Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Helicóptero da FAP, um Alouette III... Às vezes, era o heli do nosso descontentamento, da nossa raiva e do nosso desespero, como aconteceu na Op Tigre Vadio (1)... Ainda hoje o Beja Santos não sabe quem disparou sobre o heli: " (...) Foi nessa altura que pedi um helicóptero para ir buscar água a Bambadinca. Negociámos uma clareira com o oficial aviador e, ao levantar, uma rajada estilhaçou o vidro. Ainda hoje me interrogo sobre a proveniência do fogo, e longe de mim insinuar que foi gente menos calma entre os nossos"...
Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
©
Humberto Reis (2006).
Post do
Beja Santos, ex-alf mil, Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70). Acabei de lhe dizer: "Já viste o relatório da Op Tigre Vadio ? Tu, que foste, na prática, o comandante da operação, deves saber muito mais coisas… Vou publicar o teu relatório da mina na estrada de Finete, se não vires inconveniente… A malta gostou muito da tua carta ao Alcino"…
O Beja Santos respondeu-me, logo a seguir, na
volta do correio:
Meu caro Luís, recebo sempre com satisfação as novidades do blogue. Por razões de organização mental, já que o blogue naturalmente mexe comigo, vou deixá-lo fechado até acabar os exames e as responsabilidades inadiáveis. Já fiz frequências em Santarém, tenho agora a 4 na Faculdade de Ciências e Tecnologia, seguem-se exames a 10. Estamos a trabalhar a todo o vapor num documento destinado ao Ministério da Educação, que terá que ficar pronto até 30 de Julho.
Acresce que tenho um curso em Bruxelas de 17 a 19 e entretanto tenho que enviar para o Instituto Piaget um texto de 50 páginas sobre as tendências actuais do consumo em Portugal.
Só o Tigre de Missirá é que pode aguentar esta disciplina de ferro... Tu entras casa adentro com o edifício da Messe Sargentos e Oficiais e a memória não para de esvoaçar. Com o Tigre Vadio (1) ainda foi pior, não pela operação em si em que o maior susto foi voar num helicóptero com os vidros despedaçados por uma rajada de metralhadora, mas pelo tempo duríssimo que começou em 1 de Janeiro e se prolongou até Abril.
Encurtando razões, não posso misturar sentimentos e comoção da nossa guerra com o trabalho presente. E uma coisa que aprendi muito com a nossa guerra é que há tempo para tudo. Tu terás acesso às minhas memórias, gradualmente. Fico contente sabendo que muitos dos nossos camaradas apreciaram a carta para o Alcino. A seu tempo também escreverei ao Paulo Raposo, de que guardo muita saudade, e àquele nosso camarada de Mansambo que questiona as diferentes guerras e classes de intervenientes. Fico-me por aqui e passo a escrever ao sabor da memória. Teu, Mário Beja Santos.
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Cão vadio disfarçado de tigre
por
Beja Santos
Soube da
Tigre Vadio (1) em finais de Fevereiro de 1970, quando o Major de operações de Bambadinca me convidou para um passeio numa Dornier sobre os céus do Cuor. Foi uma viagem que permitiu medir o crescimento militar e populacional de Madina/Belel e a sua ligação a Sara/Sarauol, uma enorme base do PAIGC com um hospital de campanha.
No regresso desse prolongado voo de reconhecimento, o oficial informou-me discretamente que lá para os finais de Março eu iria revisitar Madina. Era o que menos me interessava a 15 dias do meu casamento, que se veio a realizar na Sé Catedral de Bissau. O ano tinha-se iniciado da pior maneira. Desde que, em Novembro anterior, passara a prestar serviço em Bambadinca, não havia um dia de descanso: colunas ao Xitole, correio a Bafatá, noites na ponte de Undunduma, patrulhamentos alucinantes à volta da pista, toda ela bem iluminada, operações no Xime, emboscadas, segurança nas obras do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca...
Ora na noite de 31 de Dezembro [de 1969] coube-nos montar emboscada na estrada para
Mansambo (2) A noite foi agitada com uma enorme bebedeira da malta do Xime que por volta da meia noite resolveu fazer fogo de obus, metralhadora e talvez dilagrama. Quando lhes liguei perguntando se queriam apoio, foi uma conversa de loucos.
