rua era cortada pela estrada que ligava a Geba (Reconstituição do Humberto Reis).
A bordo do navio (Niassa ou Uíge), a caminho da Guiné > 1968 > Furriéis milicianos da CCS do BCAC 2856 (Bafatá, 1968/70). O Jorge Tavares é o segundo, a contar da direita. E o Manuel Cruz é o primeiro, do lado esquerdo.
Guiné > Bissau > Outubro de 1968 > Pessoal do BCAÇ 2856, à chegada ... O Jorge Tavares é o que está com a mão à cintura, expondo o relógio e o anel de casado, a seguir ao porta-estandarte... (Reconstituição do Humberto Reis).
Guiné >Bissau > 1968 > Desfile, à chegada, do BCAÇ 2856, colocado em Bafatá, Zona Leste
Guiné > Bafatá > Messe de sargentos >A Jantar de Natal de 1968 > Pessoal da CCS do BCaç 2856 em confraternização. "Da esqerda para a direita: fur mil Sousa e Silva, fur mil Abrantes, fur mil Cabrita, fur mil Abrantes, fur mil Cruz (Shemeiks), fur mil Ramalho, cabo corneteiro (?), fur mil Pinto, fur mil pelotão de morteiros (?), fur mil pelotão de morteiros Subtil, fur mil Pereira, fur mil Saúde, fur mil Cruz, fur mil Guilherme (Rodinhas), eu (fur mil Tavares) e fur mil Carneiro. Os nomes que faltam, pedi ajuda ao Cruz mas a memória já não nos ajuda" (Jorge Tavares).
Guiné > Bafatá > O furriel miliciano de transmissões Tavares, da CCS do BCAÇ 2856 (1968/70), à civil, no Jardim de Bafatá... Com o Rio Geba ao fundo.
2. Comentário de Humberto Reis:
Jorge Tavares
Sê BEM VINDO a esta Tertúlia. Tu se calhar tu não te lembras de mim mas eu recordo-me de ti. Moravas ali para a zona do Rego (em Lisboa, para os que não conhecem) e foste meu contemporâneo na Escola Industrial Afonso Domingues , no fim da década de 50 princípio da de 60. Apanhavas o comboio no Rego até Marvila para ires para a escola e eu já vinha no comboio desde Campolide.
É daí, de Campolide, do tempo da Escola Primária nº 13, na Rua das Amoreiras, que conheço o Manuel Evaristo Trindade Cruz, que casou com uma das libanesas, filha da D. Rosa, e era o furriel miliciano sapador da CCS do teu Batalhão.
Como vês isto é uma Aldeia Grande e ao fim de 45 anos voltamos a contactar. Nas fotos não consta nenhuma legenda identificativa dos elementos que lá aparecem, mas tu és o 2º a contar da direita.
Um Grande Abraço de Boas Vindas
Humberto Reis
3. Respoosta do Jorge Tavares:
Caro Humberto,
Fiquei surpreendido pela tua memória. De facto sou quem tu dizes, ou seja morava no Rêgo e andei na Afonso Domingues de 57 a 60. Peço desculpa por a minha memória não ser tão boa como a tua, mas não me recordo de ti dessa época. Eu era muito novo e acompanhava o meu irmão e os seus colegas. Ele era mais velho e andava um ano à minha frente. Penso que és capaz de te recordares dele porque era conhecido pelo “capicua”. Infelizmente faleceu em Agosto de morte súbita.
Volto a enviar a foto do jantar de Natal de 1968 na messe de sargentos com a respectiva leghenda (...)., a qual passo a legendar: nomes que faltam, pedi ajuda ao Cruz mas a memória já não nos ajuda. Nas outras fotos, caso estejas interessado, também é possível identificar alguns camaradas.
Créditos fotográficos: Jorge Tavares (2005)
Tomei conhecimento do seu site sobre a Guiné, o que me deu uma certa nostalgia do tempo que por lá passei.
