sexta-feira, 25 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1786: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (47): Finete já está a arder ? Ou o ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1969


T/T Uíge > CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) > Três oficiais milicianos, da esquerda para a direita: Ismael Augusto (manutenção), o David Payne (medicina) e o Fernando Calado (transmissões). Todos eles estavam em Bambadinca, na noite em que o aquartelamento foi atacado em força pelo PAIGC, como represália pela Op Lança Afiada (1). Bambadinca voltara a ser atacada, a 14 de Junho de 1969. O Calado e o Augusto são os organizadores do encontro, deste ano, do pessoal de Bambadinca (1968/71). O Payne, infelizmente, já morreu. (LG)

Foto: © Fernando Calado (2007). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) > O Alf Mil de Transmissões, de braço ao peito, junto à parede, crivadas de estilhaços de granada de canhão sem recuo, das instalações do comando, messe e dormitórios de oficiais e sargentos, na sequência do ataque de 28 de Maio de 1969. Esta era a parte exterior dos quartos dos oficiais, mais exposta, uma vez que o ataque partiu do lado da pista de aviação. O Fernando traz o braço ao peito, não por se ter ferido no ataque mas sim por o ter partido antes, num desafio de... futebol.

Foto: © Fernando Calado (2007). Direitos reservados.



47ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Texto enviado a 3 de Maio de 2007. Subtítulos do editor do blogue.


Caro Luís, muito obrigado por teres impulsionado este segundo encontro [, em Pombal, no dia 28 de Abril de 2007,] onde revi camaradas inesquecíveis como o Humberto ou conheci outros como o Mexia Alves, um pouco a história da minha vida no Cuor.

O texto que te envio hoje centra-se no ataque a Bambadinca, em 28 de Maio [de 1969]. Tens aí a fotografia do Calado de braço ao peito a mostrar os estilhaços de uma morteirada junto às habitações dos oficiais. Eu próprio escrevi um aerograma à Cristina em cima do acontecimento, que tens plena liberdade para usar. Não me recordo de outras imagens deste evento e, como sabes, as marcas passaram depressa. Quando a CCAÇ 12 chegou, já se tinha feito a cosmética. E o segundo ataque deixou ainda menos marcas. Seguem igualmente pelo correio os dois livros referidos. Um grande abraço do Mário.


Finete está a arder?
por Beja Santos


Hoje, 27 de Maio [de 1969], levanto-me estonteado e bem derreado pela emboscada feita há poucas horas em Sinchã Corubal. Tenho uma secção de pelotão de milícias em Finete, onde vão trabalhar no levantamento de um novo abrigo e na construção do balneário. Vamos, pois, levar um dia ameno, entregue aos afazeres domésticos até que o Teixeira nos comunique a hora de partida para Mato de Cão.


Antecipando a vingança da gente de Madina


O que aconteceu ontem em Sinchã Corubal (2) não me sai da cabeça mas procuro prevenir a reacção da gente de Madina: Será que desta vez irei ser emboscado entre Canturé e Gambaná? Em Mato de Cão é impossível, é um planalto de onde se avista todo o palmeiral de Chicri, qualquer aproximação é facilmente detectada de dia. A não ser que eles ensaiem uma emboscada nocturna, embora seja difícil saber qual o itinerário que vamos usar, faça sol ou chuva andamos sempre por caminhos diferentes para evitar as mais amargas surpresas. E momentos há em que duvido da capacidade de beligerância da gente de Madina.

Converso com os furriéis, hoje é melhor dar condições para haver aulas para os soldados e crianças, vistoriar as munições e o abastecimento de víveres, fazer uma capinação lá para os lados de Sansão, olhar com mais cuidado a contabilidade, já que as folhas de pagamento têm que ser enviadas urgentemente para Bambadinca.

Enquanto ganhamos balanço para as actividades no interior de Missirá, o Casanova recorda-nos que o mês que finda [, Maio de 1969,] foi marcado por emboscadas a colunas em todo o sector, flagelações brutais a tabancas em autodefesa como Amedalai, Moricanhe e Taibatá.
- Se digo isto, é só para lembrar que andamos numa permanente correria e o nosso inimigo não nos vai fazer excepção, vamos ser atacados em breve. Proponho que conversemos sobre medidas mais rigorosas de segurança. - Aceito a sugestão e o tema fica para ser apreciado sem papas na língua ao almoço.

A hora do expediente ou a burocracia da guerra

Com o Pires, aprecio o expediente corrente: as queixas do Setúbal quanto às velas do radiador do burrinho [, o Unimog 411,] a necessidade de fazer uma coluna com a nova vaga de doentes cheios de malária e até um soldado milícia com elefantíase, o abate de vários cantis que desapareceram nos últimos patrulhamentos; depois procedemos ao apuramento das contas e concordei com as folhas de pagamentos dos milícias de Missirá e Finete; ainda com o Pires tratei do novo mapa das férias, o aquartelamento de Missirá obrigou todos a um esforço medonho, há que reintroduzir a escala de férias ainda que moderadamente dado o número significativo de baixas por doença.


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > Furriel Mil Pires > "O Pires era um algarvio discreto, sóbrio na comunicação e de uma lealdade a toda a prova. Por vezes zanguei-me com ele, por falta de sugestões ou iniciativas. Concentrei demasiados poderes e cometi asneiras e fui imprevidente. Quando o Casanova começou a desmoronar-se psicologicamente, não dei por nada, por pura insensibilidade. Julgo que devia ter empenhado mais o Pires que era meticuloso e tinha um excelente trato com a tropa africana. Ao fundo, vê-se o último abrigo a ser arranjado, que era o dele. Ele queixava-se que lhe tinha deixado a segurança para o fim. Não foi bem assim, já que a carapaça tinha duas camadas de cimento recheadas de três folhas de bidão. Quando abandonarmos Missirá em Novembro este abrigo já não existirá´".



Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > Fonte de Cancumba, a noroeste de Missirá.

"Sem a água da fonte de Cancumba a vida em Missirá era impossível. Todos os dias, no mínimo duas vezes, uma secção ia buscar bidões, jerricãs e garrafões. Na véspera de eu chegar a Missirá (3 de Agosto de 1968) veio gente de Madina deixar propaganda e avisos sinistros. Até fins de Outubro de 69, registei por seis vezes a presença do inimigo, aqui. Nunca envenenaram a água. Montávamos segurança para as mulheres lavarem a roupa e abastecerem-se. Era ali que elas tomavam banho com as crianças, recusaram sempre o balneário de Missirá.

"O grande tormento era quando o Unimog 404 ou o burrinho, o 411, estavam avariados. Então, meia Missirá arrastava os bidões ida e volta, operação penosa só compensada pelo banho frio, muitas vezes a cheirar a petróleo. O Furriel Pires tirou a fotografia para celebrar a cabeça rapada".



Fotos e legendas: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Pires, de quem são as chapas, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.

Ao fim da manhã, concluído este expediente, e aguardando que Umaru Baldé anuncie que o almoço esteja pronto, olho para o correio recebido e por responder, e guardo energia para correspondência tão dispersa: recebi um amável aerograma do Cláudio Neto, que foi meu furriel na CCAÇ 2402, que me descreve a vida dura que levaram depois de estar em Có e que termina assim: "Não o esqueço nem ao Medeiros Ferreira" (3).

Começo um aerograma para a Cristina, lançando uma trivialidade: "O capim começa a aproximar-se do arame farpado, anoitece muito depressa com um céu funesto, pela noite fora a parada azula-se com o rugido das borrascas. " Será que o cansaço já me rouba a inspiração, estou condenado a escrever estas frases sem nexo? No fundo, ando à volta de uma questão principal que é responder à Cristina se vamos ou não casar por procuração, ainda há uma remota esperança do meu recurso ser aceite e a punição dos dois dias de prisão eliminada, e então poderia ir a Lisboa e casarmos. Esta dúvida vai manter-se até Agosto, altura em que conhecerei que a punição se manterá ainda com redacção diferente, o que vai mudar toda a minha argumentação. Vejo a sombra de Umaru à porta do meu abrigo, oiço-lhe os seus passos que esmagam o saibro. É com alívio que suspendo estas cogitações, esta dor em aerogramas onde nada posso prever para o meu futuro, para o nosso futuro.

Ao almoço, antes de dar a palavra aos três furriéis e aos cabos presentes (o Alcino, o Barbosa, o Teixeira e o Raposo) anuncio que o Raposo vai partir e que Bissau informou que o seu substituto, António da Silva Queiroz, vai chegar em breve. Aproveito para agradecer ao Raposo toda a ajuda que me deu na intendência dos víveres e anuncio que ele será substituído pelo Alcino. Olho-o quando faço este anúncio e sinto a muita amizade que se vai consolidando entre nós.