Pelas 6 horas da manhã apareceu o Setúbal com um
burrinho (Unimog 411) e deu-se uma fatalidade: ao subir para a viatura, o soldado Quebá Sisse inadvertidamente meteu o dedo no gatilho e disparou uma rajada sobre o soldado Uam Sambu que estava sentado ao meu lado. Em segundos, caiu-me um moribundo nos braços, corremos à desfilada para a enfermaria, pediu-se uma evacuação Y mas o Uam já chegou morto a Bissau. Cherno, nos dias seguintes, mostrava por toda a Bambadinca o meu camuflado com buracos das balas que não tinham morto o meu desditoso soldado mansoanque.
Em Fevereiro [de 1970], tive uma das baixas mais dolorosas em toda a minha vida, com a morte do Carlos Sampaio no norte de Moçambique. Eu fizera amizade com o Carlos no colégio dos Jesuítas, depois em Direito e depois em Letras. O Carlos era filho do grande pintor Fausto Sampaio, irmão da Teresa Costa Macedo e da Maria José Sampaio, conservadora de museus. Nunca me recompus desta baixa, tal a falta que ele me faz.
E Fevereiro e Março foram meses que puseram à prova toda a minha energia moral. Desde um furriel que me escorregou no saibro da picada e meteu um dedo mindinho no tapa-chamas (desastre que tem a probabilidade de 1 para 10 milhões) até às operações no Xime e Burontoni (2), tudo me aconteceu. Guardo esse tempo uma invenção que um dia oferecerei ao Estado Maior de qualquer exército em guerrilha: sair em patrulhamento com o acordo da equipa dos obuses que ficam com uma folha em papel manteiga com referências exactas às da força que parte para o combate e pedir fogo quando há emboscada ou detecção pela força inimiga. Deu-me imenso jeito na Ponta do Inglês, quando fomos cercados em Março (3).
Foi com imenso constrangimento que regressei a Missirá, onde guardei tantos amigos, dolorosas e boas recordações. Vivi a
Tigre Vadio (1) do princípio até meio. Passo a explicar. Saímos à frente com um destacamento, Março é aquele tempo em que chove às 10 da noite, o capim fica molhado até de madrugada, volta a chover e chega um calor tórrido a partir do meio dia que leva a partir a lama que entretanto se colou ao camuflado. Foi uma viagem extremamente penosa e, meia hora antes de se desencadearem os combates referidos no relatório (1), a sede estava instalada e já havia insolados.
Foi nessa altura que pedi um helicóptero para ir buscar água a Bambadinca. Negociámos uma clareira com o oficial aviador e, ao levantar, uma rajada estilhaçou o vidro. Ainda hoje me interrogo sobre a proveniência do fogo, e longe de mim insinuar que foi gente menos calma entre os nossos. O que interessa é que quando cheguei a Bambadinca, o Comandante [do BCAÇ 2852] (4) perguntou-me porque é que eu deixara o teatro de operações. Olhei-o a direito e perguntei-lhe se ele sabia o que era um estado de desidratação total, desafiando-o a vir comigo...
Lá regressei à mata cheio de garrafões, o helicóptero dançava com os vidros partidos, a ligação ar/terra não se fez e o oficial convidou-me a desembarcar com os garrafões num sítio qualquer. Perguntei-lhe se ele tinha consciência que não estávamos num filme de aventuras na selva e então levou-me até ao Xime, dizendo que regressava a Bissau e que depois da reparação me viria buscar. Até hoje. Dormi no
Xime, sem nenhum êxito na tentativa de comunicar com as forças do
Tigre Vadio (5).
Só na manhã seguinte é que apareceram os grupos de combate completamente exaustos. Juro que desconheci a elevada façanha nos combates trocados, embora os meus soldados me tenham referido a existência de um contacto perto de Madina. Tenho que procurar o Cherno para saber pormenores e depois darei conta do que ainda tiver na memória (trouxe o Cherno em 1991 quando trabalhei como cooperante na Guiné; o Cherno foi preso em 1977 por ser furriel dos comandos africanos, sofreu horrores na prisão do Cumeré onde foi obrigado a matar outros presos e a enterrá-los...)
Eu era um cão vadio neste tempo, um tarefeiro da guerra, ex-comandante de Missirá e Finete, combatendo onde era preciso, recoveiro, carteiro, merceeiro, levando
catering a gente esfomeada...O
Tigre de Missirá interrogava o futuro da guerra, vivia com o coração agitado questionando qual o futuro para todos os seus soldados. A realidade encarregou-se de ultrapassar a ficção.