Sou o ex-Furriel Miliciano Tavares, Radiomontador, do Batalhão de Caçadores 2856 que esteve em Bafatá, de 1968 a 1970.
Junto em anexo algumas fotos dessa altura e que, caso tenham interesse para juntar ao site, está por mim autorizado a fazê-lo. Tenho mais exemplares caso esteja interessado, mas são fotos de grupo, em lazer.
A referência das fotos vai embebida nas propriedades das mesmas.
Com os melhores cumprimentos e os votos de Boas Festas,
Jorge Tavares
1. Comentário de L.G.:
Tenho um especial afecto pela doce Bafatá que eu conheci ao longo da minha comissão, na CCAÇ 12 (1969/71). Bafatá era a única escapadela que nós tínhamos, nos escassos intervalos da nossa intensa actividade operacional no Sector L1 (Bambadinca). Muitas vezes à civil e sem armas, lá arrancávamos nós, de Bambadinca, de manhã cedo, a caminho do "bife com batatas fritas" da Transmontana e das nossas amigas de Bafatá (Quem não se lembra da alegre e doce Helena, amante de inúmeros batalhões que passaram pela zona leste, que eu um dia destes vou pôr na galeria dos meus heróis da guerra colonial ?!... ).
Pois fico muito sensibilizado com a vinda de mais um tertuliano, ainda por cima da zona leste, da minha zona, do chão fula, da terra dos meus nharros... É muito provável que eu e o Jorge nos tenhamos cruzado em Bafatá. De qualquer modo, estou-te muito obrigado pelas fotos que nos enviaste e que vão, seguramente, enriquececer a memória desse lugar que ainda temos no coração e que era a Bafatá, de pitorescas casas colonais, de ruas direitas e limpinhas, de gente afável e tranquila, que nós ainda tivémos o privilégio de conhecer...
Jorge: está intimado a voltar a comparecer aqui, depois do Ano Novo!... E, como já, percebeste, nesta tertúlia todos os camaradas e amigos se tratam por tu... É um das poucas regras que temos e que respeitamos.
Guiné > Bafatá > 1968> A rua principal (alcatroada, como todas as demais) da doce e tranquila Bafatá, com as suas casas de arquitectura tipicamente colonial. Ao fundo era o mercado e cortava-se à direita, para a piscina. Na primeira à direita, ficava o Restaurante A Transmontana. Do lado esquerdo, no início da foto, ficava a casa do Administrador e os CTT. A meio, a rua era cortada pela estrada que ligava a Geba (Reconstituição do Humberto Reis).
A bordo do navio (Niassa ou Uíge), a caminho da Guiné > 1968 > Furriéis milicianos da CCS do BCAC 2856 (Bafatá, 1968/70). O Jorge Tavares é o segundo, a contar da direita. E o Manuel Cruz é o primeiro, do lado esquerdo.
Guiné > Bissau > Outubro de 1968 > Pessoal do BCAÇ 2856, à chegada ... O Jorge Tavares é o que está com a mão à cintura, expondo o relógio e o anel de casado, a seguir ao porta-estandarte... (Reconstituição do Humberto Reis).
Guiné >Bissau > 1968 > Desfile, à chegada, do BCAÇ 2856, colocado em Bafatá, Zona Leste
Guiné > Bafatá > Messe de sargentos >A Jantar de Natal de 1968 > Pessoal da CCS do BCaç 2856 em confraternização. "Da esqerda para a direita: fur mil Sousa e Silva, fur mil Abrantes, fur mil Cabrita, fur mil Abrantes, fur mil Cruz (Shemeiks), fur mil Ramalho, cabo corneteiro (?), fur mil Pinto, fur mil pelotão de morteiros (?), fur mil pelotão de morteiros Subtil, fur mil Pereira, fur mil Saúde, fur mil Cruz, fur mil Guilherme (Rodinhas), eu (fur mil Tavares) e fur mil Carneiro. Os nomes que faltam, pedi ajuda ao Cruz mas a memória já não nos ajuda" (Jorge Tavares).
