Capa de uma brochura sobre higiene sexual, sem data, publicada pela Direcção do Serviço de Saúde Militar, e com destino às tropas mobilizadas para a guerra colonial... Reproduzida, com a devida vénia, da página da CCAÇ 3387, Escorpiões (Angola, 1971/73), bem como o excerto sobre os "ligeiros conselhos de higiene sexual" (Os nossos especiais agradecimentos ao Mário Ferreira da Silva, de Cacia, que criou e alimenta esta página, e a quem damos os nossos parabéns).
Ligeiros Conselhos de Higiene Sexual
Numa época em que um homem ainda podia ter relações sexuais sem o risco de apanhar doenças incuráveis, para as quais ainda não há qualquer hipótese de tratamento à vista, o exército português, na segunda metade do século XIX, tinha não apenas o cuidado de efectuar acções de sensibilização para os problemas das doenças venéreas, como também distribuía frequentemente documentação escrita, em forma de pequenas publicações num formato A5, na esperança de que os militares a lessem.
Volvidos mais de 30 anos após o término de um período em que os nossos homens eram obrigados a férias forçadas por terras distantes, vão-nos chegando verdadeiras relíquias documentais, que aqui arquivamos e damos a conhecer, após a devida conversão para um formato electrónico.
O presente documento, é uma publicação da Direcção do Serviço de Saúde Militar, rigorosamente transcrito e do qual reproduzimos apenas a capa da publicação, num formato A5, tal como anteriormente dissemos.
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DIRECÇÃO DO SERVIÇO DE SAÚDE MILITAR > LIGEIROS CONSELHOS DE HIGIENE SEXUAL
LEMBRA-TE:
– Que depois de teres contacto sexual com mulher é obrigatório procurares o posto antivenéreo [ P. A. V.] da tua unidade; e deves procurá-lo dentro de 3 horas, o máximo, depois desse contacto, para tirares resultado;
– Que tens no P. A. V. a garantia da tua saúde; e sabes que a tua saúde é o melhor capital de que dispões;
– E que, não procurando o P. A. V., não te desinfectando, arruínas a tua saúde para sempre, contraindo doença venérea; e depois levas para casa mal ruim que pegarás à tua mulher e que transmites a teus filhos.
FICA SABENDO:
– Que essas doenças venéreas são a blenorragia (corrimento de pus pela uretra) e que aparece alguns dias depois do contacto sexual;
– As feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus (cavalos duros) podem aparecer só passadas algumas semanas, e que muitas vezes se não dá pelo aparecimento, porque podem não doer; e há outras fendas no pénis (cavalos moles) que dão muitas vezes inchaços nas virilhas (as mulas).
TOMA CUIDADO:
– Com as mulheres que se dizem muito sérias e saudáveis e em geral são mais perigosas do que as outras. E procura não ter relações sexuais com mulher que tenha feridas, caroços nas virilhas ou no pescoço, rouquidão, aftas, purgação ou qualquer corrimento, que tenha as roupas manchadas, ainda que para isso te dê qualquer desculpa e que diga não ter isso importância alguma.
PROCURA:
– Fazer uma completa e boa desinfecção e para isso segue as regras que estão afixadas no P. A. V., e assim:
– Urina com força (pois que, urinando, fazes uma boa lavagem da uretra) e baixando as roupas convenientemente utiliza o mictório cavalgando com a face voltada para a parede e ensaboa, com o sabão desinfectante, durante um minuto, tudo o que esteve em contacto com as partes genitais da mulher, lava bem tudo com bastante água e, a seguir, repete a lavagem com mais sabão e durante 2 a 3 minutos.
ATENÇÃO:
– Nunca te fies na experiência apregoada das praças velhas e procura sempre o P. A. V., nunca te esquecendo que o tens de fazer dentro de 3 horas, o máximo, pois que, mais tarde, a desinfecção já não tem efeito; e mais, sempre que tenhas qualquer suspeita de doença venérea, consulta sempre o médico da tua unidade.
Post Scriptum - Segundo pesquisa que fiz posteriormente no catálogo da Biblioteca Nacional, esta brochura, de 12 pp., teria sido publicada muito anos antes do início da guerra colonial, em 1936, sendo o seu autor José Nevil de Ascenção Pinto da Cunha Saavedra (1895-?). Há indicação que teria sido uma separata da Revista Militar. De qualquer modo é de registar que p exército (ou o seu serviço de saúde militar) era muito mais pragamático e muito menos hipócrita, em matéria de prevenção das doenças do foro sexual, do que a generalidade das outras instituições da sociedade portuguesa da época... LG.
1. Texto, sof a forma de 3 mensagens e comentários recentes, do Armandino Alves, ex-1º 1º Cabo Enf da CCAÇ 1589 (Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, 1966/68), sobre a questão dos nossos médicos e demais pessoal do Serviço de Saúde Militar (*), no tempo da guerra colonial, tema de que temos falado muito pouco no nosso blogue (**), incluindo a sua história:
(i) 2 de Setembro de 2009:
Caro Luís Graça
Como está explícito no que escreveste [, Poste P4891] (**), os oficiais Médicos estavam sediados nos Comandos de Batalhão e faziam serviço nas Companhias Operacionais por escala Quinzenal ou Mensal e que raramente era cumprida. Muitas vezes nem cumprida era por motivos metereológicos. Por exemplo na altura das chuvas não havia médico pois as avionetas não podiam aterrar.
Quanto a nomes, pouca gente deve saber o nome, a não ser aqueles que pertenciam à CCS ou os Furriéis Enfermeiros que eram quem os assessoravam nas consultas. Eu, por falta de Furriel na minha Companhia, assessorei uma vez em Fá Mandinga e outra vez em Béli. Mas as consultas eram tão rápidas que nem tempo tínhaos para lhe perguntar o nome.
Por exemplo: Um dia estava com a minha esposa e um filho num consultório médico na Rua de Aviz, no Porto, para uma consulta de Pediatria. Esse consultório era partilhado por vários médicos de várias especialidades. Entretanto entra um senhor bem posto que olha para a sala de espera e de repente dirige-se a mim e pergunta-me:
- Você esteve na Guiné, não esteve ?! - Eu respondi-lhe que sim.
- E não me conhece ? - Eu olhei para ele e disse-lhe:
- Sinceramente, não!
Então ele disse-me:
- Eu fui o Médico que o safou de ir fazer Operações para o mato quando estava em Fá Mandinga.
Cumprimentámo-nos e eu nem lhe perguntei o nome. Não sei se ainda é vivo, se continua a exercer medicina e se continua com o consultório na Rua de Aviz.
Quanto aos Hospitais na Guiné, além do HM 241, havia o Hospital Central de Bissau, que mais parecia um matadouro e que se destinava à população civil.
Quanto à Metrópole, além do Hospital Militar da Estrela e Anexo, havia o Hospital Militar Regional nº 1 no Porto, o Hospital Militar Regional nº 2 em Coimbra e o Hospital Militar Regional nº 3, salvo erro em Évora.
Atualmente o Hospital Militar no Porto é 5 estrelas, parece um Hotel comparado ao tempo em que lá estive a tirar a especialidade.
O Hospital Militar da Estrela ficou mais conhecido porque as evacuações eram todas feitas para lá porque tinha lá perto o Aeroporto Militar de Figo Maduro e não convinha dar muito aparato a essas operações,q ue normalmente eram noturnas.
Armandino Alves
(ii) 2 de Setembro de 2009:
Caro Luís Graça
Sinceramente não sei a Constituição do Serviço de Saúde Militar (SSAM). Quando terminei a recruta em Leiria, fizemos a Formatura e um Oficial ia lendo os nomes e indicava onde nos devíamos apresentar. A mim calhou-me o Regimento do Serviço de Saúde em Coimbra. Entretanto soube que tinha existido na Rua da Sofia o Batalhão
do Serviço de Saúde que tinha sido extinto .Portanto íamos cumprir 4 meses de instrução teórica e depois mais 2 de prática num dos Hospitais Militares.
A mim e por sorte calhou-me o HMR 1 no Porto, pois fiquei em casa. Chegado ao Hospital fui colocado no Serviço de Infecto-Contagiosas onde o que aprendi foi a dar injecções de Penicilina e Estreptomicina. Foi aqui que vi morrer o primeiro recruta proveniente de Vila Real com a febre dos Fenos e que tinha sido obrigado a fazer um crosse àchuva com 40º de febre. Esteve ligado a uma máquina aspiradora que lhe aspirou tudo. Morreu num sofrimento atroz. Quando cheguei ao Hospital, cerca da meia noite, pois ia entrar de enfermeiro de dia, fui informado pelo meu colega que tinha que levantar a farda e vestir o morto, pois de manhã chegava a Família com o armador. A casa mortuária era nas traseiras do Hospital. Lá fui com a farda de gala e quando cheguei deparei-me com o morto completamente nu em cima de uma mesa de pedra mármore, sem sequer ter um lençol a tapá-lo.
Puz-me a pensar como é que me ia desenrascar sozinho e lembrei-me que a minha avó dizia que se devia falar com os mortos como se estivessem vivos. E não é que é verdade?
Chamei-o pelo nome e pedi-lhe para ele dobrar o braço para lhe vestir a camisa e ele deixou dobrar o braço. Ele já estava em rigor mortens. Só não consegui que os pés se mexessem e assim os calcanhares iam nos plainitos.
Terminada a especialidade, voltei a Coimbra e logo fui despachado para a Academia Militar em Dona Estefânia onde estive de 24 de Junho 66 até á minha mobilização. Aí sim era um serviço de saúde 5 estrelas, pois era para Oficiais de Carreira, de General para baixo. Era nessa altura responsável por esse serviço o Dr.
Pancada da Fonseca, salvo erro Capitão nessa altura. Tínha-mos um 1º Sargento Enfermeiro que tinha estado em Macau e vários 1ºs Cabos Enfermeiros.
Nessa altura eu ainda era Sodado Enfermeiro pois, apesar de ter sido promovido a Cabo em Fevereiro, só me foram entregues as divisas à entrada do barco.
Os Furriéis já eram enfermeiros na vida civil ou tinham terminado o Curso de Enfermagem. Não sei se faziam a recruta normal e no fim eram colocados nos HM ou iam directamente para os Hospitais.
Quanto aos Médicos idem aspas. Os Especialistas deviam ser recrutados nos Hospitais Militares pois lá existiam médicos de carreira militar com altos postos.
Isto é o que eu posso dizer sobre o serviço de saúde.
Armandino Alves
(iii) 4 de Setembro de 2009:
Assunto – Serviço de Saúde Militar (SSM)
Caro Luís Graça
Ainda sobre hospitais na Guiné.
Todos sabemos que tirando o HM 241 não havia nada em condições em qualquer cidade guineense. Mas podia haver, se os Comandos de Batalhão quisessem e Médicos Especializados quisessem.
Mas ninguém queria ir para o mato. Como deve ser do teu conhecimento, havia vários aquartelamentos que possuíam um veículo que era atrelado a uma viatura e se chamava Atrelado Sanitário. Fazia parte desse atrelado uma tenda enorme que, depois de armada, era um hospital de campanha. Nos seus vários cacifos tinha todo o material para intervenções cirúrgicas, medicamentos, incluindo morfina em grande quantidade, além de tudo o necessário para pelo menos se tentar salvar uma vida. Mas faltava o melhor : Quem trabalhar com esse material.
Como sabes os médicos recrutados para Batalhões ou Companhias eram de Clínica Geral e acabadinhos de se formarem. De bisturis, pinças e quejandos só o que viram no Hospital. Se formos pelos Furriéis enfermeiros, o panorama era o mesmo, pois também eram pessoal que tinha acabado o curso e se calhar nem o nome de algumas peças conheciam. E isso eu posso atestar, pois em Fá Mandinga tínhamos um atrelado desses e, quando o recebemos da Companhia que fomos substituir, tinha lá uma relação em A4 com o o nome das peças e a quantidade. O Furriel Enfermeiro abatia as peças e o Cabo subrepticiamente mudava-as para outro cacifo e aí já tinham nome pois entretanto tinham sido roubadas.
Quanto a nós, Cabos Enfermeiros, só servíanos para dar chatices pois era necessário de mês a mês limpar o pó ou a humidade para não ganharem ferrugem.
Ora o que eu queria dizer era que, se nas sedes de Batalhão em vez de um Médico de Clínica Geral, houvesse um Médico Cirurgião podiam-se salvar muitas vidas ou pelo menos estabilizar a vítima até chegar ao Hospital. Pelo menos aliviava-se o Hospital Central para os feridos graves… Mas lá, como cá, quem é o especialista que quer ir para Trás os Montes, Beira Alta ou Alentejo ? Se for Lisboa Porto ou Coimbra tudo bem.
Também aqui estava em causa a remuneração. Um médico especialista nunca tinha patente abaixo de Capitão e um Cirurgião talvez Major ou Tenente Coronel.
Quando eu fui para a tropa, se em vez de recrutado fosse cooptado para o SSM, ia com o posto e Cabo e com o vencimento dos CTT pois já era funcionário dos quadros e descontava para a CGA.
Os meus cordiais cumprimentos.
Armandino Alves
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Notas de L.G.:
(*) Vd. programa científico do recente XIV Encontro de Saúde Militar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Lisboa, Instituto de Estudos Superiores Militares, 6-8 de Abril de 2009
(**) Vd. os poestes anteriores da série Os Nossos Médicos:
15 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3899: Os nossos médicos (1): Alf Mil Médico José Alberto Machado (Nova Lamego)
2 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4891: Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73) (Luís Graça / António Graça de Abreu)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 6 de setembro de 2009
Guiné 63/74 - P4909: Blogoterapia (124): Na Guiné também houve sacanas! (António G. Matos)
1. Mensagem de António G. Matos, ex-Alf Mil MA da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, que nos foi enviada em 6 de Setembro de 2009:
Na Guiné também houve sacanas!