Recordo o dia, há meses atrás, quando o conheci junto à Capela de Bambadinca, ele tremia como varas verdes, seguramente que o tinham praxado, dizendo-lhe que ia para o pior dos infernos, às ordens de um chefe alucinado. O Alcino é um camponês que reclama sopas adubadas, tem saudades do vinho forte da sua região, tem saudades do seu terrunho, está desamparado de afectos, é frugal no contacto humano, é uma criatura inocente que sofre com a nossa linguagem de caserna, um palavreado indisponível para os seus valores telúricos. Naquele momento ainda não sei o papel determinante que ele vai ter um dia para o encadeado destas recordações, quando, de um só jacto, eu lhe dedicar uma carta, escrita com a maior das intranquilidades e com o meu pedido público de desculpas por nunca mais ter sabido dele, depois de ele passar a sinistrado de guerra.

As preocupações do Casanova são sentidas por todos: vivemos a um ritmo alucinante, com colunas à fonte de Cancumba, desmatamos e descapinamos por vezes em situações de risco, vamos diariamente a Mato de Cão, com as chuvas a precariedade dos abastecimentos obriga-nos a caminhar e a patinhar até Bambadinca, há as emboscadas nocturnas, a segurança ao Sintex, o que ainda resta das obras de Missirá, as idas a Finete, e o mais que se sabe. A correr de um lado para o outro, esqueçemo-nos que o inimigo vigia, recolhe informações e um dia explorará fraquezas, multiplicamos as actividades e o número de efectivos baixa.

Fico mandatado para falar com o Comandante [do BCACAÇ 2852, sito em Bambadinbca,] sobre a necessidade de recebermos mais efectivos, as duas secções de milícias de Missirá devem voltar, há que propor apoios da CCS, gente dos morteiros, sapadores, apontadores de metrelhadora, praças. Precisamos de ajuda, é esta a mensagem que recebo dos presentes. E nos presentes está o Adão que é soldado-maqueiro e alinha em tudo: nos patrulhamentos, nas colunas e nos reforços.
- Já agora, meu alferes, lembre-se de mim, não me quero ir embora, mas fazia jeito mais dois maqueiros, com a vida que levo nem tenho tempo para estar em Finete.

Findo o almoço, recomeçámos as nossas tarefas, fui com uma secção reforçada até à ponte de Sansão. Regressei ao anoitecer, jantei e na parada revistei o armamento dos vinte homens que me iam acompanhar na emboscada nocturna. Esta exigência das emboscadas nocturnas era uma novidade do nosso major de operações: fosse em que condições fosse, era determinado a todos os destacamentos que tivessem uma emboscada montada para dissuadir o inimigo, desde o anoitecer até horas que tornassem as flagelações praticamente impossíveis. Com a usura das nossas actividades, estava decidido que quem ia a Mato de Cão não emboscava. O quebra-cabeças era prever os cenários de ataques a Missirá e como é que nós podíamos reentrar no quartel sem ficar debaixo de dois fogos...

Naquela noite quem se meteu até à cintura numa bolanha entre Missirá e Cancumba até às 11:30 da noite fui eu e um contigente de caçadores nativos e milícias. Findo este tempo, que não dá para dormir no tépido da água porca e barrenta, sempre afugentando a mosquitada a zunir furiosa porque não pode atravessar a rede mosquiteira, e debaixo da tensão que é estar com os olhos concentrados nas diferentes sombras que nos cercam e nos ruídos próprios das florestas, regressámos com o corpo moído e a vontade de mergulhar no duche frio do costume.


Em socorro de Finete...


Era precisamente meia noite e vinte e cinco quando começámos a ouvir roncos em catadupa dos obuses, uma sinfonia de armas pesadas, rockets e morteiros, a terra tremia bem perto de nós, o negrume da noite deu lugar a riscos desses pequenos cometas que são as balas tracejantes a esvoaçar no éter. Ainda a limpar-me , subo ao abrigo onde Ussumane Baldé assiste deslumbrado ao foguetório e sinto o coração contricto quando lhe pergunto:
- Ussumane, é Finete que está a ser atacada? - A resposta é me dada pelo seu olhar súplice:
- Ah, meu alfero, eles vão partir Finete todinha!.

Os minutos passam e não vejo chegar resposta do fogo de Finete.
- Que é que leva aqueles gajos a demorarem tanto tempo a reagir? - A multidão cresce na parada, não há militar e civil que não esteja esgazeado a ver este ataque assustador, quer pelo porte, quer pela falta de reacção.

De vez em quando há fogachos em direcção contrária, mas quem domina nesta cantilena de morte são as armas pesadas e os sons que conheçemos ao armamento do PAIGC. O meu olhar mareja-se de lágrimas incontidas, de tudo me recrimino por não ter pensado que o PAIGC ia rapidamente embalar uma resposta à nossa aparição em Sinchã Corubal. O fogo atroador prossegue, todos lastimam a destruição de uma Finete e há quem já vaticine que está reduzida a escombros.

Pela última vez, no alto daquele abrigo que abre para Sansão e que numa grande angular permite ver tudo o que é floresta de 14 quilómetrs até Finete, vejo e olho e começo a sentir no ar a nuvem espessa de um fogo que devasta quem vive para aqueles lados do Geba. É então que grito que vou partir com os voluntários que se oferecerem , em auxílio de Finete. Para quem falou de prudência à hora do almoço, é exactamente o oposto o que se está a viver no frenesim na parada de Missirá: O Setúbal já faz roncar o Unimog 404 para onde vão saltar cerca de 20 voluntários armados até aos dentes.

No meio daquele desatino, ainda consigo seleccionar dois bazuqueiros, três apontadores de dilagrama e levo o morteiro 60. Sento-me ao lado do Setúbal e determino:
-Daqui até à entrada de Canturé podes ir a 100 à hora. Depois páras, iremos todos a pé os últimos 4 quilómetros.

A corrida desenfreada é digna de um filme: aos tombos dentro da caixa do Unimog, os meus soldados examinam as cartucheiras, as cavilhas das granadas, a posição em riste das metralhadoras; gritamos como num manicómio acerca de cuidados que sabemos que não iremos cumprir, zelos impossíveis de respeitar, apelo à serenidade que ninguém controla. E minutos depois, muitos minutos depois, o Unimog pára arfante onde começa a longa recta de Canturé, muito antes da curva que se orienta para Gambaná e daqui para Mato de Cão.

O Setúbal vai sozinho na viatura e de faróis apagados. Graças a uma nesga de lua, dez homens de cada lado flanqueiam a picada.O ar está empestado pela pólvora. Caminhamos à espera do pior. A prudência vai aparecer a dois quilómetros de Finete, onde o mato é denso e os poilões escondem o luar. De tanto gritar durante a viagem, como se estivéssemos a incutir coragem uns aos outros, damos agora com o silêncio sepulcral que nos envolve. Que raio de Finete é esta que não tem cubatas a arder, nem se ouvem tiros isolados, nem gritos dos agonizantes?

Com alívio, em marcha lenta, passamos os pontos onde era possível o inimigo estar emboscado. E do alto do alcantilado, que é essa inclinação abrupta que descemos e subimos para chegar ou partir de Finete, assobia-se aos sentinelas que respondem com entusiasmo. Aguarda-nos um quadro surreal: somos recebidos com entusiasmo, abraços, tudo quanto é sinal de boas vindas. Vejo Bacari Soncó avançar em passo lesto e abraçar-me. É a medo e com a voz embargada que lhe pergunto:
-Irmão, temos muitos mortos? - Um olhar coruscante precede o atónito da resposta:
- Mortos, mortos de quê?. Mortos só se for em Bambadinca, ali é que há manga de canseira!- Atónito estou eu:
-Bambadinca, então foi Bambadinca que foi atacada?



Os pormenores do ataque a Bambadinca, em carta enviada à Cristina

E o Unimog marcha aos tropeções pela bolanha de Finete. Quando chegamos à margem do Geba, o canoeiro Mufali vem buscar-nos. O rio está na vazante, entramos na canoa com lama até à cintura. Na outra margem aguarda-nos o Machado e as suas Daimlers. Enquanto subimos a rampa para o quartel, dá-me os pormenores do ataque.

Em aerograma à Cristina, no rescaldo da manhã seguinte:

Os rebeldes vieram pela pista de aviação e cemitério, atacaram o quartel frente à porta de armas, perto da tabanca fula, onde o Almeida (Pel Caç Nat 63) tem a sua tropa, as morteiradas caíram perto da central eléctrica, residência de oficiais e sargentos. Todos, que nunca tinham sonhado em tal arrojo, encheram-se de pânico, e vieram para a parada onde desataram a fazer fogo desnorteado, e só não houve feridos e mortos por milagre.