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Notas de L.G.
(1) Vd. postd e 27 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(2) Possivelmente na famosa
Missão do Sono, em Bambadincazinho, na Estrada Bambadinca-Mansambo...
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadincazinha (D), a sudoeste de Bambadinca, a escassas centenas de metros do centro (A)....
Em primeiro plano, a estrada nova (C) para o Xime (posteriormente alcatroada) e, mais acima, a antiga estrada (B), paralela à pista de aviação.... Atravessando a tabanca de Bambadincazinho (D), seguia-se em estrada (picada...) até aos aquartelamentos de Mansambo, Xitole e Saltinho (E). Vê-se ao fundo a bolanha de Bambadinca... Era em
Bambadincazinho que ficava a antiga Missão do Sono, em cujas instalações ficava, todas as secções, um Grupod e Combate para velar pelo bom sono dos seus senhores ofciais superiores do batalhão que dormim no quartel, a menos de um quilómetro...
Foto: ©
Humberto Reis (2006)
(3) O Pel Caç Nat 52, então aquartelado em Bambadinca desde Novembro de 1969, participou nas seguintes operações entre Janeiro e Março de 1970:
Op Topázio Valioso > 2 dias, com início a 30 de Janeiro, às 7h00, para batida na região de
Sul Rio Buruntoni, entre este rio e o seu afluente. Dest A: CART 2520, a 2 Gr Comb; Pel Caç Nat 52; Dest B - CCAÇ 2404, a 2 Gr Commb; Pel Caç Nat 63. Sem contacto nem vestígios.
Op Rinoceronte Temível > 2 dias, com início a 8 de Março, às 16h30, para detecção de vestígios IN na região de Xime-Madina-Colhido-
Ponta Varela - Poidon - Xime. As NT eram compostas, para além do Pel Caç Nat 52, pela CART 2520, a 3 Gr Comb. Contacto com o IN e destruição de meios de vida no Poindoin (cerca de três toneladas de arroz e casas da população).
Op Jaqueta Lisa > 2 dias, com início a 22 de Março, às 16h30, para detecção de vestígios IN na região de Xime- Ponta Varela - Tarrafo -_ Margem Esquerda do Rio Geba -
Foz do Corubal - Poindon - Xime. Forças: CART 2520, a 3 Gr Comb, reforçada com o Pelk Caç Nat 52. Com contacto e sem consequências.
Fonte: História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. Documento reservado.
(4) Tenente coronel de infantaria Jovelino Pamplona Corte Real que, em Julho de 1969, tinha substituído o Ten corn inf Manuel Maria Pimentel Bastos (mais conhecido pelo diminuitivo Pimbas), transferido por motivos disciplinares.
(5) O médico da CCS do BCAÇ 2852 (que teve vários, entre eles o David Payne Rodrigues Pereira, psiquiatra), na altura, o Alf Mil médico Saraiva (que reside em Vila Nova de Gaia, segundo preciosa informação do nosso camarada Humberto Reis), veio no helicóptero de reabastecimento com o Beja Santos, para prestar assistência médica aos casos mais graves de intoxicação (devido ao ataque de abelhas) e de desidratação... Acabou por ficar em terra uma vez o que o helicóptero, danificado, já não voltou... Deixou o Beja Santos no Xime e zarpou para Bissau...
O Dr. Saraiva acabou por aguentar, de pé firme, o resto do dia e toda a noite e toda a manhã, acompanhando-nos na nossa extremamente penosa vaigem de regresso, até ao aquartelamento do Enxalé. Onde quer que ele esteja, daqui vai um abraço para ele. Era muito raro um médico ir para o mato. O mesmo acontecendo com os furriéis enfermeiros...
O Zé Luís Vacas de Carvalho, que foi comandante, em Bambadinca, do Pelotão Daimler 2046, lembra-se bem dele: "Estivémos com ele`há 2 anos em Ferreira do Zêzere. Penso que é médico (ainda) em Gaia. Lembro-me uma vez que o Piça, entornou um jipe cheio de gaiatos e, como eu queria ir para medicina, estive a ajudá-lo a fazer curativos"... Se alguém souber do seu paradeiro, que entre em contacto connosco... Gostaríamos de conhecer a sua versão dos acontecimentos: por certo que nunca mais terá esquecido a Op Tigre Vadio... (LG)
(LG)