Quentin Tarantino, com a sua mais recente produção - sacanas sem lei -, teve o mérito de me fazer debruçar sobre o layout de comentários/postes do blogue para, ainda que num registo meramente esporádico, vos possa dar conta de ter pegado na minha faca de mato usada na Guiné, amolá-la convenientemente, testar o fio da lâmina no corte longitudinal dum cabelo, e imaginar o "descascar" do escalpe de alguns "basterds" que, felizmente, não tive o desprazer de conhecer naquele tempo ido.
Depois, foi dar largas ao dedilhar no teclado como se de um taco de basebol se tratasse, tendo em falsos e despudorados ex-combatentes da Guiné a cabeça a rachar ao ritmo das potentes cacetadas desferidas pelo Donny Donowitz!
O mundo é redondo e a sacanice é do tipo do azeite na água: vem sempre ao de cima!
Mais cedo ou mais tarde!
A ideia de marcar os nazis a golpes de navalhada, na testa, com a suástica, de modo a não passarem despercebidos depois de despirem a farda, pareceu-me boa para evitar as dezenas de anos que os verdadeiros caçadores da espécie levam a dar com eles.
A nossa guerra também pariu quem merecesse uns mimos semelhantes (a suástica podia ser substituída por um papagaio) o que lhes daria tento na língua e nos livrava do incómodo de os ouvir...
Tarantino dá vida a uma visão alternativa do que podia ter sido o fim do III Reich e, consequentemente, da II guerra mundial.
Eu, numa altura em que já todos temos sensibilização ecológica, contentava-me em separar o lixo que por vezes aparece no blogue e, à falta dum provedor, deitá-lo-ia directamente na trituradora a caminho da incineração.
Porque, diz-se, o blogue é grande, e eu, não deixando de corroborar a ideia, grito que grandes, grandes mesmo, somos todos nós que fomos lá, que provámos o sabor da terra onde caímos muitas vezes, que soubemos o que é sofrer por levar um tiro, um estilhaço, arrancarem-nos uma perna, ver morrer um amigo, etc., etc., etc., volto (com a pouca autoridade que o número de intervenções me confere) a pedir ao Luís Graça, com a ajuda dos seus mais próximos colaboradores que tentem evitar o desalento dos tertulianos de modo a que se não perca a dinâmica do boom de entusiasmo de que ainda goza este espaço.
Aos camaradas Luís Faria, Manuel Maia e José Matos Dinis, agradeço as vossas palavras que muito me sensibilizaram e não poderia deixar de mandar este texto pelo respeito que me mereceram.
Sabe quem melhor me conhece que não sou de voltar a cara a uma boa polémica e não mudo de opinião por força de gritinhos mais ou menos histéricos impregnados que sejam de ameaças veladas.
Para medo, tive-o na Guiné por temer não trazer aqueles rapazes cujas famílias mos confiaram.
Infelizmente, tal aconteceu e, em sua homenagem, permitam-me o nojo por quem se julga intimidador.
Um abraço,
António Matos
Alf Mil MA da CCAÇ 2790
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Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
22 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4725: Blogoterapia (120): Como falam as fotografias (António G. Matos)
Guiné 63/74 - P4908: História da CCAÇ 2679 (25): Conversa com o Januário (José Manuel M. Dinis)
1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 3 de Setembro de 2009:
Caríssimo Carlos,
Para que não molengues nos calores do Verão, aqui vai mais um exercício de memória sobre a minha viagem africana pela Guiné e, já adivinhaste certamente, destina-se a que o prepares para o blogue da Tabanca Grande.
Para os atabancados, e para ti em especial, um abraço fraterno.
Conversa com o Januário
No alpendre da casa dos furriéis, com vista para a parada, a Secretaria, a Cantina, e para o outro lado, até à casa do Silva, portanto, no melhor local de Bajocunda, jazia uma mesa de ping-pong, que não cumpria a função a que fora destinada, em virtude da falta de rede, das raquetes e bolas, que o pessoal nunca teve a lembrança de comprar, priveligiando a preguiça mental e o acomodamento. Desporto? Exercício físico? Era só o que faltava! A malta queria era descanso.
Dessa maneira, a utilização da mesa fora reconvertida. Transformou-se em assento largo, que também dava para estender o pernil. Era nela que os furriéis se espojavam molengando, ou assentavam as nádegas na periferia do tampo, para conversas variadas ou simples coscuvilhices sobre bajudas. Dali também se trocavam graçolas com o pessoal que se deslocava para o rancho ou a cantina, e no regresso aos abrigos.
Foi daquela mesa que variadíssimas vezes perdi o olhar em majestosos pôres-de-sol, momentos de evasão que os efeitos pictóricos sobre o céu me proporcionavam.
Ali, sentado à conversa com o Tenente Januário, um jovem oficial com carreira auspiciosa que a guerra proporconara, a certa altura do diálogo ele referiu que estava com os portugueses, porque éramos os mais fortes mas, um dia, quando fôssemos embora, a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos.
Nunca fui de questionar, de querer sacar informações pessoais, nem me recordo da sequência daquela conversa, apenas registo aquela afirmação, de onde se podem extrair várias noções, de entre as quais: que o Januário estava na tropa pela vantagem que a situação de oficial lhe proporcionava na vida guineense, o que ganhava não era dispiciendo e projectava-o socialmente; também deixou claro que acreditava na emancipação da Guiné, mas não esclareceu, se por acção do PAIGC, se por entrega do poder a uma super-estrutura patrocinada pelos portugueses, onde ele, naturalmente, esparava ter acolhimento. Esta hipótese seria interessante de averiguar, se alguma vez foi ventilada entre o Spinola e os homens-grandes.
Inequivocamente, porém, exprimiu a raiva que muitos guinéus sentiam em relação aos cabo-verdianos, que detinham largo poder administrativo e repressivo. Ficou também patente alguma ambição pessoal, quando referiu que a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos, como se fosse um desígnio que lhe estivesse destinado. Ou então, talvez tudo não passasse de toleima, de ambição e vaidade próprias de quem sobe na vida sem uma boa estrutura mental, nem saber situar-se perante a comunidade.
E registei, por último, a sua indiferença pelos portugueses. Ele combatia connosco porque éramos mais fortes e, acrescento eu, pagávamos bom salário. Não referiu qualquer patriotismo ou sentimento agregador à presença portuguesa, evidenciando a incongruência da sua posição no exército.
Finalmente, ficou por se saber porque não se juntou ao PAIGC na luta pela independência, já que a autonomia da Guiné estava no seu horizonte (daí eu agora admitir que pode ter havido abordagens por parte de Spínola), e também ficou por se saber porque razão parecia convicto da retirada dos portugueses.
Mais tarde, aquando da Operação Mar Verde, não fiquei muito surpreendido com a sua resolução, o que me surpreendeu, foi a notícia do enforcamento (?) subsequente e o tremendo erro de avaliação que resultou daquela atitude.
Ou ele andava num turbilhão de conflitos pessoais, sem coragem para a escolha de um rumo definitivo e arriscou, ou atraiçoou os portugueses mediante alguma causa inesperada, ou, atraiçoando, foi atraiçoado.
As primeiras hipóteses corresponderiam a reacções espontâneas. A última, pelo contrário, a uma cilada que não percebeu. Fica tudo por esclarecer.
Duas biografias do Foxtrot
Hoje vou abordar as biografias de dois valorosos elementos do Foxtrot, quase podendo dizer-se, que a biografia de um pode confundir-se com a do outro, tal a similitude na origem e formação, como nos comportamentos e presença na Guiné.
Refiro-me aos atiradores de infantaria, os senhores João Baptista de Freitas e João Rodrigues Lorêto.
Ambos oriundos da ruralidade madeirense, com nula ou muito pouca instrução escolar, dois meninos que começaram a brincar com instrumentos agrícolas junto aos pais que trabalhavam as fazendas. Ainda meninos, naturalmente, passaram a ajudar os progenitores, a aprender a trabalhar os nacos de terra para receberem as sementes ou plantas, a abrir drenos que fossem buscar a água da levada para garantir a vida orgânica que misturada com algum estrume, davam substância e fertilidade à terra.
Eram dois meninos ainda, e já alombavam com cargas de produtos agrícolas, carregando-as montanha acima, até ao carreiro que os levaria a casa, às vezes muito longe, conforma a distância e dificuldade de acesso às leiras.
Por isso não tiveram tempo para ir à escola. Provavelmente, também não haveria escolas nas suas aldeias. Porque eles são de aldeias distintas, nem se conheciam. E também não foram à escola, porque os pais não foram, e eram rijos, trabalhadores e saudáveis, para que é que servia a escola?
Foram dois meninos solitários, quero dizer, com pouca convivência com outros meninos, sem a matreirice que resulta dessas cumplicidades, sem malícia.
Os físicos algo atarrecados, condicionados pelos sucessivos pesos que carregavam, quase escondiam os ombros largos e os membros musculados e vigorosos. Pequenos, mas valentes, era o que eram.
Ambos apresentavam esparsas cabeleiras de carapinha, expressões de constante surpresa, e atitudes introvertidas.
Estavam presos na cidade, metidos em trabalhos que a tropa obrigava e os músculos tensos, bastas vezes, não correspondiam. Falava com eles e não me compreendiam. Não estavam aptos para a apreensão da nova e apressada linguagem urbana. E com os continentais, respondiam frequentemente que sim, com expressões tímidas, para não incomodarem, muitas vezes sem perceber patavina.
O esquerda-direita era uma complicação para acertar. Perceber as diferenças de postos e o tratamento adequado, outra complicação. Quanto ao manuseamento de armas, entre risos e chacotas a que não davam importância, precisavam da ajuda dos mais destros e pacientes.. Sofreram. Sofreram muito. Rapazes simples nunca inventaram comportamentos que disfarçassem os problemas. Humildes no trato, só falhavam porque não podiam corresponder.
Com o decurso do tempo assimilaram termos e passaram a experimentar as armas sem auxílio. Dificil, pois claro.
Na Guiné ainda revelavam muita dificuldade. Nas suas inocências carregavam as armas sem se imaginarem capazes de as utilizar. Volta e meia aferia dos seus desenvolvimentos. Sorriam-me como as crianças mediante as descobertas. Nos primeiros tempos, à cautela, tirei-lhes os percutores. Nem eles sabiam, nem foram os únicos.
Sempre prontos e disponiveis, foram passando do estado inconsciente, para outro mais elaborado nas dificuldades, na percepção dos perigos e na manhozice do Pelotão. Mas não eram manhosos. Apenas compreenderam os que se aproveitavam das suas ingenuidades, até lhes porem travão e confrontarem-nos. Já eram duros pelo trabalho de anos, tornaram-se duros com as vicissitudes da guerra. Foram dois meninos até aos vinte anos. Com a tropa desenvolveram novas capacidades, alargaram horizontes com as diferentes conversas em que participavam.
Perdi-lhes o rasto. Disseram-me que emigraram, talvez pela infeliz descoberta que o trabalho duro do campo não é compensador.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4880: História da CCAÇ 2679 (24): Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda e mazelas (José Manuel M. Dinis)
Caríssimo Carlos,
Para que não molengues nos calores do Verão, aqui vai mais um exercício de memória sobre a minha viagem africana pela Guiné e, já adivinhaste certamente, destina-se a que o prepares para o blogue da Tabanca Grande.
Para os atabancados, e para ti em especial, um abraço fraterno.
Conversa com o Januário
No alpendre da casa dos furriéis, com vista para a parada, a Secretaria, a Cantina, e para o outro lado, até à casa do Silva, portanto, no melhor local de Bajocunda, jazia uma mesa de ping-pong, que não cumpria a função a que fora destinada, em virtude da falta de rede, das raquetes e bolas, que o pessoal nunca teve a lembrança de comprar, priveligiando a preguiça mental e o acomodamento. Desporto? Exercício físico? Era só o que faltava! A malta queria era descanso.
Dessa maneira, a utilização da mesa fora reconvertida. Transformou-se em assento largo, que também dava para estender o pernil. Era nela que os furriéis se espojavam molengando, ou assentavam as nádegas na periferia do tampo, para conversas variadas ou simples coscuvilhices sobre bajudas. Dali também se trocavam graçolas com o pessoal que se deslocava para o rancho ou a cantina, e no regresso aos abrigos.
Foi daquela mesa que variadíssimas vezes perdi o olhar em majestosos pôres-de-sol, momentos de evasão que os efeitos pictóricos sobre o céu me proporcionavam.
Ali, sentado à conversa com o Tenente Januário, um jovem oficial com carreira auspiciosa que a guerra proporconara, a certa altura do diálogo ele referiu que estava com os portugueses, porque éramos os mais fortes mas, um dia, quando fôssemos embora, a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos.
Nunca fui de questionar, de querer sacar informações pessoais, nem me recordo da sequência daquela conversa, apenas registo aquela afirmação, de onde se podem extrair várias noções, de entre as quais: que o Januário estava na tropa pela vantagem que a situação de oficial lhe proporcionava na vida guineense, o que ganhava não era dispiciendo e projectava-o socialmente; também deixou claro que acreditava na emancipação da Guiné, mas não esclareceu, se por acção do PAIGC, se por entrega do poder a uma super-estrutura patrocinada pelos portugueses, onde ele, naturalmente, esparava ter acolhimento. Esta hipótese seria interessante de averiguar, se alguma vez foi ventilada entre o Spinola e os homens-grandes.
Inequivocamente, porém, exprimiu a raiva que muitos guinéus sentiam em relação aos cabo-verdianos, que detinham largo poder administrativo e repressivo. Ficou também patente alguma ambição pessoal, quando referiu que a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos, como se fosse um desígnio que lhe estivesse destinado. Ou então, talvez tudo não passasse de toleima, de ambição e vaidade próprias de quem sobe na vida sem uma boa estrutura mental, nem saber situar-se perante a comunidade.