O Capitão Neves foi para o morteiro enquanto a tropa do Almeida repelia os rebeldes que avançavam para a residência dos oficiais. Depois retiraram e entretanto o pesado morteiro de Bambadinca começou a reagir. Há muitos quartos esburacados e tectos desfeitos. Só há um ferido ligeiro: o apontador de morteiro do Almeida que ficara em Finete enquanto eu estava numa emboscada, ainda ontem. Esta é a resposta à grande operação do Corubal, de há dois meses atrás. Este o ajuste de contas....


A recordação mais impressiva dessa madrugada era a mulher do Tenente Pinheiro à porta do abrigo, enquanto as crianças dormitavam lá dentro. Ao amanhecer, verificámos a extensão dos danos, mas o meu lugar já não era ali. Ainda aproveitei para fazer compras de víveres, trazer algumas camas e fardamento.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 1997 > Antigas instalações dos oficiais (à direita) e dos sargentos (à esquerda). A messe de sargentos ao fundo, do lado esquerdo; a dos oficiais, à direita (a cozinha era comum). Eram excelentes instalações hoteleiras, para a época e por comparações com outros outros aquartelamentos. A regra geral era a bunkerização (por ex., Mansambo). Em 28 de Maio de 1969, quando o pessoal metropolitano da futura CCAÇ 12 estava a chegar à Guiné, Bambadinca sofreu um grande ataque do PAIGC. Quando lá passámos uns dias depois, a 2 de Junho, eram ainda visíveis os impactes das granadas de morteiro (por ex., num dos quartos dos sargentos, à esquerda) e a estupefacção do pessoal... Recordo-me de ter trocado impressões com um conterrâneo meu, o 1º cabo de transmissões Agnelo Pereira Ferreira, natural da Zambujeira Lourinhã, e que pertencia à CCS do BCAÇ 2852... Dois meses antes, havia sido executada a grande Operação Lança Afiada (1) , destinada a varrer toda a margem direita do Corubal, e desalojar o PAIGC do triângulo Bambadinca-Xime-Xitole... A resposta, em força, não se vê esperar... Uma das questões controversas, já aqui debatidas, foi o papel do tenente-coronel Pimentel Bastos durante o ataque... Hoje sabemos que ele estava lá... Essa informação foi-me confirmada recentemente por dois alferes milicianos da CCS do BCAÇ 2852, o Ferando Calado (transmissões) e o Ismael Augusto (manutenção)... A anedota que no meu tempo se contava sobre o Pimbas é isso mesmo: uma mera anedota de caserna (4).

Bambadinca revisitada... Soubemos depois que, a seguir à independência, fora palco de trágicos acontecimentos: desvario revolucionário, ajustes de contas, julgamentos populares e execução sumária, por fuzilamento, de régulos fulas (o tenente Mamadu, por exemplo), além de combatentes que estiveram integrados nas NT (CCAÇ 12, incluída) (LG)...

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.




Leitura: uma obra-prima de Simenon, O Comboio de Veneza

Regressei a Finete e daqui a Missirá a cogitar sobre as minhas fraquezas e as de Bambadinca. Pressentia que estavam mudanças no ar, o inimigo mais forte e indiferente aos aldeamentos em autodefesa. O inimigo sabia o que queria, tinha sempre a seu favor o conhecimento da mata e o factor da imprevisibilidade. Nós só podíamos esperá-lo e destruí-lo perto do nosso terreno, retirando-lhe a facilidade dos abastecimentos. Vou saber em Junho, Julho e Agosto que o inimigo vai ter o desplante de lançar morteiradas e fogo breve e retirar. Uma vez vou perder a cabeça e persegui-los pela noite escura, mas cedo compreenderei que é um acto demencial.

Em Missirá aguarda-me a notícia que nessa madrugada parto para Mato de Cão. Em breve vou fazer 24 anos. É aqui que me estou a fazer um homem, há dez meses atrás era impensável supor que a vida do Comandante de Missirá e Finete fosse a do meu atribulado quotidiano. Não gosto nem desgosto, limito-me a agradecer a Deus a coragem que Ele me oferece.

Durante este tempo, li dois livrinhos (mas que grandes livros!) que falam de comboios. Primeiro, O Comboio de Veneza, por Georges Simenon. Justino Calmar está em férias no Lido de Veneza, com a mulher e filhos. Num dia quente de Agosto, tem que regressar a Paris e toma o comboio que o leva até Lausana e daqui à Cidade Luz. Na carruagem, é interpelado por um passageiro que viria de Belgrado ou do Trieste. Inúmeras perguntas, e Justino sem saber porquê responde a tudo. Em dado momento o passageiro pede-lhe para em Lausana ir buscar uma mala que está num cacifo na gare, tomar um taxi e entregar a mala numa residência perto da estação. Ele tem tempo, aceita a incumbência.

É aqui que começa a mudança da sua vida. Quando chega à morada, encontra uma mulher estrangulada. Sem saber como reagir, regressa ao comboio e daqui parte para Paris. Em casa descobre que a mala tem uma fortuna em dinheiro francês, americano e inglês. Espera um contacto que não chega. A mala muda de cinco em cinco dias de cacifo e de estação. Aos poucos, começa a gastar o dinheiro, inventa que está a ganhar nas apostas dos cavalos. A mulher e os amigos sentem que há diferenças desde o regresso de Veneza. Depois uma secretária, que nutre por ele uma secreta paixão, declara-se. Entrámos na recta final da tragédia: apanhado a fazer sexo pelo patrão no escritório, suicida-se.



Estátua do escritor belga Georges Simenon (1903-1989), na sua cidade natal, Luik.Fonte: Wikipedia, De vrije encyclopedie (Imagem do domínio público / This image has been released under the 'GNU Free Documentation License' ).

Vinte anos antes da sua morte, Simenon tinha, em Missirá, um jovem apaixonado leitor, de nome Mário Beja Santos, que está prestes a fazer 24 anos, e que é alferes miliciano do exército colonial português... (LG).


É uma obra-prima em que Simenon joga habilmente com as recordações de Justino, dando-nos o retrato de um homem comum que age como nós, sem deter as motivações e as consequências. As explicações essenciais não existem: Terá havido crime? Há relação entre aquela mala e a mulher estrangulada em Lausana? O que aconteceu ao homem que lhe entregou a mala e desapareceu? Temos aqui a tragédia do homem comum, a continuidade da linha de vida que não se controla, uma tragédia em que o ser hesitante é ultrapassado por todos os acontecimentos e então desiste.



Salão Lisboa (Foto: Mário Novaes, 1949). Arquivo Municipal de Lisboa, AFML - A12538. Ficava na Rua da Mouraria. Da autoria de José António Pedroso, foi construído em 1916. Era popularmente conhecido como o Cinema Piolho. Foi o primeiro edifício da cidade a ser desenhado e construído como sala de cinema ou animatógrafo... Ainda estávamos na época de ouro do cinema mudo... (LG)


O desconhecido do Norte Expresso é o primeiro livro que leio de Patricia Highsmith. Tenho sorte com a iniciação. Guy Haines vai reencontrar-se com Miriam para tratar do divórcio. É um arquitecto de 29 anos cujo talento começa a ser reconhecido. Guy pretende casar com Anne. No comboio é abordado por Bruno que lhe faz uma proposta macabra: Guy mata o seu pai e ele matará Miriam. Guy rejeita a proposta mas a fatalidade já está em movimento naquela carruagem do Norte Expresso. Enquanto leio, ocorre-me subitamente o portentoso filme de Alfred Hitchcock a que alude a capa deste livro da Colecção Vampiro. No meu abrigo, de vez em quando páro para olhar o beijo do par amoroso e lembro-me vezes sem conta dos cinemas que frequentei na minha adolescência e onde eram habituais os panos pintados e os cartazes.

... e recordações de Lisboa e dos seus cinemas


Lembrei-me do Cine Oriente, o Salão Lisboa, o Chant Éclair, o Cine Bélgica, o Rex (primeiro Lis), o Royal, o Pathé, o Alvalade, o Max... Sessões de dois filmes, um de aventuras ou acção ou de guerra, outro sentimental, comédia ou até musical. Lembrei-me da religiosidade de ir ao cinema , a combinação com os amigos, ia-se com a melhor roupa como para a igreja. O cinema era a suprema alegria das imagens reconfortantes com que nos identificávamos com os bons e os maus. Onde terei visto este filme de Hitchcock? Terá sido num cineclube, num ciclo alusivo a este mestre do suspense? Não sei e estou muito cansado. Vou repousar um pouco, tenho depois o ritual de ida a Mato de Cão. E aguardam-me muitas surpresas em Junho.

___________

Notas de L.G.:

(1) Sobre a Operação Lança Afiada (que mobilizou cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março de 1969), vd. os seguintes posts:

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal


(...) "Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros...