Guiné > Bafatá > O furriel miliciano de transmissões Tavares, da CCS do BCAÇ 2856 (1968/70), à civil, no Jardim de Bafatá... Com o Rio Geba ao fundo.
2. Comentário de Humberto Reis:
Jorge Tavares
Sê BEM VINDO a esta Tertúlia. Tu se calhar tu não te lembras de mim mas eu recordo-me de ti. Moravas ali para a zona do Rego (em Lisboa, para os que não conhecem) e foste meu contemporâneo na Escola Industrial Afonso Domingues , no fim da década de 50 princípio da de 60. Apanhavas o comboio no Rego até Marvila para ires para a escola e eu já vinha no comboio desde Campolide.
É daí, de Campolide, do tempo da Escola Primária nº 13, na Rua das Amoreiras, que conheço o Manuel Evaristo Trindade Cruz, que casou com uma das libanesas, filha da D. Rosa, e era o furriel miliciano sapador da CCS do teu Batalhão.
Como vês isto é uma Aldeia Grande e ao fim de 45 anos voltamos a contactar. Nas fotos não consta nenhuma legenda identificativa dos elementos que lá aparecem, mas tu és o 2º a contar da direita.
Um Grande Abraço de Boas Vindas
Humberto Reis
3. Respoosta do Jorge Tavares:
Caro Humberto,
Fiquei surpreendido pela tua memória. De facto sou quem tu dizes, ou seja morava no Rêgo e andei na Afonso Domingues de 57 a 60. Peço desculpa por a minha memória não ser tão boa como a tua, mas não me recordo de ti dessa época. Eu era muito novo e acompanhava o meu irmão e os seus colegas. Ele era mais velho e andava um ano à minha frente. Penso que és capaz de te recordares dele porque era conhecido pelo “capicua”. Infelizmente faleceu em Agosto de morte súbita.
Volto a enviar a foto do jantar de Natal de 1968 na messe de sargentos com a respectiva leghenda (...)., a qual passo a legendar: nomes que faltam, pedi ajuda ao Cruz mas a memória já não nos ajuda. Nas outras fotos, caso estejas interessado, também é possível identificar alguns camaradas.
Créditos fotográficos: Jorge Tavares (2005)
Guiné 63/74 - P388: Em perigos e guerras esforçados... (Afonso Sousa)
Guiné > Barro > 1970 (?) > Monumento em homenagem ao 1º Cabo Enfermeiro João Baptista da Slva, da CART 2412, morto em combate, em Bigene, em 21 de Setembro de 1968.
Mandado erigir, em Barro, pela CART 2412 (1968/70)
© Afonso M. F. Sousa (2005)
1. Achei bonito o gesto do nosso camarada Afonso Sousa (ex-furriel miliciano de transmissões da CART 2412, que andou por Bigene, Binta, Guidage e Barro, nos já longínquos anos de 1968/70) de se lembrar de um camarada morto em combate, em Bigene, e que os seus camaradas não quiseram esquecer, erigindo-lhe um singelo monumento de homenagem... (Será que resistiu ao tempo e às intermitências da guerra e da paz, do ódio e do amor ? Será que ainda hoje pode ser fotografado em Barro ?).
Raramente falamos deles, dos nossos mortos, dos mais de dois mil camaradas que não voltaram connosco, na viagem de regresso à pátra, a casa (e dos quais cerca de 1240 cairam em combate).
No final do ano de 2005, no ano da fundação da nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné, é bonito, e mais do que bonito, é justo que nos lembremos dos nossos mortos. Há muitas maneiras de os evocar, pela imagem e pela palavra. E quem souber rezar, que reze (sempre) por eles. Eu, que não sou crente, também rezo por eles, à minha maneira, trazendo aqui, e por sugestão do Afonso Sousa, as duas primeiras estrofes do Canto I dos Lusíadas, do nosso genial (e às vezes tão mal amdado...) Luís de Camões:
As armas e os barões assinalados
Que, da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando;
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Os Lusíadas (I, 1-2)
A presente foto também foi inserida na página do nosso camarada Jorge Santos, sobre A Guerra Colonial, na secção "Monumentos", por sugestão do Afonso Sousa, iniciativa de um e outro que eu sou o primeiro a aplaudir. L.G.
2. Mensagem do Afonso Sousa:
Obrigado ao "grande" Luis Graça pela gentileza das palavras que teve a amabilidade de inserir como moldura desta lembrança singela.
Para o fim a que nos propusemos não poderiamos ter tido melhor sorte. O Luis é o homem certo no lugar certo ! ...e reparem que estes trabalhos já são referência na WIKIPÉDIA !...
Já agora aproveitava para pedir ao querido amigo A. Marques Lopes se poderia confirmar-nos se na sua última estada em Barro pôde verificar se este monumento ainda lá existia (situava-se junto à picada Bigene-Barro, a cerca de 50 m do edifício da secretaria e comando, para o lado de Bigene e logo a seguir à enorme mangueira contígua ao edifício).
3. Resposta do A. Marques Lopes:
Amigo Afonso Sousa
Não, esse monumento já não estava lá em 1998, quando estive em Barro. Na altura não deu para falar sobre essas coisas (eu desconhecia, aliás, a existência desse monumento). Mas estou a projectar voltar lá em Março deste ano de 2006, desta vez com mais calma, assim espero. Hei-de perguntar ao Cacuto Seidi (se é que ainda está vivo...) ou a quaisquer outros como é que ele desapareceu e hei-de tirar fotografia do local.
Abraços
A. Marques Lopes
Guiné 63/74 - P387: Estórias do Zé Teixeira (1): Maimuna, uma história de amor (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
Guiné > Mampatá (1)> 1968> O 1º cabo enfermeiro Teixeira (CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70), com a sua inseparável amiguinha Maimuna.
© José Teixeira (2005)
A minha homenagem à Maimuna, minha mascote que durante seis meses foi a minha companheira de todos os dias.
A Maimuna (2) tinha oito luas quando cheguei a Mampatá. Pretinha como carvão, um carrapito e um sorriso sempre que lhe fazia festas. Cativou-me e transformei-a na minha mascote. A casa da Answar, sua mãe era paredes meias com a enfermaria, isto é, o coberto onde montava todos os dias a enfermaria. A parede era de canas entrelaçadas, pelo que se ouvia tudo de um e outro lado.
Tudo começou, quando a avó da Maimuna, logo no dia seguinte à minha chegada me traz a menina:
- Minina e na tourse - dizia-me ela apontando para a garganta da bébé e tentando imitar uma pessoa a tossir. Custou-me a entender a velhinha, pedi ajuda a um Milicia e ele respondeu-me:
- Garganta de minina e na dê tourse, tourse -. De facto a bébé tinha os brônquios inflamados. Dei-lhe uma colher de xarope para a tosse e mandei-a vir três vezes por dia à enfermaria. Só tinha um frasco de antitússico e se lho desse era certo que quando chegasse a casa lho dava por inteiro de imediato para curar mais depressa.
Assim durante três dias tive a Maimuna no meu colo quatro vezes por dia e como ficou boa a mãe ofereceu-ma para minha mulher. Como o xarope era doce, ela vinha ao meu colo toda contente e habituou-se à minha pessoa e ao nome "Fermero". Então quando estava a chorar a mãe dizia-lhe:
- Cá na chora, Fermero e na vem (Não chores mais que vem aí o enfermeiro) . - A menina calava-se ficando a procurar com os olhos a minha pessoa. Quando saía a passear pela tabanca ou visitar os meus colegas aos postos de vigia, pegava na Maimuna ao ombro, ela, toda nua, agarrava-me uma orelha e lá ia toda contente. Habitou-se a ouvir o meu assobio e quando estava a chorar bastava eu assobiar, de cá de fora, para se calar. Aprendeu a rastejar e vinha ter comigo. Depois ensinei-a a andar. Passava tardes inteiras a brincar com ela e com a minha criação de camaleões.
Guiné > Mampatá (1)> 1968> O 1º cabo enfermeiro Teixeira (CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70), noutra foto, com a Maimuna.
© José Teixeira (2005)
Há dias levei-a para o meu abrigo e como eram horas de ela dormir deitei-a na minha cama, ficando ao lado dela. Armou um berreiro e tive de a levar à mãe e então compreendi a razão do choro. A mãe disse-me:
- Leva-a e deita-a atrás de ti de modo a que se possa agarrar às tuas costas . - Assim fiz e a menina dormiu um grande sono que eu acompanhei. Simplesmente, a mãe à noite dormia com a menina amarrada às costas, tal como é costume de dia quando andam a trabalhar, mas por razões diferentes, ou seja se houvesse um ataque tinham de fugir para o abrigo subterrâneo, por sinal ao lado do Posto de rádio e assim, com a menina amarrada às costas, não corria o perigo de na precipitação da fuga deixar a menina sem protecção.
________
(1) No sul da Guiné, a sudeste de Buba, junto a Aldeia Formosa (Quebo)
(2) – Deixem passar este poema que dedico à Maimuna, trinta anos depois …
MAIMUNA
Um amor que encontrei,
Me acompanhou e viveu,
Como eu.
A guerra que não queria,
Mas sentia,
Nas corridas para o abrigo,
Da mãe que fugia ao perigo.
Comigo aprendeste a andar,
No meio de balas, granadas,
Minas, na tua terra, semeadas.
Perigosas bonecas para o teu brincar.
E só de pensar,
Meu coração tremia
Que uma bala perdida,
Tua vida fosse roubar.
Eras a esperança.
O futuro que não queria perder.
Foste razão do meu viver,
Quando aos ombros
Percorrias, comigo, os escombros.
Da guerra que nos fazia sofrer.
Abandonei-te
à guerra fugi.
Mas hoje,
Trinta anos depois, ainda gosto de ti.
Tu e eu.
Companheiros de horas vazias.
Passeios de sonho e esperança.
Teu chilrear de bonança
Enchia a minha alma,
E me transmitia imensa calma.
Eu, em troca, te abandonei.
Fugi e nada te dei.
Hoje,
Quero ver-te, tocar-te
E dizer-te.
Quanto te amei.
José Teixeira - 1996
Guiné 63/74 - P386: a tertúlia do Porto (Luís Graça)
Vila Nova de Gaia > Madalena > Vésperas de Natal de 2005 > Uma minitertúlia de camaradas e amigos da Guiné...
Da esquerda para direita: Eu, Marques Lopes, José Teixeira, Albano Costa, Hugo Costa e Francisco Allen (mais conhecido pelo Xico de Empada...)
© Hugo Costa / Francisco Allen (2005)
Estive com malta de Matosinhos... na Madalena, na casa de uns cunhados do Porto onde passei o Natal: A. Marques Lopes, Albano Costa e filho (Hugo), José Teixeira, Francisco Allen.... Também estive com o Eduardo Ribeiro, o "pira de Mansoa", o ranger que arriou a nossa bandeira, em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974, e conheceu a "Maria Turra", a segunda mulher do Amílcar Cabreal... Ele trabalha na EDP, estive com ele na Rua do Bolhão. Desencontrei-me do David Guimarães, que é da Madalena, trabalha no Porto (na Segurança Social) e mora em Espinho, mas falei com ele pelo telefone...