E registei, por último, a sua indiferença pelos portugueses. Ele combatia connosco porque éramos mais fortes e, acrescento eu, pagávamos bom salário. Não referiu qualquer patriotismo ou sentimento agregador à presença portuguesa, evidenciando a incongruência da sua posição no exército.
Finalmente, ficou por se saber porque não se juntou ao PAIGC na luta pela independência, já que a autonomia da Guiné estava no seu horizonte (daí eu agora admitir que pode ter havido abordagens por parte de Spínola), e também ficou por se saber porque razão parecia convicto da retirada dos portugueses.
Mais tarde, aquando da Operação Mar Verde, não fiquei muito surpreendido com a sua resolução, o que me surpreendeu, foi a notícia do enforcamento (?) subsequente e o tremendo erro de avaliação que resultou daquela atitude.
Ou ele andava num turbilhão de conflitos pessoais, sem coragem para a escolha de um rumo definitivo e arriscou, ou atraiçoou os portugueses mediante alguma causa inesperada, ou, atraiçoando, foi atraiçoado.
As primeiras hipóteses corresponderiam a reacções espontâneas. A última, pelo contrário, a uma cilada que não percebeu. Fica tudo por esclarecer.
Duas biografias do Foxtrot
Hoje vou abordar as biografias de dois valorosos elementos do Foxtrot, quase podendo dizer-se, que a biografia de um pode confundir-se com a do outro, tal a similitude na origem e formação, como nos comportamentos e presença na Guiné.
Refiro-me aos atiradores de infantaria, os senhores João Baptista de Freitas e João Rodrigues Lorêto.
Ambos oriundos da ruralidade madeirense, com nula ou muito pouca instrução escolar, dois meninos que começaram a brincar com instrumentos agrícolas junto aos pais que trabalhavam as fazendas. Ainda meninos, naturalmente, passaram a ajudar os progenitores, a aprender a trabalhar os nacos de terra para receberem as sementes ou plantas, a abrir drenos que fossem buscar a água da levada para garantir a vida orgânica que misturada com algum estrume, davam substância e fertilidade à terra.
Eram dois meninos ainda, e já alombavam com cargas de produtos agrícolas, carregando-as montanha acima, até ao carreiro que os levaria a casa, às vezes muito longe, conforma a distância e dificuldade de acesso às leiras.
Por isso não tiveram tempo para ir à escola. Provavelmente, também não haveria escolas nas suas aldeias. Porque eles são de aldeias distintas, nem se conheciam. E também não foram à escola, porque os pais não foram, e eram rijos, trabalhadores e saudáveis, para que é que servia a escola?
Foram dois meninos solitários, quero dizer, com pouca convivência com outros meninos, sem a matreirice que resulta dessas cumplicidades, sem malícia.
Os físicos algo atarrecados, condicionados pelos sucessivos pesos que carregavam, quase escondiam os ombros largos e os membros musculados e vigorosos. Pequenos, mas valentes, era o que eram.
Ambos apresentavam esparsas cabeleiras de carapinha, expressões de constante surpresa, e atitudes introvertidas.
Estavam presos na cidade, metidos em trabalhos que a tropa obrigava e os músculos tensos, bastas vezes, não correspondiam. Falava com eles e não me compreendiam. Não estavam aptos para a apreensão da nova e apressada linguagem urbana. E com os continentais, respondiam frequentemente que sim, com expressões tímidas, para não incomodarem, muitas vezes sem perceber patavina.
O esquerda-direita era uma complicação para acertar. Perceber as diferenças de postos e o tratamento adequado, outra complicação. Quanto ao manuseamento de armas, entre risos e chacotas a que não davam importância, precisavam da ajuda dos mais destros e pacientes.. Sofreram. Sofreram muito. Rapazes simples nunca inventaram comportamentos que disfarçassem os problemas. Humildes no trato, só falhavam porque não podiam corresponder.
Com o decurso do tempo assimilaram termos e passaram a experimentar as armas sem auxílio. Dificil, pois claro.
Na Guiné ainda revelavam muita dificuldade. Nas suas inocências carregavam as armas sem se imaginarem capazes de as utilizar. Volta e meia aferia dos seus desenvolvimentos. Sorriam-me como as crianças mediante as descobertas. Nos primeiros tempos, à cautela, tirei-lhes os percutores. Nem eles sabiam, nem foram os únicos.
Sempre prontos e disponiveis, foram passando do estado inconsciente, para outro mais elaborado nas dificuldades, na percepção dos perigos e na manhozice do Pelotão. Mas não eram manhosos. Apenas compreenderam os que se aproveitavam das suas ingenuidades, até lhes porem travão e confrontarem-nos. Já eram duros pelo trabalho de anos, tornaram-se duros com as vicissitudes da guerra. Foram dois meninos até aos vinte anos. Com a tropa desenvolveram novas capacidades, alargaram horizontes com as diferentes conversas em que participavam.
Perdi-lhes o rasto. Disseram-me que emigraram, talvez pela infeliz descoberta que o trabalho duro do campo não é compensador.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4880: História da CCAÇ 2679 (24): Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda e mazelas (José Manuel M. Dinis)
Guiné 63/74 - P4907: Convívios (160): 8.º Encontro da CCAÇ 2791, dia 26 de Setembro de 2009 em Torres Vedras (Luís Faria)
1. Mensagem de Luís Faria (*), ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 3 de Setembro de 2009:
Amigo Vinhal
Um abraço.
Na esperança de captar a atenção de alguns Camaradas da "FORÇA" 2791 que andam mais distraídos e não têem comparecido aos encontros anuais, peço-te que divulgues no blogue o anexo que envio.
Este ano coube ao Filomeno Marques (Fur) a realização do 8.º convívio e como tal, dadas as suas caracteristicas humanas, intelectuais e organizativas, voltará a ser um dia muito bem passado entre Camaradas amigos.
Espero que desta vez apareça mais Pessoal do Sul e que o Luís Madaleno, Almeida, Mesquita, Trafaria, Fatana, Castanhas, Metralhinha Lourenço, Paiva, Mealha... e tantos outros que não têm marcado presença, apareçam para uns abraços e umas conversetas bem dispostas e bem acompanhadas!
Quanto aos costumeiros aproveito para lhes desejar que façam uma boa viagem, pois o resto é-o (bom) de certeza.
Obrigado pela publicação
Luís Faria
8.º CONVÍVIO DA CCAÇ 2791
26 DE SETEMBRO DE 2009
Local: Restaurante Moinho do Paul
Av. da Lapa, 13
Paul - Torres Vedras
Telefone 261 323 696
Caros amigos:
Com muita alegria vos informo que o dia e local do nosso Encontro/Convívio anual, com o seguinte programa:
10h - Recepção no Restaurante do Paul
11h - Aperitivos
12h - Missa na Capela do Paul
13h 30m - Almoço:
- Sopa de legumes
- Arroz de tamboril
- Lombo de porco com batatinhas e castanhas
(Se for preciso dieta, informem-me)
15h 30m - Pequeno passeio
18h - Lanche e Bolo do Encontro
Custo:
Adultos - 35 Euros
Crianças dos 6 aos 10 anos - 17,50 Euros
Agradeço que enviem as inscrições até 18 de Setembro para:
Filomeno Marques
Rua Bento Gonçalves,2
2560-325 Tores Vedras
Contactos:
261 324 628
964 730 185
968 062 727
__________
Notas de CV:
(*) Vd. último poste de Luís Faria com data de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4874: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (20): Adeus Binar, até sempre
Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4899: Convívios (157): XIV Convívio dos ex-Combatentes da Freguesia de Campia – 22AGO2009 (Artur Conceição)
Amigo Vinhal
Um abraço.
Na esperança de captar a atenção de alguns Camaradas da "FORÇA" 2791 que andam mais distraídos e não têem comparecido aos encontros anuais, peço-te que divulgues no blogue o anexo que envio.
Este ano coube ao Filomeno Marques (Fur) a realização do 8.º convívio e como tal, dadas as suas caracteristicas humanas, intelectuais e organizativas, voltará a ser um dia muito bem passado entre Camaradas amigos.
Espero que desta vez apareça mais Pessoal do Sul e que o Luís Madaleno, Almeida, Mesquita, Trafaria, Fatana, Castanhas, Metralhinha Lourenço, Paiva, Mealha... e tantos outros que não têm marcado presença, apareçam para uns abraços e umas conversetas bem dispostas e bem acompanhadas!
Quanto aos costumeiros aproveito para lhes desejar que façam uma boa viagem, pois o resto é-o (bom) de certeza.
Obrigado pela publicação
Luís Faria
8.º CONVÍVIO DA CCAÇ 2791
26 DE SETEMBRO DE 2009
Local: Restaurante Moinho do Paul
Av. da Lapa, 13
Paul - Torres Vedras
Telefone 261 323 696
Caros amigos:
Com muita alegria vos informo que o dia e local do nosso Encontro/Convívio anual, com o seguinte programa:
10h - Recepção no Restaurante do Paul
11h - Aperitivos
12h - Missa na Capela do Paul
13h 30m - Almoço:
- Sopa de legumes
- Arroz de tamboril
- Lombo de porco com batatinhas e castanhas
(Se for preciso dieta, informem-me)
15h 30m - Pequeno passeio
18h - Lanche e Bolo do Encontro
Custo:
Adultos - 35 Euros
Crianças dos 6 aos 10 anos - 17,50 Euros
Agradeço que enviem as inscrições até 18 de Setembro para:
Filomeno Marques
Rua Bento Gonçalves,2
2560-325 Tores Vedras
Contactos:
261 324 628
964 730 185
968 062 727
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Notas de CV:
(*) Vd. último poste de Luís Faria com data de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4874: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (20): Adeus Binar, até sempre
Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4899: Convívios (157): XIV Convívio dos ex-Combatentes da Freguesia de Campia – 22AGO2009 (Artur Conceição)
Guiné 63/74 - P4906: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (6): AGRBIS, um inferno no meio da guerra
1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, com data de 3 de Setembro de 2009:
Olá Carlos,
Depois de umas maravilhosas férias pelos Açores, cá estou com mais uma uma achega para a minha história.
Para minha surpresa encontrei, no fundo de uma caixa com coisas que há muitos anos tinhamos guardado, alguma da correspondência que então mantive com a minha madrinha de guerra, e que hoje é a minha esposa. Estava convencido que tinha queimado toda a nossa correspondência à muitos anos.
Quando lhe perguntei o que tinha acontecido, ela apenas respondeu que não tinha tido a coragem de se desembaraçar de algo que lhe era muito querido.
Parte dessa correspondência vem avivar alguns dos factos que aos poucos se íam perdendo na neblina da memória.
Haja saúde para todos.
Um abraço do tamanho do oceano,
José Câmara
AGRBIS, Um Inferno no Meio da Guerra
Grande surpresa!
Tão longe que estava de encontrar muito da correspondência que mantive com a minha Madrinha de Guerra, hoje minha esposa, ao longo da minha comissão de serviço na Guiné. Acidentalmente, encontrei o seu (nosso) tesouro, do qual manteve absoluto sigilo durante todos estes anos. Pensava que as cinzas tinham tomado conta desse espólio.
Ao reler muito do que então escrevi, as memórias avivaram-se, e darão outra tonalidade àquilo que irei escrevendo. É certo que sempre fui parco em palavras, e aprofundava muito pouco sobre o que se passava comigo. Era uma forma de estar na vida.
Na última parte que escrevi afirmava que as paupérrimas instalações de alojamento, a falta de correspondência e a dureza da disciplina estavam entre as condições que mais afectavam os militares da minha Companhia. Pouco me alonguei sobre o assunto na medida em que, ao fim de tantos anos, alguns factos foram-se perdendo na neblina da memória.
Acontece que agora posso aprofundar um pouco mais sobre o que foram os primeiros dias na Guiné. Vou servir-me exactamente daquilo que então escrevi, suprimindo aquilo que me parece supérfluo para aqui.
José Câmara nas traseiras do AGRBIS
Foto e legenda: © José da Câmara (2009). Direitos reservados.
Aerograma de 28 de Janeiro de 1971:
A minha Companhia desembarcou ontem cerca das nove horas da manhã. Pelas três horas da tarde houve formatura geral, com as demais forças desembarcadas. Tivemos a recepção oficial com a presença do próprio Governador e Comandante-Chefe General Spínola. A cerimónia foi de estarrecer, sobretudo, pela quantidade de desmaios. O calor era tremendo. Demorou até ao escurecer. Só depois fomos para os nossos alojamentos. Estes são incríveis.
Dorme-se em barracas de lona, com 5 camas para onze homens. As camas insufladas, também em lona, são muito semelhantes àquelas que levamos para a praia.
As noites são frias. Não há cobertores, pelo que nos vemos obrigados a dormir com a farda durante a noite. Em contrapartida os dias são quentíssimos e os corpos suam como torneiras a pingar.
Quanto à comida… ainda não a provei. Desde que desembarcámos temos estado a ração de combate.
A disciplina também é muita pesada, muito mais dura que no Continente ou nos Açores.
Miserável, mas verdadeiro!
Quanto à população, é difícil entender o que diz. Interessante mesmo foi a aproximação de um preto que me pediu para o ensinar a tirar a 4.ª classe.
Estas são as minhas primeiras impressões da Guiné.
A correspondência, ou melhor, a falta de correspondência foi outro problema que enfrentámos.
Para recebermos a primeira correspondência, a solução foi pedir autorização ao Comandante da Companhia Cap Mil Rogério Rebocho Alves para deixar-me ir a Bissalanca ao SPM. Com alguma reserva, ele autorizou-me, desde que eu mantivesse sigilo sobre a autorização. E era fácil de compreender. A Companhia não tinha viaturas distribuídas, pelo que teria que ir à boleia ou a pé. Em qualquer dos casos eu assumiria as consequências do que eventualmente pudesse acontecer.