"Esse ataque ficou célebre: os tipos de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe... Claro que no dia seguinte o Caco Baldé [, alcunha por que era conhecido o Spínola,] deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS... Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné...

"A sorte dos gajos de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue...

"Podíamos ter morrido todos", dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã... Fomos depois nós , para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava libertada... Eu faria o mesmo, na minha terra...

"Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico: Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros. LG" (...).


(2) Vd, último post da série > 20 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1770: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (46): Encontros de morte em Sinchã Corubal, com a gente de Madina

(3) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

(4) Sobre o tenente Pimentel Bastos, primeiro comandante do BCAÇ 2852 (substituído a meio da comissão pelo tenente-coronel Pamplona Real), vd. os seguintes posts:


1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)

Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça junto ao velho obus 10.5, possivelmente de marca Krupp, uma temível arma que vinha da II Guerra Mundial... O obus é, por excelência, uma boca de fogo especializada em tiro curvo, de longo alcance... Ainda hoje tenho, nos meus ouvidos, o seu 'assobio' por cima das nossas cabeças, quando o Xime fazia fogo de apoio às NT, por ocasião de operações à Ponta do Inglês, ao Poidon/Ponta Varela, ao Baio/Buruntoni... O seu alcance era, porém, limitado: 10/12 km, no máximo, creio eu, com uma cadência de dois a quatro tiros por minuto, na melhor das hipóteses ... Não creio, por exemplo, que disparado do Xime conseguisse atingir a Ponta do Inglês. Ou que os obuses de Mansambo chegassem ao Buruntoni... Mas quem sou eu para falar de artilharia ? Tirei a especialidade de Armas Pesadas de Infantaria, mas juro que esqueci tudo, mal pus os pés na Guiné... É que deram-me uma G-3... (LG)

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > Assinalado a azul Bambadinca (sede de batalhão, na época o BCAÇ 2852), a verde Mansambo (CART 2339) e a vermelho a base do PAIGC do Baio/Buruntoni.

Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Foto: © Luís Graça. Direitos reservados.

Mais uma estória da nova série de estórias do Torcato Mendonça que foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69. Chamei-lhe estórias de Mansambo, aquartelamento construído heroicamente, de raíz, pelo pessoal da CART 2339 (1), e que não vinha no mapa...

Burontoni: Mito ou Realidade ?

por Torcato Mendonça

Ambas, pensamos nós. Foram escritos dois textos – em 14 e 23 de Novembro, pelo Beja Santos (2) e C. M. dos Santos, – que merecem ser complementados com novas informações.

O maior Santuário do PAIGC no Sector L1 era o Burontoni. Deixando de fora, a zona do Fiofioli e a margem direita do Corubal até á Ponta do Inglês.

Segundo as informações, situava-se na zona Baio/Burontoni, sensivelmente a cerca de 5/6 Kms a Sul do Xime e, talvez, 10/12 Kms a Oeste de Mansambo. Ver carta do Xime. O Baio/Burontoni foi destruído na Lança Afiada (3).

No início de Julho de 1968, o novo Comandante-Chefe, Brigadeiro Spínola, visitou Mansambo. O seu antecessor, General Shultz, nunca o vi. Nessa visita breve, falou-se da posição geo-estratégica do novo aquartelamento (Mansambo). Logicamente, o Burontoni., como principal base inimiga, foi falada.

O Comandante da minha Companhia, como não costumava ir nas operações, minimizou o que daquela base do IN se dizia. Abanei a cabeça e o Brigadeiro viu. Esperou, pelo fim do palrar do Capitão e, com aquela voz que o monóculo ajudava a transformar-se em voz de ópera bufa, disparou:
- Diga lá porque discorda, alferes? - Já tinha trocado breves palavras com o Capitão Almeida Bruno. Calmamente – general ou brigadeiro não come militar – pensei Estou tramado e respondi:
-A aproximação é difícil porque, segundo dizem, têm pequenos postos de sentinela, com vários elementos, antes da base principal. - O Cap Almeida Bruno veio em meu socorro e lá disse ser essa a informação, as bolanhas eram difíceis e mais umas explicações para acalmar o Velho.
- Só com uma operação bem planeada.

Ficou a pairar no ar: Burontoni qualquer dia está aí. Mas não. O BART 1904 (4) nunca preparou nenhuma operação para lá. Nessa altura, Junho/Julho de 1968, já tínhamos ido ao Galo Corubal (Xitole), Poidom e Ponta Varela (Xime), Madina e Sinchã Camisa (Enxalé) e outros acampamentos IN. Tudo com êxito. Geralmente acompanhados de outras forças, como a CART 2338, CART 1746 (Xime), Pel Caç Nat 52 (no tempo do Saiegh, antes do Beja Santos) e Pelotões de Milícias. Além disso continuávamos a ser a Companhia de intervenção do Sector, a construir o aquartelamento e a iniciar a acção psicossocial, para as autodefesas das tabancas vizinhas. Posteriormente só se concretizariam Candamã e Afia.

Em Outubro soubemos ir participar numa operação ao Burontoni. Já estava o BCAÇ 2852 em Bambadinca, a comandar o Sector. Por essa altura, a nossa experiência em combate era, infelizmente, alguma. Assaltos a acampamentos, emboscadas, ataques ao aquartelamento…

O dia chegou. A Companhia ia a quatro grupos e em Manssambo ficavam os não operacionais, os operacionais com problemas de saúde... E para reforço vinha o Pelotão de Milícias do Tenente Mamadu (5). A comandar o aquartelamento, ainda bem, ficou o Alferes Rodrigues por se encontrar inoperacional.

Em Bambadinca tivemos um briefing surrealista:
- Eles estão bem armados, têm armas pesadas, e… Claro que, devido ao factor surpresa, não vão puder utilizar esse material.

Claro! Ver filmes de guerra, género Canhões de Navarone deve ajudar a certos militares. Nome da operação: Meia Onça... Tinha ficado melhor Bichano ou Tareco…! Claro que, mesmo antes de sairmos, o IN já sabia.

As NT eram formadas por dois agrupamentos. Um saindo do Xime: Cart 1746 e o Pel Caç Nat 53, com o apoio de um Pelotão de Artilharia. Outro saindo de Taibatá: CART 2339, Pel Caç Nat 52 e 1 Grupo da CCAÇ 2401. Francamente não me lembro da constituição das nossas forças, só da CART 1746 do Xime. Soube agora ao ler o Historial da Companhia. Mas falha o relato. Não se passou assim. O que o Historial relata induziu o C. M. dos Santos em erro.

O Beja Santos relata, e bem, o briefing e, em certa medida, o desenrolar da operação. Eu estava lá. Aquela era a minha guerra e seria a do Marques dos Santos, se não estivesse de férias. Saímos de Bambadinca, passámos por Amedalai e virámos para Taibatá. Certamente, talvez alguém de Amedalai ou da Tabanca do Xime foi dar um passeio pelo mato. Encontrou, por mero acaso, o comandante dos Libertadores ou PAIGC – e esta hein? – e disse-lhe:
- Já saíram…

A nossa Companhia tinha novo comandante (o terceiro capitão) (6) e seria ele o comandante daquele agrupamento. A CART 2339 tinha dois oficiais – ele e eu. O Rodrigues, inoperacional em Manssambo, outro talvez de férias e, em Taibatá, ficaria o último, vítima de um acidente à chegada.

Saímos, a meio da noite com a missão: assaltar e destruir o Burontoni. O outro agrupamento saía do Xime com a missão: montar emboscadas em determinados lugares e proteger ou, se necessário, apoiar o nosso agrupamento.

Os guias eram fracos, tinham medo e diziam não conhecer bem a zona. Falei com um Milícia – o 91? - que já tinha estado no Burontoni mas vindo do Xime. Passadas poucas horas, depois da saída, verificámos que algo não estava certo. Acresce que a chuva não ajudava nada. Contudo a bússola não engana e não progredíamos bem. Parámos, conferenciámos e continuámos. Ao romper do dia nova paragem. Estávamos longe do objectivo. O Historial fala em Dembataco. Falso. Isso era para sudeste e nós caminhávamos para sudoeste, só que com muita volta…continuámos e sentimos que já devíamos estar detectados.

A meio da manhã sentimos, ao longe, o PCV (Posto de Comando Volante) na habitual DO 27. Ao longe e, ainda bem, do ar o silêncio era de ouro. Tentámos o contacto com o outro agrupamento. Nada. Nova paragem e conversa com o Capitão. Estava desorientado. Esta era a sua primeira operação. Creio que foi a última, talvez uma ida, em coluna ao Xitole. O teor da conversa que tivemos diluiu-se no tempo.