Igualmente falei ao telefone com o Paulo Salgado e a Conceição que passaram o Natal, em Vila Nova de Gaia, perto de mim... Tive pena de não poder emcontrar-me com o Rui Esteves, estive mesmo ao pé da casa dele, andei a passear entre Lavadores e a Madalena, no excelente passeio marítimo que eles agora lá têm, mas esqueci-me do número de telemóvel dele... em Lisboa.
É tudo gente fixe, malta do norte, cinco estrelas... Já andam a combinar viagens à Guiné e um próximo encontro (alargado) da tertúlia... O novo periquito, o Francisco Allen (mais conhecido pelo Xico de Empada) acaba de trazer um jipe da Alemanha e quer pô-lo em Bissau, para ficar ao serviço dos... tertulianos que lá forem!... Vai levá-lo por estrada, do Porto até Bissau, 4 dias e meio... Alguém estará interessado em alinhar com ele ? Ele diz que é uma aventura inesquecível, muito melhor que o Lisboa-Dakar!... Aliás, que o diga o nosso amigo Jorge Neto!...
O Allen prometeu-me mandar um e-mail um dia destes: vai ser um acontecimento (para ele, que jurou nunca mais, depois da reforma como bancário, pegar num computador!)... Vejam só o que é (ou o que faz) a camaradagem dos tertulianos da Guiné...
Verifico que o entusiasmo com a nossa tertúlia está a aumentar cada vez mais... Isso também me assusta, por que se estão a criar expectativas muito altas...
Trouxe uma série de documentação, que me foi fornecida pelo Ribeiro, pelo Teixeira e pelo Allen... O Costa e o Allen têm montes de documentação fotográfica de 1973/74, de 1998 e de 2000. Um e outros são grandes entusiastas e amigos da Guiné. E prometem abastecer a nossa tertúlia até, pelo menos, ao final da década...
Fiz questão de visitar a Foto-Guifões, em Guifões, Matosinhos... para perceber melhor como é que o Albano se tornou o chefe... da tabanca dos tugas de Guifões... Ele conseguiu (é obra!) reunir toda a malta de Guifões que esteve na Guiné. É um exemplo a seguir, não há dúvida.
Desta vez não deu para visitar os tertulianos de Viana do Castelo. Fico satisfeito em saber que a ADSL já chegou à tabanca do Sousa de Castro, o nosso tertuliano nº 1... e que ele agora já pode receber toda a nossa correspondência, incluindo os novos mapas que aí vão aparecer no princípio do ano (Bissau, Tite, Jumbemben, Bigene, Binta, Teixeira Pinto, Pirada...).
Cheguei dia 28, de madrugada, por volta das 1.30h... Celebro o Novo Ano em Lisboa, como de costume.
No último do ano, ultrapassados os 400 posts em menos de 9 meses, aproveito para mandar Um chicoração para todos os amigos e camaradas de tertúlia (desculpem a pieguice de fim-de-ano...). Tenho imenso material para inserir no blogue (e no nosso site, no resto das vinte e tal páginas com as memórias dos lugares, além dos mapas...). Vocês vão ter que ter paciência, a começar pelo Humberto que está na calha, há semanas, com montanhas de mapas pesadíssimos (megas e megas de baites de Guiné, bolanhas, lalas, tabancas, palmeirais), pelo Zé Teixeira (e o seu diário), o Albano (e o seu inesgotável álbum de fotografias), o Ribeiro (e o seu cancioneiro de Mansoa), etc... Mas isto é como o Lisboa-Dakar: está tudo na fila, controlado... Por isso, não fiquem "apanhados pelo clima"...
Continuação de boas festas para o Sousa de Castro e para a rapaziada dos Estaleiros. Um abraço para os restantes tertulianos, incluindo o António Joaquim Serradas Pereira, de Leiria, que não tem dado sinais de vida... Congratulo-me por receber notícias do meu amigo e camarada da ex-CCAÇ 12, o Joaquim Fernandes...