Verdade seja dita que, sendo açoriano, sempre tive algum espírito aventureiro. Fiz-me ao caminho na companhia do soldado José Francisco Serpa, florense como eu, homem da minha confiança, e a quem atempadamente pus ao corrente da situação. Este soldado era um dos que mais sofria com a falta de correspondência. Para além de ser muitíssimo chegado à família, andava muito preocupado com a sorte de dois irmãos gémeos que estavam a entrar para o serviço militar. Tinham metido requerimento para amparo mas ainda não tinham obtido resposta, portanto, preocupações acrescidas para ele, não fossem todos a virem a encontrar-se no Ultramar. Por ironia do destino, foi o que veio a acontecer, dois na Guiné e um foi para Timor.
Escusado será dizer que o nosso regresso a Brá, carregados com os sacos de correspondência, foi recebido com extrema alegria por todos e alguma admiração. Tudo tinha sido mantido em segredo. Poderia acrescentar, sem medo de errar, que os soldados da minha Companhia me passaram a ver como sendo um homem de bom coração.
A alegria que eu vi estampada naqueles rostos de bebés está entre as melhores recordações que guardo da Guiné.
A minha outra recompensa foi o facto de também ter recebido a primeira carta da minha Madrinha da Guerra em terras da Guiné. Respondi-lhe assim:
Carta de 10 de Fevereiro de 1971:
Recebi a tua carta. E com ela a vontade firme em ajudares-me; acredita-me que a carta é o melhor remédio para quem, longe, anseia pela palavra de uma pessoa amiga. A carta é, para mim, alegria, dor, saudade, angústia, prazer, amor, vontade de viver. Sim, a carta é tudo isso. Ajuda a fazer desaparecer os tormentos e as angústias do dia-a-dia. É lida a correr porque o tempo voa nesse instante de leitura. A carta fala, comunica. Vem ao encontro de outra que se presta para partir. Juntam-se e animam-se.
Depois… fica a certeza de que alguém reza pela nossa protecção, nos anima, nos acarinha.
Carta de 25 de Fevereiro de 1971
Já se passaram quinze dias desde que recebi a última carta. E dos meus pais também não recebi. Até parecem combinados.
Estas duas cartas que eu escrevi exemplificam as dificuldades que nós, açorianos, tínhamos em receber correspondência. Esse aspecto agudizava-se muito mais para aqueles que eram oriundos das ilhas das Flores e Corvo, onde, no Inverno, os barcos apenas lá iam uma vez por mês caso o mar e as condições atmosféricas o permitissem. Ainda em outros casos, como o meu, tínhamos os nossos familiares emigrados nos Estados Unidos da América ou Canadá. As distâncias eram, de facto, muito grandes naqueles tempos.
A disciplina, melhor dizendo, o uso e abuso do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) martirizou e condicionou a CCaç 3327 para toda a comissão. Muitos furriéis foram decapitados da sua autoridade moral pelas punições sofridas. Ficaram-se, em parte, pela autoridade militar, forma triste de comandar tropas em qualquer cenário militar e, muito particularmente, num cenário de guerra. Acrescento que todos estes furriéis eram militares competentes, e que as punições só aconteceram porque a comandar o AGRBIS estava um militar que desconhecia, por completo, que por detrás de cada farda estava um ser humano.
Era comandante do AGRBIS o Coronel Santos Costa, o célebre Onze, e a quem me referi em escrito anterior.
Para que se tenha uma ideia do que então aconteceu, aqui fica um sumário das punições:
1 Furriel Mil com 15 dias de detenção,
1 Furriel Mil com 10 dias de detenção
2 Furriéis Mil com 5 dias de detenção cada
1 Furriel Mil com 2 dias de detenção
2 Cabos com 5 dias de prisão cada
2 Soldados com 10 dias de prisão cada
2 Soldados com 5 dias de prisão cada
Carta de 1 de Abril de 1971
Há 72 horas que me encontro de serviço. O trabalho tem decorrido normalmente. Cansativo e aborrecido como sempre.
Ontem, a coisa esteve feia. Estive de Sargento de Dia à minha Companhia. Todos os soldados presentes no refetório tentaram fazer um levantamento de rancho. O Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, obrigou-me a participar de todos os soldados da minha Companhia que não quiseram comer. Ao todo foram vinte e sete (27) participações. Podes calcular como estou, até porque os soldados tinham razão: a comida não se levava de maneira nenhuma.
Quando entreguei as participações ao Comandante da minha Companhia, pedi-lhe que não desse seguimento disciplinar até ao limite permitido pelo RDM que, se a memória não me falha, era de 30 dias, pois era minha intenção retirar as participações. Nessa altura já sabíamos que a Companhia iria seguir para o interior no dia 6 de Abril. Foi assim que vinte e sete (27) soldados escaparam a uma punição, no mínimo, de cinco dias de detenção cada um.
Recentemente tive a ousadia de pedir a um dos furriéis punidos se ainda se lembrava dos motivos da sua punição. Esta é a resposta que me deu por Email:
O castigo que tu referes foi dado num dia que eu estava de Sargento de Dia. Eu já tinha pedido licença ao Oficial de Dia para o pessoal ficar à vontade e caminhar para o refeitório. Quando já estava quase metade da Companhia dentro do mesmo, apareceu o Comandante e procurou quem era o Sargento de Dia e mandou chamar-me. Fui ter com ele. Perguntou se não o tinha visto. Eu disse que não. Voltou-se para mim e disse:
- Os soldados que vão ficar à tua ordem vão morrer todos! (e disse ainda mais alguma coisa que já não me lembro). Parece que isso aconteceu quando estávamos adidos a um batalhão no Agrbis. Vê se te recordas...
O furriel em causa foi punido com dois dias de detenção pelo simples facto de não ter visto o tal Onze. Como não viu não cumprimentou. Levou com a porrada na mesma.
Assim se praticava a (in)justiça no AGRBIS
José Câmara
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4730: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (5): Os primeiros passos na Guiné
Olá Carlos,
Depois de umas maravilhosas férias pelos Açores, cá estou com mais uma uma achega para a minha história.
Para minha surpresa encontrei, no fundo de uma caixa com coisas que há muitos anos tinhamos guardado, alguma da correspondência que então mantive com a minha madrinha de guerra, e que hoje é a minha esposa. Estava convencido que tinha queimado toda a nossa correspondência à muitos anos.
Quando lhe perguntei o que tinha acontecido, ela apenas respondeu que não tinha tido a coragem de se desembaraçar de algo que lhe era muito querido.
Parte dessa correspondência vem avivar alguns dos factos que aos poucos se íam perdendo na neblina da memória.
Haja saúde para todos.
Um abraço do tamanho do oceano,
José Câmara
AGRBIS, Um Inferno no Meio da Guerra
Grande surpresa!
Tão longe que estava de encontrar muito da correspondência que mantive com a minha Madrinha de Guerra, hoje minha esposa, ao longo da minha comissão de serviço na Guiné. Acidentalmente, encontrei o seu (nosso) tesouro, do qual manteve absoluto sigilo durante todos estes anos. Pensava que as cinzas tinham tomado conta desse espólio.
Ao reler muito do que então escrevi, as memórias avivaram-se, e darão outra tonalidade àquilo que irei escrevendo. É certo que sempre fui parco em palavras, e aprofundava muito pouco sobre o que se passava comigo. Era uma forma de estar na vida.
Na última parte que escrevi afirmava que as paupérrimas instalações de alojamento, a falta de correspondência e a dureza da disciplina estavam entre as condições que mais afectavam os militares da minha Companhia. Pouco me alonguei sobre o assunto na medida em que, ao fim de tantos anos, alguns factos foram-se perdendo na neblina da memória.
Acontece que agora posso aprofundar um pouco mais sobre o que foram os primeiros dias na Guiné. Vou servir-me exactamente daquilo que então escrevi, suprimindo aquilo que me parece supérfluo para aqui.
José Câmara nas traseiras do AGRBIS
Foto e legenda: © José da Câmara (2009). Direitos reservados.
Aerograma de 28 de Janeiro de 1971:
A minha Companhia desembarcou ontem cerca das nove horas da manhã. Pelas três horas da tarde houve formatura geral, com as demais forças desembarcadas. Tivemos a recepção oficial com a presença do próprio Governador e Comandante-Chefe General Spínola. A cerimónia foi de estarrecer, sobretudo, pela quantidade de desmaios. O calor era tremendo. Demorou até ao escurecer. Só depois fomos para os nossos alojamentos. Estes são incríveis.
Dorme-se em barracas de lona, com 5 camas para onze homens. As camas insufladas, também em lona, são muito semelhantes àquelas que levamos para a praia.
As noites são frias. Não há cobertores, pelo que nos vemos obrigados a dormir com a farda durante a noite. Em contrapartida os dias são quentíssimos e os corpos suam como torneiras a pingar.
Quanto à comida… ainda não a provei. Desde que desembarcámos temos estado a ração de combate.
A disciplina também é muita pesada, muito mais dura que no Continente ou nos Açores.
Miserável, mas verdadeiro!
Quanto à população, é difícil entender o que diz. Interessante mesmo foi a aproximação de um preto que me pediu para o ensinar a tirar a 4.ª classe.
Estas são as minhas primeiras impressões da Guiné.
A correspondência, ou melhor, a falta de correspondência foi outro problema que enfrentámos.
Para recebermos a primeira correspondência, a solução foi pedir autorização ao Comandante da Companhia Cap Mil Rogério Rebocho Alves para deixar-me ir a Bissalanca ao SPM. Com alguma reserva, ele autorizou-me, desde que eu mantivesse sigilo sobre a autorização. E era fácil de compreender. A Companhia não tinha viaturas distribuídas, pelo que teria que ir à boleia ou a pé. Em qualquer dos casos eu assumiria as consequências do que eventualmente pudesse acontecer.
Verdade seja dita que, sendo açoriano, sempre tive algum espírito aventureiro. Fiz-me ao caminho na companhia do soldado José Francisco Serpa, florense como eu, homem da minha confiança, e a quem atempadamente pus ao corrente da situação. Este soldado era um dos que mais sofria com a falta de correspondência. Para além de ser muitíssimo chegado à família, andava muito preocupado com a sorte de dois irmãos gémeos que estavam a entrar para o serviço militar. Tinham metido requerimento para amparo mas ainda não tinham obtido resposta, portanto, preocupações acrescidas para ele, não fossem todos a virem a encontrar-se no Ultramar. Por ironia do destino, foi o que veio a acontecer, dois na Guiné e um foi para Timor.
Escusado será dizer que o nosso regresso a Brá, carregados com os sacos de correspondência, foi recebido com extrema alegria por todos e alguma admiração. Tudo tinha sido mantido em segredo. Poderia acrescentar, sem medo de errar, que os soldados da minha Companhia me passaram a ver como sendo um homem de bom coração.
A alegria que eu vi estampada naqueles rostos de bebés está entre as melhores recordações que guardo da Guiné.
A minha outra recompensa foi o facto de também ter recebido a primeira carta da minha Madrinha da Guerra em terras da Guiné. Respondi-lhe assim:
Carta de 10 de Fevereiro de 1971:
Recebi a tua carta. E com ela a vontade firme em ajudares-me; acredita-me que a carta é o melhor remédio para quem, longe, anseia pela palavra de uma pessoa amiga. A carta é, para mim, alegria, dor, saudade, angústia, prazer, amor, vontade de viver. Sim, a carta é tudo isso. Ajuda a fazer desaparecer os tormentos e as angústias do dia-a-dia. É lida a correr porque o tempo voa nesse instante de leitura. A carta fala, comunica. Vem ao encontro de outra que se presta para partir. Juntam-se e animam-se.
Depois… fica a certeza de que alguém reza pela nossa protecção, nos anima, nos acarinha.
Carta de 25 de Fevereiro de 1971
Já se passaram quinze dias desde que recebi a última carta. E dos meus pais também não recebi. Até parecem combinados.
Estas duas cartas que eu escrevi exemplificam as dificuldades que nós, açorianos, tínhamos em receber correspondência. Esse aspecto agudizava-se muito mais para aqueles que eram oriundos das ilhas das Flores e Corvo, onde, no Inverno, os barcos apenas lá iam uma vez por mês caso o mar e as condições atmosféricas o permitissem. Ainda em outros casos, como o meu, tínhamos os nossos familiares emigrados nos Estados Unidos da América ou Canadá. As distâncias eram, de facto, muito grandes naqueles tempos.
A disciplina, melhor dizendo, o uso e abuso do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) martirizou e condicionou a CCaç 3327 para toda a comissão. Muitos furriéis foram decapitados da sua autoridade moral pelas punições sofridas. Ficaram-se, em parte, pela autoridade militar, forma triste de comandar tropas em qualquer cenário militar e, muito particularmente, num cenário de guerra. Acrescento que todos estes furriéis eram militares competentes, e que as punições só aconteceram porque a comandar o AGRBIS estava um militar que desconhecia, por completo, que por detrás de cada farda estava um ser humano.
Era comandante do AGRBIS o Coronel Santos Costa, o célebre Onze, e a quem me referi em escrito anterior.
Para que se tenha uma ideia do que então aconteceu, aqui fica um sumário das punições:
1 Furriel Mil com 15 dias de detenção,
1 Furriel Mil com 10 dias de detenção
2 Furriéis Mil com 5 dias de detenção cada
1 Furriel Mil com 2 dias de detenção
2 Cabos com 5 dias de prisão cada
2 Soldados com 10 dias de prisão cada
2 Soldados com 5 dias de prisão cada
Carta de 1 de Abril de 1971
Há 72 horas que me encontro de serviço. O trabalho tem decorrido normalmente. Cansativo e aborrecido como sempre.
Ontem, a coisa esteve feia. Estive de Sargento de Dia à minha Companhia. Todos os soldados presentes no refetório tentaram fazer um levantamento de rancho. O Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, obrigou-me a participar de todos os soldados da minha Companhia que não quiseram comer. Ao todo foram vinte e sete (27) participações. Podes calcular como estou, até porque os soldados tinham razão: a comida não se levava de maneira nenhuma.