Contactámos o PCV e soubemos que o outro agrupamento não tinha atingido a posição determinada. Nós estávamos longe. De quê?! Perdemos o contacto. Por volta do meio-dia rebenta forte tiroteio. Percebemos ser Manssambo a enrolar. Ouvíamos o barulho da nossa pesada.

Convém dizer o que era a pesada. Cortava-se a tampa de um bidão de 200 litros e, do outro lado, só metade. Depois, bem depois, metia-se lá uma G3 e em rajadas curtas e cadenciadas fazia-se um barulho dos diabos. Arma perigosa… deve ter intrigado muita gente.

O IN respondia assim ao nosso atrevimento, atacando em pleno dia e perto do arame farpado, durante quase uma hora, Mansambo.

Passado pouco tempo foi restabelecido o contacto com o PCV. Ordens para abortar a operação. Progressão difícil até Taibatá. A bússola continuava a funcionar bem e muito melhor que os guias. Embarque nas viaturas e regresso a Bambadinca.

Foi das piores, senão a pior operação em que participei. Mal planeada, mal comandada, mal…mal…tudo e mais não digo!

Mansambo teve que ser remuniciado de héli. Os homens do Tenente Mamadu tinham o dedo do gatilho pesado… safa!

Ficou-me a imagem do comandante de Taibatá, um furriel miliciano. Tinha uma mosca (tufo de pêlos por debaixo do lábio inferior), género rabicho chinês ao contrário. Teria seguramente um palmo de comprimento. Ele torcia-a, ria-se e beberricava uma cerveja… O clima era terrível e o isolamento dava-lhe a pitada de sal e pimenta certas… Malhas que o império teceu.
_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

(2) Vd. posts de:

14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1276: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (20): A (má) fama do Tigre de Missirá em Bambadinca

23 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1306: Meia Onça, Meia Operação (Carlos Marques dos Santos, CART 2339)

(3) Sobre a Operação Lança Afiada (que mobilizou cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março de 1969), vd. os seguintes posts:

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

(4) Batalhão que antecedeu o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Este, por sua vez, foi rendido pelo BART 2917 (1970/72).

(5) O famoso régulo de Badora, de quem se dizia que tinha 50 mulheres, uma cada tabanca do seu chão... e vários filhos na CCAÇ 12.

(6) Vd. post de 14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1784: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!






Cartas e aerogramas enviados pelo José Casmiro Carvalho (Fur Mil Op Especiais, CCAV 8350) à família, na 2ª quinzena de Maio de 1973 (1). A última é de 30 de Maio, escrita em Gadamael, onde o Casimiro se juntou à sua destroçada e desmoralizada companhia. Alguns dias depois, ele será ferido em combate, em Gadamael, depois de ter ajudado a salvar e a evacuar o seu comandante, também ferido com gravidade (2).

A selecção, a revisão e a fixação do texto, bem como os subtítulos, são da responsabilidade do editor do blogue. Agradeço ao nosso camarada (que é tripeiro e vive na Maia) o carinho e o apreço com que ele me fez chegar este lote de correspondência. É um período doloroso para ele, por motivos óbvios e mais um: o seu velhote, seu cúmplice e confidente na correspondência de Guileje, faleceu ainda há pouco tempo (LG) .





Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > Três fotos com o Fur Mil Op Espec J. Casimiro Carvalho, a quem se podia chamar o homem da HK-21... Também era responsável pelo morteiro 81 (LG).



Guiné > Região de Tombali > Cacine > Abril/Maio de 1973 > Na altura (22 de Maio de 1973) em que Guileje foi abandonada pelas NT, o J. Casimiro Carvalho estava em Cacine, coordenando o reabastecimento destinado à sua companhia. Os géneros vinham de Bissau, em batelões, até Cacine, e depois em LDM até Gadamael e, por coluna, até Guileje. Estas fotos devem ser dessa época.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Fur Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho, na famosa porta de armas de Guileje (3)... Com ar de quem vinha ou ia dar um mergulho na...piscina. (LG).

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > A fonte que abastecia o aquartelamento e a tabanca de Guileje. Em primeiro plano, junto à bomba de água, o Fur Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho. A descontracção dos militares era evidente, para não dizer o aparente desprezo pelas mais elementares medidas de segurança... Presumo que esta foto seja ainda do início da instalação da CCAV 8350, em Guileje talvez finais de 1972 ou princípios de 1973... (LG).

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.



Guileje está à mercê deles!


Cacine, 22/5/73:


Queridos pais: Vou-lhes contar uma coisa difícil de acreditar como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada [a bold, no original], ainda não sei se foram os soldados que se juntaram todos e abandonaram o quartel, ou se foi ordem dada pelo Comandante-Chefe, mas uma coisa é certa: GUILEJE ESTÁ À MERCÊ ‘DELES’ [, em maíusculas, no original].


Não sei se as minhas coisas todas estão lá, ou se os meus colegas as trouxeram. Tinha lá tudo, mas paciência.


Se foi com ordem de Bissau que se abandonou a nossa posição, posso dar graças a Deus e dizer que foi um milagre, mas se foi uma insubordinação, nem quero pensar…


Mas… já não volto para lá!!! Não tinha dito ainda que Guileje era bombardeada pelos turras há vários dias e diversas vezes por dia. Os soldados e outros não tinham pão, nem água. Comida era ração de combate e não se lavavam. Sempre metidos nos abrigos e nas valas. A situação era impossível de sustentar. Vosso para sempre (…).

96 horas debaixo de fogo, sem pão nem água


Cacine, 25/5/73


Mãezinha: (…) Graças a Deus, estou óptimo, aqui em Cacine, onde (por enquanto) não há guerra.


O pessol fugiu, abandonando tudo lá, de Guileje, porque estavam a cair foguetões e granadas de canhão sem recuo, desfazendo padaria, depósito de géneros... O chão estava cheio de crateras , devido às granadas. Os militares de lá estavam há 96 horas debaixo de bombardeamento, sem beber nem comer (só algumas rações de combate que conseguiram apanhar), pois não podiam sair dos abrigos.


Deixaram 4 Berliets novas (550 contos cada um), outras camionetas, 2 geradores, 2 obuses novos (4 000 contos cada um), armas pesadas, toda a comida e bebidas ficaram lá, grande parte desfeitas, etc.


Era um inferno, alguns soldados estavam aterrorizados, morreu um furriel que estava num abrigo, com estilhaço na cabeça.


E eu aqui, em vez de estar com os meus camaradas neste momento de perigo… Os turras andavam por volta do quartel (a 300 m). Um abraço do seu filho (…).


PS – Ficaram lá 30 vacas abandonadas.



Mandaram de Bissau 6 urnas com chumbo...


Gadamael-Porto, 29/5/73


Pai:


Recebi hoje as fotos, ao chegar a este local onde se encontra a minha companhia refugiada, a 18 Km de Guileje, vindo de Cacine depois de ter acabado o meu serviço. Lá, em Cacine, passei uns dias óptimos.


Em Gadamel os grupos têm saído todos os dias para o mato e têm sido atacados todos os dias, caindo em emboscadas. Eu vou começar a sair também.


Mandaram de Bissauu 6 URNAS (com chumbo) para aqui. À ESPERA!!! O pessoal anda todo desmoralizado. Ficaram, em Guileje, 6 sacos de correio fechados, correio que nós, portanto, não recebemos.. Se eu não responder a essas cartas, já sabe porquê. As fotos que eu tinha, vossas, ficaram lá também. Isto é que é a GUERRA.


(…) Comigo não há novidade, não se preocupem. Estou óptimo. Eh! Eh! Já não penso tanto na Ana, talvez devido a isto, mas quase nem penso nele. Vamos a ver no que isto vai dar. (…) Não desanime que eu também não. Adeus. (…)




Amanhã já vou sair e levo a metralhadora ligeira HK-21



Gadamael, 30/5/73


Querida mãe: (…) Vou mandar um rolo de 12 fotos a preto e branco. (…) Eu, bem, graças a Deus. Mandem-me roupa interior e meias, pois não tenho quase nada (…): 5 cuecas,. 6 pares de meias (3 brancas e 3 verdes, no Casão Militar são a 17$00 cada par).


Tenham paciência mas é melhor isto do que morrer e a morte andou perto dos SITIADOS em Guileje.


Amanhã já vou e isto anda mesmo mau. Levo a metralhadora ligeira HK-21. Lubrifiquei-a hoje, toda. Antes de sair vou experimentá-la aqui no quartel (…).

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Nota de L.G.:


(1) Vd. posts anteriores:

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 9

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

(2) Vd. posts de:

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte).