Guiné 63/74 - P385: Em busca de: Batalhão de Caçadores 3872 (Galomaro, 1971/74) (Carlos Filipe)
1. Mensagem de Carlos Flipe Coelho, com data de 28 de Dezembro último:
Caros amigos:
Hoje, 28 de Dezembro de 2005, encontrei-vos, finalmente.
Chamo-me Carlos Filipe, fui radiomontador, formei Batalhão em 20 de Novembro de 1971 em Abrantes.
O Batalhão de Caçadores 3872 desembarcou em Bissau no dia 24 Dezembro de 1971. A minha CCS ficou sediada em Galomaro, mas antes estive aproximadamente um mês no QG em Bissau.
Depois fiz o velho percurso do rio Geba, e depois estrada, do Xime …até Galomaro. Claro que ainda tenho recordações de Dulombi, Cancolim, Bafatá, Bambadinca, Saltinho, Sete Fontes (fonte de água para abastecimento), Bolama (onde passei as minhas “férias”)...
O Cmdt de Batalhão era o Ten Cor Castro e Lemos, natural do Porto.
Será que haverá um camarada deste BCAÇ 3872 por aqui ??? De facto vejo muitas referências ao 3873 com percursos e referências que não me são de todo estranhas (1).
Por agora aceitem um forte abraço de amizade e muito obrigado a todos pela nostálgica alegria que me propocinaram.
Até à próxima.
Carlos Filipe A. Coelho
Ct0408@aeiou.pt
2. Resposta do Manuel Pereira (ex-furriel milicaino da CCAÇ 3547) (2):
Camarada, não serei talvez aquele que procuras, mas prometo, e conforme apelo do Luis, encetar contactos no sentido de comunicares com alguém do teu antigo Batalhão. A minha estadia em Galomaro foi relativamente curta, os desentendimentos com o Cmdt eram imensos (eu comandava um pelotão de reforço/destacado da CCAÇ 3547 - Os Répteis de Contuboel) - do BCAÇ 3884 sediado em Bafatá) daí e como medida de represália me obrigar a sair quase todas as noites para “emboscada” – protecção à distância e que eu numa atitude de desafio ficava pela “fonte”.
Conhecedor disso ou não, o Sr. Cmdt e mais uma vez, após acesa discussão ordenou-me que conjuntamente com o meu pelotão (também rebelde) fosse ocupar o aquartelamento do Dulombi. Foi a prenda do Sr. Cmdt para um conjunto de homens que já traziam na pele 24 meses de Guiné, distribuídos por Contuboel, Sonaco, Bafatá, Bambadinca Tabanca (Cambeidare), Sare Bacar, Medina Mandinga (Nova Lamego) e eu próprio com um currículo mais vasto acrescento também as muitas subidas em batelão de Bissau-Xime-Bambadinca (Porto), Bissau-Farim, trazendo tudo (?) o necessário para abastecimento das tropas. No sentido inverso (menos vezes, pois regressava de avião) o material evacuado (mortos inclusive).
A minha (nossa) estadia em Dulombi foi penosa mas felizmente curta. O 25 de Abril tinha chegado e O Sr. Cmdt foi ”levado” em Cesna pelos Homens do MFA e nosso desterro e destacamento no BCAÇ 3884 tinha chegado ao fim. Em Julho de 74 regressámos à metrópole.
Termino com votos de BOM ANO para todos os camaradas.
____
Notas de L.G.
(1) O Batalhão de Caçadores 3872, Galomaro – SPM 2188, editava em 1973 o jornal O Jantum. Director: o Cmdt.
Há um membro desta tertúlia que fez parte da CCAÇ 3490 do BCAÇ 3872, e que esteve do Saltinho (1971/74). É o Joaquim Guimarães, minhoto, que vive actualmente nso EUA. Vd. pots de 15 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXI: Saltinho, 1971/74... United States of America, 2005
(2) Vd. post de 17 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLV: Notícias do BCAÇ 3884 (Bafatá, Contuboel, Geba e Fajonquito, 1972/74)
Caros amigos:
Hoje, 28 de Dezembro de 2005, encontrei-vos, finalmente.
Chamo-me Carlos Filipe, fui radiomontador, formei Batalhão em 20 de Novembro de 1971 em Abrantes.
O Batalhão de Caçadores 3872 desembarcou em Bissau no dia 24 Dezembro de 1971. A minha CCS ficou sediada em Galomaro, mas antes estive aproximadamente um mês no QG em Bissau.
Depois fiz o velho percurso do rio Geba, e depois estrada, do Xime …até Galomaro. Claro que ainda tenho recordações de Dulombi, Cancolim, Bafatá, Bambadinca, Saltinho, Sete Fontes (fonte de água para abastecimento), Bolama (onde passei as minhas “férias”)...
O Cmdt de Batalhão era o Ten Cor Castro e Lemos, natural do Porto.
Será que haverá um camarada deste BCAÇ 3872 por aqui ??? De facto vejo muitas referências ao 3873 com percursos e referências que não me são de todo estranhas (1).
Por agora aceitem um forte abraço de amizade e muito obrigado a todos pela nostálgica alegria que me propocinaram.
Até à próxima.
Carlos Filipe A. Coelho
Ct0408@aeiou.pt
2. Resposta do Manuel Pereira (ex-furriel milicaino da CCAÇ 3547) (2):
Camarada, não serei talvez aquele que procuras, mas prometo, e conforme apelo do Luis, encetar contactos no sentido de comunicares com alguém do teu antigo Batalhão. A minha estadia em Galomaro foi relativamente curta, os desentendimentos com o Cmdt eram imensos (eu comandava um pelotão de reforço/destacado da CCAÇ 3547 - Os Répteis de Contuboel) - do BCAÇ 3884 sediado em Bafatá) daí e como medida de represália me obrigar a sair quase todas as noites para “emboscada” – protecção à distância e que eu numa atitude de desafio ficava pela “fonte”.
Conhecedor disso ou não, o Sr. Cmdt e mais uma vez, após acesa discussão ordenou-me que conjuntamente com o meu pelotão (também rebelde) fosse ocupar o aquartelamento do Dulombi. Foi a prenda do Sr. Cmdt para um conjunto de homens que já traziam na pele 24 meses de Guiné, distribuídos por Contuboel, Sonaco, Bafatá, Bambadinca Tabanca (Cambeidare), Sare Bacar, Medina Mandinga (Nova Lamego) e eu próprio com um currículo mais vasto acrescento também as muitas subidas em batelão de Bissau-Xime-Bambadinca (Porto), Bissau-Farim, trazendo tudo (?) o necessário para abastecimento das tropas. No sentido inverso (menos vezes, pois regressava de avião) o material evacuado (mortos inclusive).
A minha (nossa) estadia em Dulombi foi penosa mas felizmente curta. O 25 de Abril tinha chegado e O Sr. Cmdt foi ”levado” em Cesna pelos Homens do MFA e nosso desterro e destacamento no BCAÇ 3884 tinha chegado ao fim. Em Julho de 74 regressámos à metrópole.
Termino com votos de BOM ANO para todos os camaradas.
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Notas de L.G.
(1) O Batalhão de Caçadores 3872, Galomaro – SPM 2188, editava em 1973 o jornal O Jantum. Director: o Cmdt.
Há um membro desta tertúlia que fez parte da CCAÇ 3490 do BCAÇ 3872, e que esteve do Saltinho (1971/74). É o Joaquim Guimarães, minhoto, que vive actualmente nso EUA. Vd. pots de 15 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXI: Saltinho, 1971/74... United States of America, 2005
(2) Vd. post de 17 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLV: Notícias do BCAÇ 3884 (Bafatá, Contuboel, Geba e Fajonquito, 1972/74)
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