Quando entreguei as participações ao Comandante da minha Companhia, pedi-lhe que não desse seguimento disciplinar até ao limite permitido pelo RDM que, se a memória não me falha, era de 30 dias, pois era minha intenção retirar as participações. Nessa altura já sabíamos que a Companhia iria seguir para o interior no dia 6 de Abril. Foi assim que vinte e sete (27) soldados escaparam a uma punição, no mínimo, de cinco dias de detenção cada um.
Recentemente tive a ousadia de pedir a um dos furriéis punidos se ainda se lembrava dos motivos da sua punição. Esta é a resposta que me deu por Email:
O castigo que tu referes foi dado num dia que eu estava de Sargento de Dia. Eu já tinha pedido licença ao Oficial de Dia para o pessoal ficar à vontade e caminhar para o refeitório. Quando já estava quase metade da Companhia dentro do mesmo, apareceu o Comandante e procurou quem era o Sargento de Dia e mandou chamar-me. Fui ter com ele. Perguntou se não o tinha visto. Eu disse que não. Voltou-se para mim e disse:
- Os soldados que vão ficar à tua ordem vão morrer todos! (e disse ainda mais alguma coisa que já não me lembro). Parece que isso aconteceu quando estávamos adidos a um batalhão no Agrbis. Vê se te recordas...
O furriel em causa foi punido com dois dias de detenção pelo simples facto de não ter visto o tal Onze. Como não viu não cumprimentou. Levou com a porrada na mesma.
Assim se praticava a (in)justiça no AGRBIS
José Câmara
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4730: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (5): Os primeiros passos na Guiné
Guiné 63/74 - P4905: Blogoterapia (123): Aos políticos, governantes, a quem pode decidir (Carlos Farinha)
1. Mensagem de Carlos Farinha (*), ex-Alf Mil da CART 6250/72, Mampatá e Aldeia Formosa, 1972/74, com data de 2 de Setembro de 2009:
Caro Luís e restante equipa editorial
Já há algum tempo que trago algo a incomodar-me e decidi partilhar esta minha inquietação com a Tabanca Grande. Escrevi o texto que anexo e não ficarei ofendido se não puder ser publicado.
Um abraço
C.Farinha
Aos políticos, governantes, a quem pode decidir
Hoje, é um regalo ver as despedidas ou a recepção feita no regresso, aos nossos militares quando partem ou regressam de missões, que nunca excedem alguns meses, no estrangeiro com a gente graúda, militares e políticos, a comparecerem em peso e a mediatização que tais acontecimentos têm sendo amplamente divulgados pelas televisões em horário nobre.
Os tempos são outros, e ainda bem que mudaram, mas não posso deixar de sentir um nó na garganta quando me lembro da minha partida para a Guiné, pela calada da noite, escondidos de toda a gente, como se de um bando de malfeitores se tratasse, com partida ainda de madrugada.
Hoje, os nossos militares têm cumprido missões de guerra em locais perigosos com reconhecida competência mas, segundo se diz, são voluntários e, acho que, bem remunerados, bem treinados e equipados.
Não foi o caso da maioria dos ex-combatentes que foram obrigados a ir, com uma deficiente preparação militar e colocados em locais perigosos militarmente e, muitas vezes, sem quaisquer condições.
Terminado o conflito colonial, parece que houve pressa em colocar uma pedra sobre esse passado incómodo e, nomeadamente, sobre treze anos de guerra e as desgraças que daí resultaram.
Daí que, acho dever fazer algumas perguntas, à laia de desabafo, à classe que nos tem governado, chamo-lhes uma classe porque pelas decisões que tomam ou não, parece que vivem num mundo diferente do meu, o mundo real:
Nunca mais ouvi falar nos ex-combatentes. Seja em programas de apoio psicológico, assistencial ou outro, seja qualquer outro tipo de ajuda que a eles se destinasse. Como todos sabemos, muitos de nós nunca mais atinaram com o rumo certo.
Nunca ouvi falar que tenha sido efectuado o levantamento rigoroso dos nossos mortos que ficaram sepultados em locais inóspitos ou cemitérios e se procedesse ao levantamento e repatriamento dos seus restos mortais. Um país que não respeita os seus mortos que deram o seu bem maior em sua defesa, depois de os obrigar a trilhar esse caminho, não merece o respeito dos seus filhos.
Nunca ouvi falar que aos africanos que acreditaram em nós, que combateram lado a lado connosco e aos quais muitos de nós devem a vida:
- Fossem pagas as pensões devidas.
- Tivessem apoio médico ou outro para fazer face às mazelas ocasionadas pela guerra.
- Fosse atribuída a nacionalidade portuguesa e trazidos para Portugal, se fosse esse o seu desejo.
- Que nas negociações de transição de soberania fosse garantido o respeito pela dignidade humana dos ex-combatentes autóctones.
Portugal tem que assumir o seu passado sem vergonhas, por inteiro. Os nossos políticos, alguns deles também são ex-combatentes, têm de assumir o país como ele é, e os ex-combatentes são uma parte, ainda significativa, desse país. Os nossos governantes andam preocupados com combatentes doutros países, vamos receber dois presos de Guantánamo por questões humanitárias, e não se preocupam com os do seu próprio país que até, provavelmente, lhe entregarão o seu voto. A falta de consideração dos políticos pelos milhares de ex-combatentes, ficou bem patente na novela da contagem do tempo, passado a arriscar a vida, para efeito de reforma. Qualquer funcionário colonial tinha esse direito nós, carne para canhão, não o tínhamos.
Para mim, o que acho mais grave e que mais dói, não é termos sido tratados da forma como o fomos pelo regime anterior, o que considero grave é hoje, nesta democracia que se quer pujante e participada, sermos ignorados e considerarem que já morremos!
Talvez eu esteja enganado em relação ao que escrevi, talvez não seja bem assim e esta opinião se deva à minha ignorância. Oxalá, eu esteja enganado, seria caso para dizer, bendita ignorância!
__________
Notas de CV:
(*) Vd. último poste de Carlos Farinha com data de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4846: O nosso encontro com o PAIGC em Mampatá (Carlos Farinha)
Vd. últimpo poste da série de 3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4773: Blogoterapia (122): Ainda choro e me revolto por todas as nossas mentiras... (Joaquim Mexia Alves, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)
Caro Luís e restante equipa editorial
Já há algum tempo que trago algo a incomodar-me e decidi partilhar esta minha inquietação com a Tabanca Grande. Escrevi o texto que anexo e não ficarei ofendido se não puder ser publicado.
Um abraço
C.Farinha
Aos políticos, governantes, a quem pode decidir
Hoje, é um regalo ver as despedidas ou a recepção feita no regresso, aos nossos militares quando partem ou regressam de missões, que nunca excedem alguns meses, no estrangeiro com a gente graúda, militares e políticos, a comparecerem em peso e a mediatização que tais acontecimentos têm sendo amplamente divulgados pelas televisões em horário nobre.
Os tempos são outros, e ainda bem que mudaram, mas não posso deixar de sentir um nó na garganta quando me lembro da minha partida para a Guiné, pela calada da noite, escondidos de toda a gente, como se de um bando de malfeitores se tratasse, com partida ainda de madrugada.
Hoje, os nossos militares têm cumprido missões de guerra em locais perigosos com reconhecida competência mas, segundo se diz, são voluntários e, acho que, bem remunerados, bem treinados e equipados.
Não foi o caso da maioria dos ex-combatentes que foram obrigados a ir, com uma deficiente preparação militar e colocados em locais perigosos militarmente e, muitas vezes, sem quaisquer condições.
Terminado o conflito colonial, parece que houve pressa em colocar uma pedra sobre esse passado incómodo e, nomeadamente, sobre treze anos de guerra e as desgraças que daí resultaram.
Daí que, acho dever fazer algumas perguntas, à laia de desabafo, à classe que nos tem governado, chamo-lhes uma classe porque pelas decisões que tomam ou não, parece que vivem num mundo diferente do meu, o mundo real:
Nunca mais ouvi falar nos ex-combatentes. Seja em programas de apoio psicológico, assistencial ou outro, seja qualquer outro tipo de ajuda que a eles se destinasse. Como todos sabemos, muitos de nós nunca mais atinaram com o rumo certo.
Nunca ouvi falar que tenha sido efectuado o levantamento rigoroso dos nossos mortos que ficaram sepultados em locais inóspitos ou cemitérios e se procedesse ao levantamento e repatriamento dos seus restos mortais. Um país que não respeita os seus mortos que deram o seu bem maior em sua defesa, depois de os obrigar a trilhar esse caminho, não merece o respeito dos seus filhos.
Nunca ouvi falar que aos africanos que acreditaram em nós, que combateram lado a lado connosco e aos quais muitos de nós devem a vida:
- Fossem pagas as pensões devidas.
- Tivessem apoio médico ou outro para fazer face às mazelas ocasionadas pela guerra.
- Fosse atribuída a nacionalidade portuguesa e trazidos para Portugal, se fosse esse o seu desejo.
- Que nas negociações de transição de soberania fosse garantido o respeito pela dignidade humana dos ex-combatentes autóctones.
Portugal tem que assumir o seu passado sem vergonhas, por inteiro. Os nossos políticos, alguns deles também são ex-combatentes, têm de assumir o país como ele é, e os ex-combatentes são uma parte, ainda significativa, desse país. Os nossos governantes andam preocupados com combatentes doutros países, vamos receber dois presos de Guantánamo por questões humanitárias, e não se preocupam com os do seu próprio país que até, provavelmente, lhe entregarão o seu voto. A falta de consideração dos políticos pelos milhares de ex-combatentes, ficou bem patente na novela da contagem do tempo, passado a arriscar a vida, para efeito de reforma. Qualquer funcionário colonial tinha esse direito nós, carne para canhão, não o tínhamos.
Para mim, o que acho mais grave e que mais dói, não é termos sido tratados da forma como o fomos pelo regime anterior, o que considero grave é hoje, nesta democracia que se quer pujante e participada, sermos ignorados e considerarem que já morremos!
Talvez eu esteja enganado em relação ao que escrevi, talvez não seja bem assim e esta opinião se deva à minha ignorância. Oxalá, eu esteja enganado, seria caso para dizer, bendita ignorância!
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Notas de CV:
(*) Vd. último poste de Carlos Farinha com data de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4846: O nosso encontro com o PAIGC em Mampatá (Carlos Farinha)
Vd. últimpo poste da série de 3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4773: Blogoterapia (122): Ainda choro e me revolto por todas as nossas mentiras... (Joaquim Mexia Alves, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)
Guiné 63/74 - P4904: Notas de leitura (21): Grandes Batalhas Navais Portuguesas, de José António Rodrigues Pereira (Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos, (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 1 de Setembro de 2009:
Caríssimo Carlos Vinhal,
Junto uma recensão de uma obra que certamente agradará os tertulianos.
Aqui temos a versão mais recente sobre a Operação Mar Verde, tão ilustrada no nosso blogue.
Recebe um abraço do
Mário
Grandes batalhas navais portuguesas:
A Operação Mar Verde (1970)
Beja Santos
O capitão-de-mar-e-guerra José António Rodrigues Pereira, professor da Escola Naval e do Instituto de Estudos Superiores Militares, director do Museu da Marinha, é autor da obra “Grandes Batalhas Navais Portuguesas, Os combates que marcaram a História de Portugal”, (A Esfera dos Livros, 2009). É um repositório feliz e útil sobre episódios e batalhas navais, entre 1180 e 1970. Na introdução, o autor refere-se à importância do mar logo na conquista de Lisboa aos mouros, na contenção dos piratas mouros, nas expedições luso-genovesas às Ilhas Canárias, depois no quadro de toda a expansão portuguesa do séc. XV em diante. No tocante à participação da Armada das lutas da Guiné, Rodrigues Pereira escreve que “A Guiné foi o teatro de operações onde a Armada desempenhou, em termos tácticos e estratégicos, uma acção vital; tal ficou a dever-se às características geoidrográficas daquele território, com grandes vias fluviais e marítimas que permitiam a rápida movimentação do pessoal e material”. E descreve como e quando: “Logo a seguir às primeiras acções armadas do Movimento para a Libertação da Guiné foram enviadas para a Guiné duas lanchas de fiscalização pequenas (LFP) e, seguidamente, uma lancha de fiscalização grande (LFG) e duas lanchas de desembarque pequenas (LDP); seguiram-se em Janeiro de 1962, um Destacamento de Fuzileiros Especiais (DFE) que iniciou prontamente a sua actividade operacional e a recolha de informações. Em 1963, a Armada enviou mais dois DFE, uma Companhia de Fuzileiros (CF), três lanchas de desembarque grandes (LDG) e duas LFP”.
O autor introduz a Operação Mar Verde a partir do objectivo do enfraquecimento do PAIGC e dos seus abastecimentos transportados por via marítima e fluvial. Sabia-se, em 1969, que o PAIGC dispunha de três pequenos navios e três lanchas rápidas, tipo P-6 de fabrico soviético. Estas P-6 eram lanchas-torpedeiras de 75 toneladas com 25,7 metros de comprimento e 43 nós de velocidade (duas vezes e meia superior aos navios portugueses mais rápidos), armadas com dois tubos lança-torpedos e quatro peças de 25 milímetros; a sua tripulação era de 25 homens. Acresce que a República da Guiné dispunha de quatro lanchas do tipo Komar, ligeiramente maiores que as P-6, e que dispunham de dois mísseis SSN-2 Styx, que eram uma verdadeira ameaça à superioridade naval portuguesa, não existindo meios para lhes fazer frente.