19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

Vd. ainda post de 2 Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73) (Magalhães Ribeiro)

(...) "Exmo Senhor Chefe do Estado Maior do Exército:"Por, quando Comandante da Companhia Independente da Cavalaria 8350, em serviço na Guiné entre 1972 e 1973, sedeada em Guileje, ter sido ferido em Gadamael, nunca me foi possível propor uma homenagem pública ao Furriel de Operações Especiais CASIMIRO CARVALHO.

(...) "Quando fui ferido, foi este homem que me ajudou a deslocar para junto do Rio Cacine, pois eu mal me podia movimentar, deslocando-se em seguida debaixo de intenso fogo de morteiros e outra armas que, neste momento, não sei especificar, para conseguir um depósito de gasolina de forma a poder fazer movimentar a embarcação em que me evacuou para Cacine, como também outros militares que nesse momento já se encontravam junto ao pequeno cais.

"Nas reuniões anuais da nossa Companhia muitos falam dos actos de bravura deste furriel, desde, debaixo de fogo, conduzindo uma Berliet se deslocar aos paióis para municiar não só as bocas de fogo de artilharia, como para os morteiros, fazer ainda parte duma patrulha onde morreram vários militares ficando ele e outro a aguentar a situação, até serem socorridos, e ter sido ferido, evacuado para Cacine, o que não invalidou que passados poucos dias se tenha oferecido para voltar para junto dos camaradas no verdadeiro inferno em Gadamael.

"Esperando a maior atenção de Vª Exª para este assunto e agradecendo desde já toda a atenção que lhe possa dispensar. Abel dos Santos Quelhas Quintas, Capitão Miliciano de Artilharia na Reforma Extraordinária Nº Mec. 36467460, Deficiente das Forças Armadas" (...).

(3) Vd. post de 28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1467: Bem vindo a Guileje, Doutor (Mário Bravo)

Guiné 63/74 - P1783: Tese de doutoramento de Leopoldo Amado: Guerra colonial 'versus' guerra de libertação (João Tunes)


Guine > Região de Tombali > Guileje > 1970 > "Junto foto do meu arquivo referente a uma das alturas em que estive em Guileje, datada de Maio de 1970. Em primeiro plano, a rede de protecção em arame farpado. Atrás, abrigos e porta de armas. Vêm-se ainda os telhados, da esquerda para a direita, da caserna, do refeitório e do posto de transmissões"

Foto e legenda: © João Tunes (2006). Direitos reservados


Com a devida vénia transcrevo aqui a excelente peça bloguística, produzida pelo nosso camarada João Tunes, e inserida no seu blogue - Água Lisa (6) - , com data de 21 de Maio de 2007. 

O João, que foi Alf Mil Trms, no Pelundo e em Catió (1969/71), é um dos nossos camaradas que mais tem reflectido sobre o contexto político e ideológico em que se desenrolou a guerra colonial (1971/74). 

Às vezes, polémico, crítico, contundente, incómodo, cultivando a frontalidade, o João é sobretudo um cidadão militante e livre, um homem de grande lucidez e generosidade, absolutamente indispensável como maître à penser nesta nossa Tabanca Grande. 

Tenho saudades tuas, João. Visita-nos mais vezes. Ou melhor: não precisas de pedir licença para entrar, que a casa também é tua, pese embora nem sempre te sintas confortável nos espaços fechados, exíguos e às vezes clautrofóbicos, desta caserna da tropa, preferindo desenfiares-te para a bolanha, a savana arbustiva, o rio ou a floresta-galeria... (LG)


Segunda-feira, 21 de Maio de 2007 > GUERRA COLONIAL / GUERRA DE LIBERTAÇÃO
por João Tunes 

(Subtítulos e links da responsabilidade de L.G.)



A guerra colonial ainda resiste como tabu contornado na sociedade portuguesa. A abordagem deste drama, que durou treze anos, marcando, em perdas e danos, muitas dezenas de milhares de portugueses hoje acima dos 55 anos de idade mas que se repercutiu nos seus familiares, deixando assim marcas em várias gerações, não alcança, em termos de ocupação de memória e de evidência histórica, comparado com o espaço memorialista, narrativo e analítico ocupado pelo drama conexo e consequente da descolonização, uma repartição similar. E o filtro do ressentimento gerado pelo drama da descolonização foi e é um formidável gerador de preconceitos que actua como espécie de coveiro de memória relativamente ao drama colonial (antes da guerra e durante esta). Como se, para a maioria dos portugueses, se tivesse descolonizado aquilo que não se colonizou e se resistiu a permitir a separação, persistindo-se assim no mito salazarista difuso do Portugal “do Minho a Timor”, prolongando um ressentimento colectivo por nos terem arrancado, à má fila, bocados que “eram nossos”.

Guerra colonial, guerra do ultramar, guerra de libertação...

Mas os portugueses que falam e escrevem sobre a guerra colonial (alguns preferem chamar-lhe “guerra no ultramar”, o que tem uma marca política evidente, enquanto para os africanos ela é denominada como “guerra de libertação”, o que também significa muito) têm ainda, independentemente do enquadramento político e ideológico sobre ela, uma visão inevitavelmente eurocêntrica. Ou seja, é sempre um olhar sobre este sofrimento (ou gesta, para os “patriotas”) sedimentado da experiência ou da percepção interpretativa do "lado do colono" (no mínimo, do ponto de vista cultural), mesmo quando esse "colono" procura, o mais possível com o que melhor sabe, colocar-se na pele do "colonizado" e adoptar a sua causa.

Mia Couto, um escritor moçambicano de pele branca, exemplificou bem as diferenças quando referiu que enquanto os portugueses falam de "descolonização", os africanos não usam este termo porque para eles o que existiram foram "independências" (ou seja, não foram os europeus que descolonizaram, foram os africanos que conquistaram as independências dos seus países).

[É elucidativo que, quanto ao Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, esse mimetismo maior feito pelo salazarismo relativamente à perfídia do nazismo, depois replicado em vários outros locais de África, haja, entre a literatura do antifascismo militante, uma constância de referência ao período 1936-48, em que lá estiveram internados prisioneiros políticos europeus, quase se silenciando que o mesmo e odioso Campo foi reaberto em 1961, por despacho de Adriano Moreira, esse hoje notável e venerando professor de boas práticas democráticas, onde dezenas de milhar de africanos penaram até 1974. Quase parecendo que, nessa mesma iniquidade, um africano anticolonial sofreu menos que um antifascista europeu, quando o inverso é que foi verdadeiro.]

Um enorme défice de produção documental e de investigação historiográfica, do lado africano

Entretanto, da parte africana, muito mais escassa ainda é a produção de registos memorialistas e trabalhos históricos sobre as guerras de libertação. Por variadas e evidentes razões (altas taxas de analfabetismo e ileteratícia; atribulações políticas; falta de arquivos; fragilidade das estruturas e meios académicos; menor horizonte de vida que levou a que muitos dos que combateram já tenham falecido; maiores preocupações em sobreviver, consolidar a independência e garantir o futuro que lidar e fazer registo do passado).

Neste quadro, se os “antigos colonos” perdem pouco tempo a lembrar e pensar o passado colonial, os “antigos colonizados” ainda menos o fazem, o que beneficia o alargamento (conveniente para uns tantos) do “buraco histórico” que a guerra colonial / guerra de libertação representa na memória dos portugueses e dos africanos que têm como pátrias suas as antigas colónias portuguesas, sobrando, inevitavelmente, o espaço para os mitos e os ressentimentos, maus conselheiros para a saúde cívica dos povos.

Daqui que considere um facto notável, remando contra o silêncio das memórias, o trabalho persistente e competente do historiador guineense Leopoldo Amado (na foto de cima). Que, constituindo uma importantíssima e honrosa excepção, submete, no próximo dia 28, a um júri de doutoramentos da Universidade Clássica de Lisboa, em sessão pública, o seu notável trabalho de investigação sobre a guerra na Guiné (1963-1974) e que culminou num estudo comparado da mesma quanto aos dois lados da contenda (a mais dura no quadro das três guerras coloniais) e em que foi orientado pelo Professor João Medina (*) (**). Demonstrando, em boa tese, que os mitos e os ressentimentos abatem-se pelo saber.

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(*) Assim reza a nota informativa da Universidade Clássica de Lisboa:

Doutorando/a: Lic.º Leopoldo Victor Teixeira Amado
Doutoramento: Doutoramento em História - História Contemporânea
Título da Tese: “Guerra Colonial versus Guerra de Libertação (1963-1974): O Caso da Guiné-Bissau”
Data/Hora: 28 de Maio, 10H00
Local: Reitoria - Sala de Doutoramentos, Cidade Universitária, Lisboa


(**) – O meu elogio antecipado ao trabalho académico de Leopoldo Amado fundamenta-se no conhecimento prévio de que beneficiei, mercê da sua amizade que muito me honra, e para o qual, modestamente, dei o meu singelo contributo de mera opinião crítica na fase de elaboração final, valendo-me, como suporte, da memória registada no meu corpo e na minha alma, proveniente de dois registos contraditórios e num paradoxo que me empalou a juventude - o de antigo combatente na Guiné nas fileiras do exército colonial e o de militante activista contra a guerra colonial.

Guiné 63/74 - P1782: Bibliografia (6): O nosso doutorando Leopoldo Amado vai ter o seu 'baptismo de fogo' no próximo dia 28, na Universidade de Lisboa (Luís Graça)

Guiné (1963/74) > Guerra de libertação 'versus' guerra colonial ? Um case study... Esta vai ser a tese de doutoramento, em história contemporânea, do Leopoldo Amado, a ser apresentada e discutida em provas públicas, a realizar na Universidade de Lisboa, dentro de dias...


Foto: Em cima, guerrilheiros do PAIGC progredindo na mata (Fonte: Foto Bara > Fotogaleria (foto editada, com a devida vénia / edited photo, with our best wishes...) ... Pátria ou morte!... A Luta Continua... era o então slogan em moda, de inspiração guevarista...

Foto: Em baixo, militares portugueses da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) prontos para mais uma acção... O fotógrafo (ou alguém por ele) escreveu, ironicamente, no seu álbum: Viva a guerra, viva a morte!... Vivam os Panteras... Quando o penúltimo morrer, o último cumpre a missão... (Fonte: Torcato Mendonça, 2007).


Comentário posterior do nosso amigo e camarada Torcato Mendonça (Fundão): "São graduados do 2º Grupo da Cart 2339 – Esq/direita: Alf 1000 Torcato; Furriéis 1000 Sousa (foi ao 2º/3ª mês para a 3ª de Comandos); Rodrigues e Rei. O Sousa (Fernando Luís) foi substituído pelo Sérgio. Só se juntou a nós no embarque, ficou nos Comandos. Panteras era o nosso Grupo – A Divisa era essa. Há um escrito disso e fotos da malta toda. PS - Isto não foi á primeira. Só goela… mas havia muita união. Um abraço, ex – chefe do Grupo".



1. Mensagem do nosso Leopoldo Amado (1), com data de 16 do corrente:


Assunto - Provas públicas de doutoramento

Caro Luís,


Gostaria de te informar de que já me encontro no rectângulo, após uma estada de pouco mais de três meses na Guiné-Bissau (2).

Assim, por teu intermédio, comunico a todo o pessoal da tertúlia de que as minhas provas públicas de doutoramento terão lugar nos dias 28 e 29 do corrente, pelas 10:00 H, na Reitoria da Universidade de Lisboa.Um abraço a todos

Leopoldo Amado


2. Mensagem enviada ao pessoal da nossa Tabanca Grande, em 20 do corrente:

Amigos & camaradas:

Acabei agora mesmo de chegar do Funchal. E, ao abrir o meu correio, de casa, tive a grata surpresa de receber boas novas do nosso amigo Leopoldo Amado.

Ficam desde já todos convidados, os que puderem, a ir ouvi-lo defender a sua tese de doutoramento em história contemporânea. O título da tese é (estou a citar de cor) Guerra de libertação ‘versus’ guerra colonial: o caso da Guiné-Bissau ...

As provas, que são públicas, prolongam-se por dois dias, sendo o primeiro dia, 28 de Maio, 2ª feira, reservado ao candidato, e à arguição principal... Local: Reitoria da Universade Clássica, ao Campo Grande (Metro: Cidade Universitária)...

Seria interessante saber quem poderá ir ouvir e apoiar o nosso amigo e camarada de tertúlia...

Luís Graça

3. Até à data, tive os seguintes comentários:


20 de Maio de 2007 > Luís: Conto estar presente, pois é sempre um prazer ouvir, e aprender com alguém como o Leopoldo. Um abraço a todos. Carlos Fortunato, ex-Fur Mil da CCAÇ 13 (1969/71)

20 de Maio de 2007 > Amigos & camaradas: Já temos uma presença, a do Carlos Fortunato, além de mim próprio (embora dia 28 tenha aulas, às 14.30h). Luís

21 de Maio de 2007 > Bom diaTudo irei fazer para estar presente e levao um abraço fraterno ao Leopoldo. AB. José Martins

21 de Maio de 2007 > Por um Amplo Movimneto 'Leopoldo a Doutor' (pela Independente é que não) ou, como se dizia no meu tempo de jovem estudante, antes de ser mal fardado por ter sido fardado à força como paisano guerreiro:

MALTA, TODOS À CIDADE UNIVERSITÁRIA NO DIA 28!

João Tunes

22 de Maio de 2007 > Só um amigo de verdade escreve assim. Muito obrigado, caro Tunes. As tuas palavras constituem inquestionavelmente um importante incentivo.

Leopoldo Amado

Páginas Pessoais >

Lamparam II > http://guineidade.blogs.sapo.pt/

Lamparam > http://lamparam.blogs.sapo.pt/

22 de Maio de 2007 > Caro amigo Leopoldo:

Soube pelo Luís Graça que vais defender a tua tese de doutoramento nos próximos dias 28 e 29. Tinha-te dito que gostaria muito de estar presente, mas não me vai ser possível. É que, além de já ter que me deslocar a 2 de Junho a Sever do Vouga para o encontro da CART 1690, estou estes dias muito enrolado numa (muito boa) situação: a Delegação do Norte da Associação 25 de Abril está-se a preparar para ocupar uma nova sede, em edifício que foi cedido pelo Presidente da Câmara de Matosinhos. Temos de agarrar isto com unhas e dentes, e bem, pois é um avanço muito considerável em relação às muito más condições que tínhamos nas Escadas do Barredo, à Ribeira do Porto. E, como compreendes, para trabalhar nunca há muitos. São sempre os mesmos, como é hábito.

Porque a conheço, tenho a certeza que vais ter sucesso com a tua tese. Considero-a um trabalho genuíno e único num tema ainda muito pouco tratado, de grande interesse para quem quizer estudar a luta de libertação na Guiné.

Espero que tenhas já concretizado os patrocínios que tinhas em perspectiva, sobre o que, como te disse, já falei com o Jorge Araújo, do Campo das Letras. Diz-me qualquer coisa sobre isso, pois vou voltar à carga com ele depois do dia 29.
Um abraço e desejos de bom sucesso.

A. Marques Lopes

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts recentes do Leopoldo Amado:
25 de Fevereiro de 2007 >Guiné 63/74 - P1549: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (8): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte I

6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1566: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (9): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte II

17 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1603: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (10): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte III (Fim)

(2) Vd. post de 18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1444: Adeus, estou de malas aviadas para Guileje (Leopoldo Amado)

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1781: Memórias de Copá (1): Ambulância do PAIGC, de fabrico soviético, capturada pelo Marcelino da Mata, em Copá (A. Santos)


Guiné > Zona Leste > Sector L3 > Nova Lamego > 1973 (?) > Ambulância do PAIGC, de fabrico soviético, capturada pelas NT.

Foto: © António Santos (2007). Direitos reservados.


Mensagem do nosso camarada A. Santos, ex-Sold Trms, Pel Mort 4574/72, Zona Leste, Sector L3, Nova Lamego,1972/74:

Na sequência do último mail sobre armas e viaturas para o projecto Guileje (1), junto em anexo a foto de uma viatura de fabrico soviético, que tinha como função o transporte de feridos, mas quando foi capturada pelo grande Marcelino da Mata, na zona de Copá [vd. carta de Canquelifá] (2), estava carregada com armamento.

A foto foi tirada em Nova Lamego.

Estou a tentar reunir, entre o pessoal do Pel Mort 4574/72, fotos de interesse para o projecto.

A. Santos
SPM 2558
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts recentes sobre este tópico:

27 de Março de 2007 > Gúiné 63/74 - P1628: Projecto Guiledje: fotografias de armamento e equipamento, das NT e do PAIGC, precisam-se (Nuno Rubim)

12 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1753: Diorama de Guileje, 1965/67 (Muno Rubim)

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1756: Exposição de armamento apreendido ao PAIGC, aquando da visita de Américo Tomás (Bissau, 1968) (Victor Condeço)

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1764: Armamento do PAIGC (Nuno Rubim)

18 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1766: Guileje: A Bêbeda, uma Fox do Pel Rec 839 que ficará imortalizada no diorama (Nuno Rubim)

19 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1768: Guileje: A Fox, rebaptizada, dos Diabos do Texas (Nuno Rubim)

(2) Sobre Copá (aquartelamento abandonado pelas NT em 14 de Fevereiro de 1974), vd. posts de:

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1410: Antologia (57): O Natal de 1973 em Copá (Benigno Fernando)

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1409: Bibliografia de uma guerra (16): Pirada, Bajocunda, Canquelifá, Copá: o princípio do fim (Beja Santos)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

Guiné 63/74 - P1780: Zé Neto: Um herói de Guileje homenageando os heróis de Gandembel

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > O então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado), que exercia funções de primeiro-sargento da Companhia, comandada pelo Cap Corvacho. O Zé Neto, como é carinhosamente tratado entre os seus camaradas e amigos, é autor de um notável conjunto de textos, já publicados na I Série do nosso blogue, com as suas memórias de Guileje (1)...