É nesse contexto que surgiu a ideia de neutralizar estas lanchas através da colocação de minas nos cascos por mergulhadores. O general Spínola e o almirante Reboredo e Silva (chefe do Estado-maior da Armada) aprovaram a operação e o capitão-tenente Alpoim Calvão foi encarregado de procurar este tipo de material, que veio a ser fornecido pelos serviços secretos sul-africanos. Fizeram-se pesquisas para reconhecer os planos do porto de Conacri. Em Bissau o general Spínola e o capitão-tenente Alpoim Calvão, propondo que nesta incursão a Conacri se devia também tentar trazer os 26 prisioneiros portugueses em posse de PAIGC. Os objectivos foram reavaliados, medida em que a Força Aérea não podia pôr em competição os seus Fiat com os MIG-15 e MIG-17: destruir os MIG era tão importante como destruir as lanchas.
Aos poucos, o objectivo da operação ofensiva dilatou-se a uma escala muito ambiciosa: realizar um golpe de Estado em Conacri, por essa via enfraquecer o PAIGC, destruir os MIG, trazer os prisioneiros portugueses, entre outros. De um simples golpe de mão passou-se para uma opulenta operação anfíbia. A PIDE/DGS deu informações preciosas sobre o principal movimento de oposição a Sékou Touré. Entendeu-se que se devia apoiar um golpe de Estado desse movimento de oposição, cobertura para ocultar a operação portuguesa. Observa o autor que “As altas hierarquias portuguesas não eram favoráveis a este tipo de operações, vistas como um risco demasiado elevado nas suas consequências políticas. Temia-se que servissem de pretexto para um intervenção internacional contra Portugal, um dos piores cenários que poderiam apresentar-se aos governantes portugueses”.
Marcelo Caetano mostrou-se favorável à operação contra Conacri, com a condição de que ela fosse realizada de modo a que ninguém se apercebesse que Portugal estava envolvido no golpe dos opositores de Sékou Touré.
Nasceu assim a Operação Mar Verde: preparação dos militares oposicionista a Sékou Touré, cuja recrutamento se transformou numa operação delicada; recolha de informações sobre a República da Guiné; e laboração dos planos de ataque, cabendo aos militares portugueses algumas das missões cruciais para o sucesso do golpe de Estado, cujo ponto alto era a eliminação física de Sékou Touré. A Operação Mar Verde foi gizada com uma operação anfíbia durante a qual seria realizado em simultâneo um elevado número de golpes de mão, comissões bem demarcadas para cada equipa.
Não cabe aqui desenvolver como se preparou e como decorreu a Operação Mar Verde, aliás bem documentada por Rodrigues Pereira. Sabe-se que uma boa parte dos objectivos foram alcançados, com a excepção do essencial: não se encontrou Sékou Touré, falhou o golpe de Estado, a rendição de um grupo de comandos africanos denunciou para o mundo inteiro a paternidade da operação, não se destruiu um só MIG. As forças navais de Conacri e do PAIGC desapareceram e foram libertados os prisioneiros portugueses. Se houve um balanço militar positivo, as consequências políticas revelaram-se calamitosas, prosseguiu e aprofundou-se o isolamento de Portugal.
A todos os títulos, para quem quer conhecer com o detalhe necessário os combates navais que marcaram a nossa História, o livro de Rodrigues Pereira é muitíssimo interessante, uma verdadeira surpresa.
__________
Nota de CV:
(*) Vd. último poste de Beja Santos com data de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4902: Controvérsias (27): Haverá alguma relação entre Porto Gole/Guiné-Bissau e Port Cole/Carolina do Sul? (Nelson Herbert/Beja Santos)
Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 – P4903: Notas de leitura (20): Histórias do pessoal da CCAÇ 2382, por Manuel Traquina (Parte I) (Luís Graça)
Caríssimo Carlos Vinhal,
Junto uma recensão de uma obra que certamente agradará os tertulianos.
Aqui temos a versão mais recente sobre a Operação Mar Verde, tão ilustrada no nosso blogue.
Recebe um abraço do
Mário
Grandes batalhas navais portuguesas:
A Operação Mar Verde (1970)
Beja Santos
O capitão-de-mar-e-guerra José António Rodrigues Pereira, professor da Escola Naval e do Instituto de Estudos Superiores Militares, director do Museu da Marinha, é autor da obra “Grandes Batalhas Navais Portuguesas, Os combates que marcaram a História de Portugal”, (A Esfera dos Livros, 2009). É um repositório feliz e útil sobre episódios e batalhas navais, entre 1180 e 1970. Na introdução, o autor refere-se à importância do mar logo na conquista de Lisboa aos mouros, na contenção dos piratas mouros, nas expedições luso-genovesas às Ilhas Canárias, depois no quadro de toda a expansão portuguesa do séc. XV em diante. No tocante à participação da Armada das lutas da Guiné, Rodrigues Pereira escreve que “A Guiné foi o teatro de operações onde a Armada desempenhou, em termos tácticos e estratégicos, uma acção vital; tal ficou a dever-se às características geoidrográficas daquele território, com grandes vias fluviais e marítimas que permitiam a rápida movimentação do pessoal e material”. E descreve como e quando: “Logo a seguir às primeiras acções armadas do Movimento para a Libertação da Guiné foram enviadas para a Guiné duas lanchas de fiscalização pequenas (LFP) e, seguidamente, uma lancha de fiscalização grande (LFG) e duas lanchas de desembarque pequenas (LDP); seguiram-se em Janeiro de 1962, um Destacamento de Fuzileiros Especiais (DFE) que iniciou prontamente a sua actividade operacional e a recolha de informações. Em 1963, a Armada enviou mais dois DFE, uma Companhia de Fuzileiros (CF), três lanchas de desembarque grandes (LDG) e duas LFP”.
O autor introduz a Operação Mar Verde a partir do objectivo do enfraquecimento do PAIGC e dos seus abastecimentos transportados por via marítima e fluvial. Sabia-se, em 1969, que o PAIGC dispunha de três pequenos navios e três lanchas rápidas, tipo P-6 de fabrico soviético. Estas P-6 eram lanchas-torpedeiras de 75 toneladas com 25,7 metros de comprimento e 43 nós de velocidade (duas vezes e meia superior aos navios portugueses mais rápidos), armadas com dois tubos lança-torpedos e quatro peças de 25 milímetros; a sua tripulação era de 25 homens. Acresce que a República da Guiné dispunha de quatro lanchas do tipo Komar, ligeiramente maiores que as P-6, e que dispunham de dois mísseis SSN-2 Styx, que eram uma verdadeira ameaça à superioridade naval portuguesa, não existindo meios para lhes fazer frente.
É nesse contexto que surgiu a ideia de neutralizar estas lanchas através da colocação de minas nos cascos por mergulhadores. O general Spínola e o almirante Reboredo e Silva (chefe do Estado-maior da Armada) aprovaram a operação e o capitão-tenente Alpoim Calvão foi encarregado de procurar este tipo de material, que veio a ser fornecido pelos serviços secretos sul-africanos. Fizeram-se pesquisas para reconhecer os planos do porto de Conacri. Em Bissau o general Spínola e o capitão-tenente Alpoim Calvão, propondo que nesta incursão a Conacri se devia também tentar trazer os 26 prisioneiros portugueses em posse de PAIGC. Os objectivos foram reavaliados, medida em que a Força Aérea não podia pôr em competição os seus Fiat com os MIG-15 e MIG-17: destruir os MIG era tão importante como destruir as lanchas.
Aos poucos, o objectivo da operação ofensiva dilatou-se a uma escala muito ambiciosa: realizar um golpe de Estado em Conacri, por essa via enfraquecer o PAIGC, destruir os MIG, trazer os prisioneiros portugueses, entre outros. De um simples golpe de mão passou-se para uma opulenta operação anfíbia. A PIDE/DGS deu informações preciosas sobre o principal movimento de oposição a Sékou Touré. Entendeu-se que se devia apoiar um golpe de Estado desse movimento de oposição, cobertura para ocultar a operação portuguesa. Observa o autor que “As altas hierarquias portuguesas não eram favoráveis a este tipo de operações, vistas como um risco demasiado elevado nas suas consequências políticas. Temia-se que servissem de pretexto para um intervenção internacional contra Portugal, um dos piores cenários que poderiam apresentar-se aos governantes portugueses”.
Marcelo Caetano mostrou-se favorável à operação contra Conacri, com a condição de que ela fosse realizada de modo a que ninguém se apercebesse que Portugal estava envolvido no golpe dos opositores de Sékou Touré.
Nasceu assim a Operação Mar Verde: preparação dos militares oposicionista a Sékou Touré, cuja recrutamento se transformou numa operação delicada; recolha de informações sobre a República da Guiné; e laboração dos planos de ataque, cabendo aos militares portugueses algumas das missões cruciais para o sucesso do golpe de Estado, cujo ponto alto era a eliminação física de Sékou Touré. A Operação Mar Verde foi gizada com uma operação anfíbia durante a qual seria realizado em simultâneo um elevado número de golpes de mão, comissões bem demarcadas para cada equipa.
Não cabe aqui desenvolver como se preparou e como decorreu a Operação Mar Verde, aliás bem documentada por Rodrigues Pereira. Sabe-se que uma boa parte dos objectivos foram alcançados, com a excepção do essencial: não se encontrou Sékou Touré, falhou o golpe de Estado, a rendição de um grupo de comandos africanos denunciou para o mundo inteiro a paternidade da operação, não se destruiu um só MIG. As forças navais de Conacri e do PAIGC desapareceram e foram libertados os prisioneiros portugueses. Se houve um balanço militar positivo, as consequências políticas revelaram-se calamitosas, prosseguiu e aprofundou-se o isolamento de Portugal.
A todos os títulos, para quem quer conhecer com o detalhe necessário os combates navais que marcaram a nossa História, o livro de Rodrigues Pereira é muitíssimo interessante, uma verdadeira surpresa.
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Nota de CV:
(*) Vd. último poste de Beja Santos com data de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4902: Controvérsias (27): Haverá alguma relação entre Porto Gole/Guiné-Bissau e Port Cole/Carolina do Sul? (Nelson Herbert/Beja Santos)
Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 – P4903: Notas de leitura (20): Histórias do pessoal da CCAÇ 2382, por Manuel Traquina (Parte I) (Luís Graça)
Guiné 63/74 – P4903: Notas de leitura (20): Histórias do pessoal da CCAÇ 2382, por Manuel Traquina (Parte I) (Luís Graça)
Notas de leitura (20), por Luís Graça (aqui, ainda em férias, no 'turismo rural' de Candoz, no dia 4 de Setembro de 2009)
Foto: © Augusto Pinto Soares (2009). Direitos reservados
Manuel Traquina (ver foto abaixo) nasceu no Souto, Abrantes, em 1945 (*). Frequentou o Curso de Sargento Milicianos (CSM), nas Caldas da Rainha, no 1º trimestre de 1967. Em 30 de Março, dava início à especialidade de Mecânico Auto (vulgo, ferrugem) na Escola Prática de Serviço e Material (EPSM), em Sacavém.
Fez ainda estágio no Centro de Instrução de Condutores Auto nº 3 (CICA3) em Elvas. Em finais de Agosto, é transferido para o Depósito Geral de Material de Guerra (DGMG), em Beirolas. Quinze dias depois, a 13 de Setembro, é mobilizado para a Guiné. A 19 de Fevereiro de 1968, apresenta-se no RI 2, em Abrantes, a fim de integrar a CCAÇ 2382. Passados dois meses e meio, a 1 de Maio de 1968, parte no Niassa, com destino a Bissau, aonde desembarca a 6.
Na Guiné, passou pelos seguintes aquartelamentos: Brá, Bula, Aldeia Formosa e Bula. Regressa a Portugal em Abril de 1970, no mesmo T/T Niassa.
Depois da ‘peluda’, trabalhou em Angola, no Serviço de Emprego. Regressa Portugal, na sequência do processo de descolonização. Em Abrantes, é técnico de emprego, do Centro de Emprego local. Está actualmente aposentado do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFO).
Um livro publicado com o apoio financeiro de antigos camaradas da CCAÇ 2382
Publicou em Maio de 2009 o seu livro de memórias, Os Tempos de Guerra – De Abrantes à Guiné, edição de Palha de Abrantes – Associação e Desenvolvimento Cultural, com sede em Abrantes, e patrocínio de diversos antigos camaradas da CCAÇ 2382.
Desses antigos camaradas, é de destacar o nome dos seguintes:
(i) Ex-Sol João Bento Cosme, sócio gerente da empres Construções e Habitações Lda, com sede em Vimeiro, Lourinhã (Telemóvel: 962 715 464);
(ii) Ex-Alf Mil At Inf Luís M. Simão Almeida, hoje advogado, em Lisboa (Telefone: 213 555 996);
(iii) Ex-Fur Mil At Inf Cipriano Augusto S. Monteiro, hoje gerente da Contassis – Contabilidade e Assistência Fiscal, Lda, com sede em Lisboa (Telefone: 213 511 510);
(iv) Ex-1º Cabo Trnms José Manuel de Oliveira Madeiras, sócio-gerente da Estrela da Beira – Sociedade de Comércio e Transformação de Carnes Lda, com sede em Milreu, Vila de Rei. (Telemóvel: 919 980 325);
(v) Ex-1º Cabo Radiotelegrafista António Joaquim Coelho, gerente da AJC – Serrelharia Civil, de Fernão Ferro, Seixal (Telefone: 21 124 047);
(vi) Ex-1º Cabo Mec Auto Rodas Manuel Fernando O. Magalhães., gerente da Auto Magalhães, de Jovim, Gondomar;
Teve ainda o patrocínio da Pensão Primavera, de Vidago (965 479 816); da Quinta do Lago, Alferrarede, Abrantes; e da firma Eusébio Catarino e Filho, Lda, Vale de Vacas, Amêndoa (Tel. 274 877 177).
Na prática, foi uma edição de autor, com o apoio financeiro de vários camaradas da Guiné. Trata-se de uma iniciativa que é digna de registo e merece o nosso aplauso.
Das Caldas da Rainha (RI 5) a Abrantes (RI)2), passando por Sacavém (EPSM), Elvas (CICA 3) e Beirolas (DGMG)
Tudo começa pelo RI 5, nas Caldas da Rainha, em 1967, sítio para o qual o Manuel Traquina foi enviado, em Janeiro de 1967, para frequentar o CSM – Curso de Sargentos Milicianos. No comboio da Linha do Oeste, a caminho das Caldas, encontrou dois conterrâneos, o Rui Navarro e o Joaquim Silvério Alcaravela (Este último julgo tratar-se do mesmo Alcaravela, colega de sociologia, que foi meu antigo aluno do Curso de Administração Hospitalar da Escola Nacional de Saúde Pública, e que fará depois uma brilhante carreira à frente dos Hospitais do Serviço Nacional de Saúde, incluindo o hospital da sua terra, hoje integrado no Centro Hospitalar Médio Tejo).
Nas Caldas pertenceu ao 3º Pelotão da 6ª Companhia, de que era comandante o então tenente Vasco Lourenço. O Manuel Traquina era o nº 1107 e o Silvério o nº seguinte, o 1108. Foi-lhe distribuído uma G3, velinha nas que tinha de estar sempre impecavelmente limpa. “Era preciso ter cuidado, não deixar roubar o protector de boca, porque se faltasse tinha que ser pago. Era habitual que alguém o roubasse, para a seguir no-lo tentar vender… Achei engraçado que em calão militar, ao vulgar utensílio de refeitório, a colher, se chamasse o mesmo nome de ‘protector de boca’ (p. 20/21).
Das várias recordações desse tempo, o Traquina menciona a célebre “padaria na estrada de Óbidos, onde alta noite íamos comprar pão quente” (p. 21), a par do Campo de Tiro da Tornada. Um café das Caldas que devia ser evitado era o Zaida, onde pairavam os oficiais. De preferência, os recrutas davam salto, nas horas livres, à Foz do Arelho.
A parte final da recruta, a semana de campo, teve lugar nos pinhais entre a Foz do Arelho e a povoação da Tornada. Era Inverno e os recrutas eram, frequentemente, acordados por um sádico de um oficial para lhes dar “algumas notícias da actualidade” (sic)… Comenta o Traquina: “só mais tarde me apercebi do efeito psicológico de atitudes deste género”. No essencial, a recruta reforçou duas coisas importantes, em matéria de valores, e que marcaram o autor para o resto da vida, “a disciplina e a pontualidade” (p. 22).
No final de Março de 1967, o Traquina segue para Sacavém, para a Escola Prático de Serviço e Material (EPSM), para tirar a especialidade de Mecânico Auto. O acrónimo EPSM também era objecto do humor de caserna: Entras Pedreiro, Sais Mecânico. Ali perto corria o Rio Trancão, com o seu já famigerado mau cheiro (p. 26).
Em Junho de 1967, terminado o período de especialidade, o Traquina ruma ao Centro de Condutores Auto nº 3 (CICA 3), em Elvas (pp. 27/28). No CICA3 onde “havia alguns velhos sargentos, cuja especialidade anterior era Ferrador no tempo em que ali havia cavalos” (p. 27), o tempo passou depressa e bem… Ia-se ao Caia, na fronteira, “ver las chicas” (p. 28).
O próximo destino foi o Depósito Geral de Material de Guerra, em Beirolas (que ocupava um espaço integrado hoje no Parque das Nações). Em Beirolas, o Traquina tinha “um emprego sem ordenado (recebia, como pré, no final do mês, cerca de 80$00)”.
Com surpresa, apercebe-se que por aquele quartel passavam filhos de algo, “filhos de gente importante, bastante influentes para que os filhos ali passassem o serviço militar, sem o risco e o inconveniente da guerra colonial. Havia mesmo aqueles que entravam e saíam trajando civilmente e que, à porta do quartel, deixavam estacionados Ferrari e outros carros idênticos, que deixavam transparecer a vida abastada dos seus proprietários” (p. 29).
O Traquina levanta aqui uma questão que também tem a ver a natureza não-democrática do Estado Novo: nem todos éramos iguais perante a Pátria; o dinheiro, o estatuto social e a influência política foram usados, nessa época (como noutras), para safar alguns jovens portugueses (ligados, directa ou indirectamente, aos círculos da elite dirigente) das agruras de África e sobretudo da guerra colonial… 0 Traquina não pertencia a esse grupo de gente de excepção: por Ordem de Serviço de 13 de Setembro de 1967 é mobilizado para a então Província da Guiné. Em Fevereiro do ano seguinte, foi então juntar-se à sua futura CCaç 2382, que estava em formação na sua Abrantes natal…
Há um capítulo dedicado ao RI 2, em Abrantes, por onde terão passado muitas dezenas de milhares de militares destinados aos TO de Angola, Guiné e Moçambique, e ao IAO (Instrução e Adaptação Operacional) da CCAÇ 2382 (pp. 31-42). Também em Abrantes havia um café chamado Pelicano, ponto de encontro de militares, a lembrar um outro futuro Pelicano, o de Bissau. Na véspera da noite da partida o Fur Mil Ramiro de Sousa Duarte não parou de tocar, na sua viola, e de cantar, de viva voz, a canção então em voga, candidata portuguesa ao Festival da Eurovisão, “O vento mudou e ela não voltou”… Menos de um ano depois, o Duarte era um dos que estava na lista daqueles que não mais voltariam, com vida, à sua terra, nem voltariam a rever o Pelicano de Abrantes… Premonitoramente ou não, por inciativa do Duarte tinha sido criada em Nhacra, lá no cu de judas, um pequena cantina militar a que foi dado o nome de Pelicano (pp. 45/46).
Voltando ao IAO, e nomeadamente às experiências daqueles, como eu, que conheceram o Campo Militar de Santa Margarida … Quem não se lembra das brincadeiras estúpidas que fazíamos à noite, como os “golpes de mão ao bivaque do inimigo”, para roubar comida e bebida ? Numa dessas simulações da guerra da Guiné, debaixo de uma saraivada de pedras, espetei uma vez com um tiro de mauser, com bala de madeira, no traseiro do desgraçado de um cabo miliciano que se meteu à minha frente, no meio da noite e do alvoroço… Dezenas de estilhaços de madeira tiveram que retirados à pinça, pelo enfermeiro, ao longo de toda a noite… Prometi a mim mesmo nunca mais usar a merda de uma espingarda, até por que eu tinha a esquisita especialidade de Atirador de Armas Pesadas de Infantaria… Pensei, ingenuamente, que iria passar na Guiné uma missão tranquila, a afinar a pontaria dos morteiros 81 e 107…
Volto ao texto do Traquina: “Recordo que, algumas vezes, durante a noite, éramos acordados pelos tiros de assalto de um grupo comandado pelo Capitão São Martinho, que uma vez foi mal recebido…à pedrada” (p. 33). O homem não terá apreciado a resposta dos sitiados, mas lá engoli em seco, que “na guerra dá-se e leva-se”…
A partida das três CCAÇ (2381, 2382, 2383) , num total aproximado de 450 homens, foi feita em ambiente de festa, nas ruas de Abrantes, com direito a desfile e charanga militar (pp. 43/44). “Naquela noite de 30 de Abril do ano de 1968 ‘valia tudo’, a caderna estava um ‘pandemónio’. Muitos para esquecer, tinham bebido de mais” (p. 43).
Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > 30 de Abril de 1968 > Embarque no Niassa, do pessoal da CCAÇ 2382 (Buba e Aldeia Formosa, 1968/70)e outras subunidades.
Foto: © Manuel Traquina (2008). Direitos reservados.
De Lisboa a Bissau, no velho Niassa
No Cais da Rocha de Conde de Óbidos, o Traquina assistiu a cenas que não mais esqueceu, como qualquer um de nós que por lá passou, a caminho da Guiné. “A despedida foi um quadro que, quem o viveu, o recorda como triste e arrepiante, com gritos, choros e desmaios” (p. 43).
Como muitos de nós, o Traquina mentiu à família sobre a data do embarque. Intencionalmente, para lhe poupar o inútil sofrimento da despedida. Esta prática não sei se era generalizada, mas já me foi confirmada por diversos camaradas da nossa Tabanca Grande. Ninguém partia para a guerra, com o exultante sentimento de orgulho por ir servir a Pátria. Naturalmente, houve excepções, e nomeadamente nos primeiros anos da guerra do Ultramar. Mas para muitos África, e em especial a Guiné, era vista como um degredo… Mas outros não escondem que, vistas as coisas retrospectivamente, até foi “o melhor tempo” das suas vidas…
Ei-lo agora, no T/T Niassa, “Tejo abaixo, passando por baixo da então nova ponte Salazar, e foi num instante que aquele navio atingiu o estuário do Tejo e se fez ao largo” (…) (p. 44).
No velho e glorioso Niassa, o autor evoca, entre outros detalhes, as ‘sonecas’ que os militares batiam no convés, ou ainda o passatempo que era “com um canivete, entalhar na madeira o seu nome, a data ou outra referência”… Depois de tantas viagens, e de tantos milhares de militares transportados, “aquele convés quase já não tinha um pedaço de madeira disponível para mais um nome” (p. 51).
O seu fim foi inglório, possivelmente hoje poderia ser um navio-museu: “as inscrições que nele foram feitas (…) representam também uma página da história da guerra colonial”… Este país de marinheiros, que tinha uma poderosa marinha mercante no auge da guerra colonial, sempre tratou mal o seu património ligado ao mar, e em especial os seus barcos. Veja-se, por exemplo, o que se passou com a frota bacalhoeira. Salvou-se, por uma unha negra, e sobretudo pela mobilização das gentes de Viana do Castelo, o navio-hospital Gil Eanes…
De Bissau, o Traquina deixa-nos dois ou três apontamentos que nos ajudam hoje a reconstituir ‘puzzle’ do roteiro da capital da Guiné, que “naquele tempo vivia à base dos militares” (p.55).
Tinha já então “uma larga avenida que descia da Praça do Império, onde se situava o Palácio do Governador até ao porto, o chamado Cais do Pijiguiti [, que em rigor é apenas uma parte do porto…]. Aqui começava a outra, também bonita, avenida marginal ornamentada com algumas palmeiras” (p. 56).
Havia um florescente comércio. Podia-se comprar “de tudo um pouco”, incluindo artigos que não vistos na Metrópole e sobretudo que era inacessíveis à maior parte das bolsas dos portugueses. “As vésperas de embarque eram grandes dias de negócio, eram centenas, ou mesmo milhares de militares que iam regressar a Portugal, e normalmente todos faziam as habituais compras nas lojas de Bissau (entre outras lembramos a Casa Escada, o Taufik Saad, a Casa Pintosinho e a Casa Gouveia)”… Era aí que se faziam as compras de última hora, as lembranças para amigos e familiares. “Na baixa da cidade cada porta era uma loja, os artigos orientais com a etiqueta ‘Fabricado em Macau’ invadiam já as lojas, muito antes de chegarem a Portugal” (p. 55).
A guerra trouxe mais cafés, restaurantes, pensões, e algumas casas de diversão. A oferta, em matéria do “repouso do guerreiro”, era contudo muito limitada: “nos fins de semana havia futebol no estádio, situado quase no centro da cidade, e o Cine-Udib exibia dos ou três filmes por semana. Havia 'A Meta', uma cervejaria com uma pista de carrinhos comandados à distância (…) A única praia existente situava-se na ilha de Bubaque, no Arquipélago dos Bijagós, inacessível à população” (p. 56).
A cidade não se dava a conhecer, logo à chegada, até por que praticamente todos os militares, ali desembarcados, partiam para o mato, no próprio dia, ou logo a seguir… “Aqueles que mais tempo permaneciam na cidade, à noite e fins de semana limitavam-se a dar umas voltas, todos sabiam onde podiam ver as poucas mulheres brancas de Bissau, que normalmente eram empregadas no comércio local. A esplanada do Café Portugal no centro da cidade, a Caldense ou o Pelicano na marginal eram os pontos de encontro, onde se bebia muita cerveja e comiam as picantes e tão apreciadas ostras. Da esplanada do Pelicano muitas vexes ouvia-se os rebentamentos e viam os clarões dos ataques ao aquartelamento de Tite, situado a sul de Bissau, do outro lado do rio Geba” (p.56)…
Curiosamente, o autor não faz qualquer referência a outros lugares obrigatórios de Bissau: o Café Bento ou a 5ª Rep (que eu não sei em que ano abriu) e o famigerado Pilão (pouco recomendável no tempo do Schultz, substituído em Maio de 1968 por Spínola no cargo de Governador Geral e Com-Chefe)…
O resto do livro reúne um notável conjunto de pequenas histórias, sketches ou simples apontamentos, de que falaremos mais em detalhe na II parte, histórias essas que já foram, algumas, aqui publicadas no nosso blogue (**).
(Continua)
_____________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes de:
2 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2399: Tabanca Grande (47): Manuel Traquina, ex-Fur Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)
5 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4642: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (18): Manuel Traquina, ribatejano, escritor... e fadista (Luís Graça)
7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4648: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (19): Os nossos escritores (Luís Graça)
(**) Vd. postes de:
2 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2500: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (1): CCAÇ 2382 - A hora da partida
19 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane
17 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3214: Venturas e Desventuras do Zé do Ollho Vivo (3): Contabane, 22 e 23 de Junho de 1968: O Fur Mil Trms Pinho e os seus rádios
15 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3457: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (4): Baptismo de fogo e gemidos na noite
8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3855: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (5): As colunas Buba-Aldeia Formosa
12 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4019: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (6): Estrada nova Buba - Aldeia Formosa
12 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4327: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (7): O saxofone que não tinha sapatilhas
Vd. também:
8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4797: Cancioneiro de Buba (1): A paixão do futebol (João Boiça / Manuel Traquina)
14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2944: Convívios (66): Pessoal da CCAÇ 2382, no dia 3 de Maio de 2008 na Vila de Óbidos (Manuel Batista Traquina)
23 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2791: Álbum das Glórias (46): O distintivo da CCAÇ 2382, 1968/70 (Manuel Baptista Traquina).
13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2533: O cruzeiro das nossas vidas (10): Fui e vim no velho e saudoso Niassa (Manuel Traquina)
Guiné 63/74 - P4902: Controvérsias (34): Haverá alguma relação entre Porto Gole/Guiné-Bissau e Port Cole/Carolina do Sul? (Nelson Herbert/Beja Santos)
A semelhança entre os nomes Porto Gole/Guiné-Bissau e Port Cole/Carolina do Sul será pura coincidência?
1. Comentário de Nelson Herbert ao poste P4858 (*):
Porto Gole ou Portocole (**)??? Enfim...
Numa das minhas deslocações à Carolina do Sul, por sinal o estado norte-americano com maiores traços de parecença com a Guiné - o clima quente e húmido, o cheiro a terra quando a chuva bafeja, os pântanos, as bolanhas, os mosquitos e a bicharada - confesso pois que reencontrei nele, pedaços da minha Guiné e deparei-me também com um Port Cole, um outrora importante porto fluvial que serviu de ponto de entrada de escravos naquela região, cuja população conserva ainda hoje traços fisionómicos, idênticos a de algumas etnias guineeses.
Port Cole, hoje uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos.
Haverá porventura alguma relação entre esses dois Portos "Goles" ou "Coles" ?
A curiosidade despertou em mim, a determinação de aprofundar a investigação desse facto.
Mantenhas
Nelson Herbert
USA
Guiné-Bissau > Porto Gole (2005) > Monumento erigido pela CART 1661 (Porto Gole, Enxalé, Bissá, 1967/68).
Foto: © Jorge Neto (2005) Direitos Reservados
2. Baseado neste comentário do nosso Tertuliano Nelson Herbert que nos segue nos EUA, lancei o seguinte repto à tertúlia:
Caros camaradas
Eis uma questão curiosa para os expert em História.
Um abraço
Vinhal
3. Mensagem/resposta do nosso camarada Mário Beja Santos, um entendido da cultura e história da Guiné, reencaminhada para o Tertuliano Nelson Herbert:
Carlos, Querido Camarada,
Sem prejuízo da peregrina hipótese de um escravo beafada oriundo daquele ponto da então Senegâmbia, transbordado em Cabo Verde para a Carolina do Sul, ali ter deixado uma memória das suas origens, o mais provável é que não exista qualquer nexo entre Porto Gole e Port Cole.
Encontrei, ao longo de porfiadas leituras, as mais díspares referências a Porto Gole(no século XIX escrevia-se frequentemente Portoguole, e na certidão de óbito dos comandos guineenses ali fuzilados, em Dezembro de 1977, escreveu-se Portogole, o que bem comprova a falta de consolidação do termo).
Inclino-me para explicação que os Soncó me deram em Missirá, tratava-se de bastardização de a Porta do Cuore, efectivamente os limites originais do regulado do Cuor chegavam a este entreposto fundamental antes de se chegar às praças-presídio de Fá e Geba, os limites da presença do branco, até ao século XX.
Vou ficar atento a outras conjecturas, prometo voltar à biblioteca da Sociedade de Lisboa no início de Dezembro, depois volto ao assunto.
Recebe um abraço do
Mário
4. Resposta minha de agradecimento ao camarada Beja Santos
Caro Mário
Muito obrigado pela tua pronta e oportuna intervenção.
No nosso Blogue, és sem dúvida das pessoas mais conhecedoras da história da Guiné, tanto pelos ensinamentos colhidos nos diversos livros que procuraste e continuas a procurar incessantemente, como nos contactos com naturais da Guiné, de quem recolheste imensa informação. Estou a lembrar-me do que referes no teu Diário da Guiné, 1969-1970 - O Tigre Vádio.
Com votos de estejas bem, apesar das circunstâncias, deixo-te um abraço.
O camarada e amigo
Carlos Vinhal
5. Comentário de Nelson Herbert:
Caro Vinhal
Valeu!! Bloguista que se preze, não vira as costas a um bom desafio.
Interessante a perpectiva do Beja Santos. E curioso que coincidindo com a minha estada no Port Cole dos gringos, no local encontrava-se e em início de trabalho de campo numa das Plantations, uma equipa de arqueólogos do Senegal... em busca de vestígios da presenca de povos da Senegâmbia na região - disse-me na altura o líder da equipa de arqueólogos, cujo contacto retive e que vou tratar de reatar, quanto mais não seja, para conhecer o evoluir das pesquisas!
Mantenhas
Nelson Herbert
6. Comentário de CV
Caros Tertulianos ficamos na espectativa de alguém vir até nós responder à interrogação de Nelson Herbert, e desfazer a nossa dúvida quanto à relação entre os nomes das duas localidades.
Não queremos sugestões, mas dados concretos.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 24 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)
(**) Vd. poste de 30 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXV: CCART 1661 (Porto Gole, Enxalé, Bissá, 1967/68)
Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4872: Controvérsias (26): Amílcar Cabral em Xangai (António Graça de Abreu)
1. Comentário de Nelson Herbert ao poste P4858 (*):
Porto Gole ou Portocole (**)??? Enfim...
Numa das minhas deslocações à Carolina do Sul, por sinal o estado norte-americano com maiores traços de parecença com a Guiné - o clima quente e húmido, o cheiro a terra quando a chuva bafeja, os pântanos, as bolanhas, os mosquitos e a bicharada - confesso pois que reencontrei nele, pedaços da minha Guiné e deparei-me também com um Port Cole, um outrora importante porto fluvial que serviu de ponto de entrada de escravos naquela região, cuja população conserva ainda hoje traços fisionómicos, idênticos a de algumas etnias guineeses.
Port Cole, hoje uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos.
Haverá porventura alguma relação entre esses dois Portos "Goles" ou "Coles" ?
A curiosidade despertou em mim, a determinação de aprofundar a investigação desse facto.
Mantenhas
Nelson Herbert
USA
Guiné-Bissau > Porto Gole (2005) > Monumento erigido pela CART 1661 (Porto Gole, Enxalé, Bissá, 1967/68).
Foto: © Jorge Neto (2005) Direitos Reservados
2. Baseado neste comentário do nosso Tertuliano Nelson Herbert que nos segue nos EUA, lancei o seguinte repto à tertúlia:
Caros camaradas
Eis uma questão curiosa para os expert em História.
Um abraço
Vinhal
3. Mensagem/resposta do nosso camarada Mário Beja Santos, um entendido da cultura e história da Guiné, reencaminhada para o Tertuliano Nelson Herbert:
Carlos, Querido Camarada,
Sem prejuízo da peregrina hipótese de um escravo beafada oriundo daquele ponto da então Senegâmbia, transbordado em Cabo Verde para a Carolina do Sul, ali ter deixado uma memória das suas origens, o mais provável é que não exista qualquer nexo entre Porto Gole e Port Cole.
Encontrei, ao longo de porfiadas leituras, as mais díspares referências a Porto Gole(no século XIX escrevia-se frequentemente Portoguole, e na certidão de óbito dos comandos guineenses ali fuzilados, em Dezembro de 1977, escreveu-se Portogole, o que bem comprova a falta de consolidação do termo).
Inclino-me para explicação que os Soncó me deram em Missirá, tratava-se de bastardização de a Porta do Cuore, efectivamente os limites originais do regulado do Cuor chegavam a este entreposto fundamental antes de se chegar às praças-presídio de Fá e Geba, os limites da presença do branco, até ao século XX.
Vou ficar atento a outras conjecturas, prometo voltar à biblioteca da Sociedade de Lisboa no início de Dezembro, depois volto ao assunto.
Recebe um abraço do
Mário
4. Resposta minha de agradecimento ao camarada Beja Santos
Caro Mário
Muito obrigado pela tua pronta e oportuna intervenção.
No nosso Blogue, és sem dúvida das pessoas mais conhecedoras da história da Guiné, tanto pelos ensinamentos colhidos nos diversos livros que procuraste e continuas a procurar incessantemente, como nos contactos com naturais da Guiné, de quem recolheste imensa informação. Estou a lembrar-me do que referes no teu Diário da Guiné, 1969-1970 - O Tigre Vádio.
Com votos de estejas bem, apesar das circunstâncias, deixo-te um abraço.
O camarada e amigo
Carlos Vinhal
5. Comentário de Nelson Herbert:
Caro Vinhal
Valeu!! Bloguista que se preze, não vira as costas a um bom desafio.
Interessante a perpectiva do Beja Santos. E curioso que coincidindo com a minha estada no Port Cole dos gringos, no local encontrava-se e em início de trabalho de campo numa das Plantations, uma equipa de arqueólogos do Senegal... em busca de vestígios da presenca de povos da Senegâmbia na região - disse-me na altura o líder da equipa de arqueólogos, cujo contacto retive e que vou tratar de reatar, quanto mais não seja, para conhecer o evoluir das pesquisas!
Mantenhas
Nelson Herbert
6. Comentário de CV
Caros Tertulianos ficamos na espectativa de alguém vir até nós responder à interrogação de Nelson Herbert, e desfazer a nossa dúvida quanto à relação entre os nomes das duas localidades.
Não queremos sugestões, mas dados concretos.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 24 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)
(**) Vd. poste de 30 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXV: CCART 1661 (Porto Gole, Enxalé, Bissá, 1967/68)
Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4872: Controvérsias (26): Amílcar Cabral em Xangai (António Graça de Abreu)
Guiné 63/74 - P4901: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (16): Soldado anónimo
1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos mais um texto do seu baú de memórias:
Camaradas,
Continuando as minhas memórias retirei do meu velho baú este texto, a quem prestei uma pequena actualização.
Por acho o assunto sempre actual e de grande interesse colectivo.
Chamei-lhe:
"SOLDADO ANÓNIMO"
O "Soldado Anónimo" é uma figura de personalidade sensível mas muito forte, criada por mim e que eu muito estimo e admiro.
Ser “Soldado anónimo” não é o mesmo que ser clandestino, exilado ou objector de consciência.
“Soldados anónimo” foi todo aquele Homem, de várias raças e credos, a quem, atribuíram um simples número mecanográfico, serviu o melhor que pode e sabia, muito para além daquilo que o cumprimento do dever lhes exigia, nas Forças Armadas desta Nação, e que depressa foi passado ao esquecimento, pelos seus irresponsáveis e incompetentes políticos e instituições da Tutela.
Muitos Homens que passaram despercebidos num problemático conflito armado, apesar de se terem entregados de corpo e alma, em nome de valores que lhe eram incutidos. Valores uns patrióticos e outros moldados à causa de um regime político, que os chamava para bem longe das suas terras, famílias, escolas, amigos, etc.
Depois eram embarcados para uma guerra, em inúmeros casos via limites extremos, para a execução prática de missões perigosas e mortíferas, para as quais muitos estavam mal preparados, fracamente formados e, deficiente e obsoletamente armados.
Foi a grande massa de uma geração jovem, de uma Pátria, a quem deram o seu melhor como podiam e sabiam, sem nada pedir em troca, onde pouco ou nada podiam questionar e apenas… cumprir. Quem ousasse questionar, lembram-se, tinha logo a PIDE à perna, os calabouços e, certamente, o degredo político. Foram enviados para a guerra “evangelizados contra o turra” até á raiz dos seus seres e intencionalmente despolitizados.
Sofreram na pele todas as amarguras do conflito; sofrimento, fome, miséria, dor e morte mas, mesmo assim, foram magnânimos nas suas acções e espontâneos e correctos, sabe bem Deus como, na execução das suas comissões.
Foi uma geração inteira - a mocidade do meu país de então -, que ninguém conhecia em terras distantes de Além-mar, de quem nos últimos 35 anos se evita falar, a quem o poder tutelar não reconhece os méritos dos seus Feitos Históricos, como foram o defender a nossa Bandeira, da nossa Cultura, da nossa Religião e dos nossos Compatriotas que lá viviam, procriavam, construíam, negociavam, etc.
Embarcaram para África como “Soldados anónimos”, regressaram como proscritos, e como desconhecidos permanecem.
No regresso, perderam-se na plenitude duma Metrópole alheia aos problemas e conflitos africanos, na sua lufa-lufa de sobrevivência diária, do mesmo modo quase completamente despolitizada. Mesmo os Camaradas bem colocados na política ”esqueceram” os seus restantes Camaradas, em nome de interesses político-partidários.
Dividimo-nos todos, cerca de 1 milhão de ex-Combatentes, pelos motivos mais diversos e mesquinhos, a que não é alheio, fundamentalmente, o egoísmo e o egocentrismo pessoal, em maiores ou menores doses, de cada um.
Tornamo-nos assim incómodos, insignificantes e minúsculos para que nos vejam?
Quantas vezes não fomos envergonhados pelos nossos próprios amigos e familiares, por diversos motivos, e ostracizados e desprezados pelos sucessivos governos deste país?
Sujeitamo-nos a leis pseudo-progressistas, rotulagens, perseguições e paranóias pós-abrilistas, que nos marginalizaram e quase nos destruíram, e continuamos a perguntar a Deus, que mal fizemos para merecer tal sorte?
Concluamos que o que muitos nos desejam, consciente e criminosamente, é a morte!
Talvez depois de mortos ressurjamos das cinzas e nos prestem então (para quê?), a devida justiça e algumas tardias e bacocas homenagens e honrarias.
Esta é a saga de muitos milhares de anónimos, soldados como eu, que combateram por este País numa terra longínqua e então traiçoeira chamada… Guiné.
Terra esta, com um povo adorável, que nós estranha e enigmaticamente continuamos a sonhar!
Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
Imagem: Casimiro Carvalho (2009). Direitos reservados.
___________
Notas de M.R.:
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