Foto: © Zé Neto (2006). Direitos reservados


Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º Encontro da Tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné > O Idálio Reis, ex-Alf Mil da CCAÇ 2317 (Gandembel/Balana, 1968/69), autor de uma notável fotobiografia sobre a sacrificada unidade (2)...

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados


1. Reprodução de dois posts do Zé Neto:

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCII: Confusão acerca da CCAÇ 2317 (Gandembel, 1968/69) e da CCAÇ 2316 (Guileje, 1968/69) (Zé Neto)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXV: Os heróis de Gandembel (Zé Neto)



11 de Abril de 2006 > A heróica e desastrosa aventura de Gandembel


Texto do Zé Neto, que mudou de endereço de e-mail e que estoicamente deixou de fumar há umas semanas atrás, para bem da saúde dele e da alegria geral da caserna... (LG)

Meus amigos:

Deve haver uma enorme confusão sobre a CCAÇ 2317. Esta companhia, comandada pelo Cap Barroso de Moura, esteve na área de Guileje em 1968/69 e não 1967/68, como vem referido em blogue anterior.

Propriamente na tabanca de Guileje (ou Guiledje) apenas esteve de 20 de Março a 8 de Abril [de 1968]. Nesta data seguiu para a heróica e desastrosa aventura de Gandembel que consta dos meus escritos anteriores (3).

A sua irmã, a CCAÇ 2316, é que ficou estabelecida em Guilege. (Notem Guile...para todos os gostos).

Por agora é tudo, não esquecendo o meu agradecimento pelas muitas mensagens de Força, Zé, resiste ao cigarro!, que tu, Luis, desencadeaste na malta do blogue.

Abraça-vos o velho Zé Neto.



23 de Maio de 2006 > Um herói que quer deixar de fumar, fala sobre os heróis de Gandembel


Texto do Zé Neto a quem eu há dias disse: "Grande Zé! Como é bom receber notícias tuas! Se voltaste a escrever e a ‘emailar’ é bom sinal!"... Pois é, ele está de volta, o nosso primeiro de Guileje, e hoje valente capitão em guerra contra o tabaco!... Parabéns, Zé (e permite-me esta inconfidência: o teu bom exemplo deve ser conhecido e seguido por outros amigos e camaradas).. Sê bem vindo, de regresso, à nossa caserna (agora já não preciso de te pedir para deixar o cigarro lá fora!...). (LG)

Meu caro Luis:

Não. Não desapareci. Apenas hibernei para vencer o tabágico vício. E estou a conseguir. Vou a caminho do quarto mês sem cigarro.

Mas o assunto é a chegada do Idálio Reis ao blogue (3). Como se pode verificar, eu já tinha referido aqueles bravos nos meus escritos. Veja-se no Post 423 a blague do 1º Martins que calçou a cagadeira (4). Este senhor é meu companheiro de férias de Setembro em Lagos e, nas conversas do bar, faz sempre questão de evidenciar a colaboração que lhe prestei, porque, confessa, na altura não estava muito calhado nas funções do seu posto à frente duma companhia.

Mais adiante, no Post 544, registo algumas considerações sobre a CCAÇ 2317 e a sua odisseia (5): o ex-alferes Reis deve ter muito que contar!!!

Para ajuda vou anexar um pequeno trabalho de elaborei a partir da preciosa obra intitulada (e já toda desencadernada e rascunhada) História da Unidade - BART 1896.

Por agora resta-me mandar um abraço muito forte à tertúlia. Outro, para ti, do Zé Neto.


OS HERÓIS DE GANDEMBEL

Estou certo de que seria reconfortante para um punhado de bravos do Exército Português que algum dos Comandantes do PAIGC de então contasse, com a sua dignidade de militar, o que foi para eles a campanha de Gandembel e Ponte Balana em 1968/69.

Como interveniente muito próximo da gesta dos rapazes da [CCAÇ] 2317, sirvo-me da História da Unidade (BART 1896) para trazer à tona da memória alguns pormenores duma batalha pouco conhecida. É uma pequena achega com a qual quero reafirmar a minha profunda admiração pelos camaradas que foram deliberadamente atirados para o massacre pelos senhores de Bissau.

A Operação Bola de Fogo destinou-se “à implantação de um aquartelamento para efectivo de companhia, no Corredor de Guileje”.

Desenvolveu-se entre 8 e 14 de Abril de 1968, com a seguinte “Força executante”:
- CART 1613
- CART 1689
- CCAÇ 2316 (-) (3 Gr Comb)
- CCAÇ 2317
- 3ª COMP COMANDOS (-) (2 Gr Comb)
- 5ª COMP COMANDOS (-) (2 Gr Comb)
- PEL REC FOX 1165
- PEL SAPADORES/CCS /BART 1896
- PEL CAÇ NAT 51
- PEL CAÇ NAT 67
- PEL MILÍCIAS 138 e 139
- ELEMENTOS DO BENG 447
- APAR (Apoio Aéreo)

Instalado o Aquartelamento em GUILEJE 8 D4 -93 (Coordenadas de Gandembel)

Durante a operação o IN flagelou 7 (sete) vezes a posição, causando às NT 2 mortos, 13 feridos graves e 34 ligeiros.

Até 25 de Junho de 1968, data em que o BART 1896 foi substituído no subsector pelo BCAÇ 2835 (a que a CCAÇ 2317 pertencia), o aquartelamento de Gandembel foi flagelado com fogo de Mort 82 e Canhão S/R por 52 (cinquenta e duas) vezes.

Normalmente os ataques duravam entre 8 e 15 minutos. São de destacar os três de 19 de Abril de 1968 às 3h45, 4h20 e 5h00; os três de 30 de Abril, às 2h15, 21h20 e 22h15; e os quatro de 14 de Maio (não houve registo das horas).

José A S Neto


2. Comentário de L.G.: Hoje mesmo, mandei, pelo nosso correio 'interno', a seguinte mensagem: "Amigos & Camaradas: Permitem-que vos chame a atenção para o extraordinário documento, da autoria do Idálio Reis, que temos vindo a publicar (infelizmente, com alguma irregularidade) sobre essa desastrada e heróica aventura de Gandembel, como lhe chamou há um ano atrás o Zé Neto... Gandembel, a terra dos homens-toupeira, mas também dos rapazes de nervos de aço...

E a propósito deste camarada, o Zé Neto, que esteve em Guileje, quero-vos dizer que as notícias sobre a sua saúde não são as melhores... Há tempos falei com ele, e soube, através da família, que ele está internado no Hospital Militar em Belém, no serviço de oncologia... O nosso patriarca pode receber visitas entre as 9 e as 21h, segundo as notícias (que são tristes) que me chegaram, mais recentemente, da sua querida neta... De qualquer modo, ele precisa da nossa força e do nosso carinho, neste momento difícil. Como ele lhe disse há tempos ao telefone: Zé, vencestes muitas guerras, não vais perder esta batalha!... Oxalá! Aqui vai para ele e para o Idálio Reis um forte abraço".

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

(...) "10ª (e última) parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).

"Recorde-se a justificação que ele deu para partilhar connosco as suas memórias de Guileje: Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte muito significativa das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só a 'matar pretos' enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de famíli...

"Esta confiança, em mim e na nossa tertúlia, eu tenho que a agradecer ao camarada Zé Neto. Faço votos para que este fim seja apenas um até breve, até ao meu regresso... LG" (...)

(2) Vd. posts de

19 de Anbril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

18 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69 )

(3) Vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel


Hino a Gandembel

Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.

- Meu Alferes, uma saída!
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é pr’ponte!,
Logo se ouve dizer.

Oh!, Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (i) e morteiradas.
Oh!, Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se ligam os rádios
Ao som de estrondos e tiros.

A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (ii)
É preciso protecção.

Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.

Temos por v’zinhos Balana (iii),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.

Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!

Recolha: José Teixeira / Revisão de texto: L.G.

(i) Verylights
(ii) WC
(iii) A famosa ponte sobre o Rio Balana
(iv) A espingarda automática G-3


(4) Vd. post de > 23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(4): os azares dos sargentos

(5) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo

Vd. também a série Fotobiografia da CCAç 2317:

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel

2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras

9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em

23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço