sábado, 3 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6099: A Guiné aos olhos das actuais gerações (2): Sinto que estou a aprender e a crescer na Guiné-Bissau (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

1. Mensagem de Hélder Sousa* (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 29 de Março de 2010:

Caros amigos Editor e Co-Editores e restantes camaradas
Aqui vos envio o 2.º texto com as crónicas da Marta Ceitil, enviadas aquando da sua aventura como formadora em terras da Guiné e para colocarem na série respectiva.

Neste episódio a Marta já começou a dar a primeira série de formações, em Bissau, sendo que a sua aprendizagem vai ser dura mas profunda e duradoura.

Escrevi aprendizagem porque foi exactamente isso que se passou: a Marta foi ensinar e acabou aprendendo também!

Aprendeu a dar novos valores às coisas da vida, aprendeu a dar e a receber, aprendeu a gostar da Guiné.

Um abraço
Hélder Sousa


A GUINÉ AOS OLHOS DAS ACTUAIS GERAÇÕES (II)

HÉLDER SOUSA / MARTA CEITIL




Depois do seu mail de 29 de Julho, em que dava conta das impressões iniciais e onde tudo era novidade, a Marta enviou novo mail em 9 de Agosto, já então com algum tempo de estadia e também de trabalho.

O mail foi o que se segue:

Saudades di mi terra :)
9 Aug 2009 18:49:02 +0000

Olá Família
E Kuma? Kurpo sta diritu? ;)

Pois é, já lá vão duas semanas e parece que já cá estou há um mês. Aqui é tudo tão diferente, a noção de tempo a passar também é diferente.

Já demos a nossa primeira formação, começou na terça-feira e acabou no sábado. Foi incrível. Não estava nada à espera de ter tanto jeito para isto! Nem estava à espera de gostar tanto de dar formação. Substimei o nível de conhecimento dos meus formandos, e levei um ‘estaladão’ na cara invisível: superaram todas e quaisquer expectativas que eu tinha. Foi uma experiência incrível e sinto que estou a aprender e a crescer a cada dia que passa. Sinto também que estou a mudar algumas coisas, ainda é cedo para dizer isto, mas agora, no presente, sinto que cada vez mais dou importância ao que realmente é importante e relativizo aquilo que não vale a pena, nomeadamente coisas minha e fúteis, que como um bom leão que sou, tenho e faz parte do meu ser, ser vaidosa e gastar (se me pudesse dar a esse luxo…) rios de dinheiro em cremes, em roupa, em botas Timberland. Não estou a dizer que quando voltar, vou ser toda ‘Shanti Shanti’ e ser contra o consumismo, mas aqui e agora isso não vale nada. Esta confrontação das duas realidades é brutal e está a fazer-me muito bem. O desafio é saber gerir bem esta confrontação e saber questionar sem me deixar levar pelo extremismo. Mas acho que estou a conseguir.

A semana que passou também foi um bocado tensa, afinal o sítio onde nós estamos não é assim tão protector dos animais como nós achávamos. No outro dia chegámos a casa, e os donos do aparthotel estavam cá fora no jardim a jantar e perguntaram se éramos servidas. Agradecemos e dissemos de imediato que não, o cheiro estranho a carne era insuportável! De seguida vou à cozinha (que é partilhada) para preparar o nosso jantar, quando... na bancada da cozinha está a cabeça da Nucha, a nossa bambi!!! Não aguentei e desatei a chorar!! Que horror! Percebi logo o que é que os outros estavam a jantar!!

Eu sei, estou na Guiné e é normal estas coisas... mas bolas, criámos uma relação com os animais e aos poucos estão todos a ser comidos! O Galo, já era, também já foi morto, (nem sabia que se comiam Galos, pensava que eram só galinhas), qualquer dia é o Manel e a Maria os nossos chimpanzés!!!

Enfim, estas e outras coisas fazem-me crescer e o ter de lidar com elas também!
O que vale é que amanhã vamos já para Mansoa, já estamos um bocado fartas de Bissau. Também é por isso que estou a escrever, vou ficar até ao dia 26 de Agosto em Mansoa, e aí não há mesmo internet, só o telemóvel. Estamos ansiosas para ir, vamos para a Escola Nacional de Voluntariado, funciona como um Campo de Férias com vários jovens que se inscrevem para ter formação em: Associativismo Juvenil, Saúde Sexual Reprodutiva, Planeamento Estratégico, e Metodologia de Projecto. Eu vou ser coordenadora e responsável pela Formação de Saúde Sexual Reprodutiva, e acho que vai correr novamente bem. Já temos os nossos amigos que são impecáveis, ontem à noite começou a doer o ouvido à Telma, eu com uma lanterna espreitei o ouvido... tinha um bichinho lá dentro. Tínhamos de ir a uma farmácia, ligámos ao nosso amigo Cemjoão (não é o 99 é o cem) que tem uma mota, para nos ajudar a encontrar uma farmácia. Impecável, tratou de tudo e conseguiu as tais gotas para o ouvido que mata o bicho!

Hoje ligámos à nossa médica que nos confirmou que fizemos bem. Só aventuras!!! Cada vez que andamos de Táxi é um filme, mas o lado bom é como os taxistas são todos senegaleses, farto-me de falar francês e afinal não estou assim tão mal quanto achava estar.

Estamos a ser muito bem tratadas e bem recebidas por todos. Andamos na rua e parece que estamos na aldeia, toda a gente nos conhece :)

Bem, este mail está a ficar muito grande, só para vos mandar um grande beijinho e dizer que tenho muitas saudades vossas :)

Espero que esteja tudo bem convosco. Na terça-feira ligo à Joana para dar os parabéns ao Francisco!

Beijinhos grandes
Marta Ceitil



O que se pode dizer quanto a isto?

A aprendizagem desta jovem faz-se a um ritmo acelerado. O contraste entre a sua realidade até então vivida e a dura realidade guineense contribui fortemente para um crescimento mental, um crescimento interior, que a vão levar a novos e mais elevados patamares do relacionamento humano.

É verdade que a atitude ajuda muito. Se se parte com o espírito de grupo, de partilha, o ensino e a aprendizagem entrelaçam-se e atingem-se resultados positivos.
De qualquer modo essa aprendizagem tem, como sempre, aspectos duros.

Veja-se a descoberta de que a Casa/Pensão não era propriamente um zoológico ou um habitat/refúgio de animais indefesos…

Veja-se como se aprende que não se pode ir para estes locais com preconceitos, pois rapidamente se pode levar um ‘estaladão’…

Mas também se veja como a Guiné permite, se assim se quiser e estiver disposto a isso, que rapidamente as pessoas procurem superar os seus limites e se questionem sobre os valores da Vida.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6054: Controvérsias (68): Preciso de entender coisas que não alcanço (Hélder Sousa)

Vd. primeiro poste da série de 9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5961: A Guiné aos olhos das actuais gerações (1): Marta Ceitil, cooperante na área da Formação (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6098: Tabanca Grande (210): Fernando da Costa Gomes de Araújo, (ex- Fur Mil OpEsp/RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74)


1. O nosso Camarada Fernando Araújo* (ex-Fur Mil da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74), enviou-nos a sua primeira mensagem, solicitando a adesão à Tabanca Grande, com data de 2 de Abril de 2010:




Camaradas passo a apresentar-me a esta grande tertúlia cibernáutica,

Nome: Fernando da Costa Gomes de Araújo
Nº. Mec.º:
19740272
Especialidade: Operações Especiais/RANGER (4º Curso de 1972)
Posto: Furriel Miliciano
Local na Guiné:
Jumbembem
Período:
1973/1974
Unidade: 2º pelotão - 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512


Andei envolvido com o meu pelotão numa coluna a Guidage, cuja acção decorreu imediatamente antes da execução no terreno da famosa e mortífera operação Ametista Real e numa terrível emboscada em Lamel (região situada entre Jumbembem e Farim), acções estas de que vos darei a minha visão pessoal dos factos, em futuras mensagens.

A presente mensagem e a próxima serão dedicadas ao aquartelamento de Jumbembem e alguns aspectos de que disponho fotografias.

Foto 1 > Jumbembem > 1974 >2ª CCAÇ do BCAÇ 4512 > Em primeiro plano: o refeitório, caserna do 4º pelotão e espaldão do Obus 10,5 cm. Ao fundo: a escola e a Tabanca da milícia

Foto 2 > Jumbembem > 1974 > 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512

Foto 3 > Jumbembem > 1974 > 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512 > Caserna do meu 2º pelotão

Foto 4 > Jumbembem > 1973 > Parada do quartel

Foto 5 > Jumbembem > 1974 > 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512 > Tarefa diária do Sargento de Dia à Companhia era a cerimónia do arriar da bandeira. Neste dia tocou-me a mim

Foto 6 > Jumbembem > 1973 > A chegada de um helicóptero com o correio

Foto 7 > Jumbembem-1973 > Instantâneo da chegada do helicóptero com a correspondência. Esta foto foi obtida da porta do meu quarto

Foto 8 > Jumbembem > 1973 > Picada de Canjambari

Foto 9 > Jumbembem > 1974 > O pessoal do 2º pelotão

Foto 10 > Jumbembem > 1974 > A caserna do 2º pelotão

Foto 11 > Jumbembem > 1974 > Os dois Comandantes da Companhia: Cap Mil Aires da Silva Gouveia e o Cap Mil OpEsp RANGER Avelar de Sousa (já quase sem cabelo)

Foto 12 > Jumbembem > 1974 > Messe. Sentados, da esquerda para a direita: Eu, Gomes, Alf Mil Moura, Cap Mil Aires Silva Gouveia, Cap Mil OpEsp/RANGER Avelar de Sousa

Foto 13 > Jumbembem > 1973 > Natal na messe

Foto 14 > Jumbembem > 1973 > Eu a tocar viola e, ao meu lado direito, está o nosso Comandante

Foto 15 > Jumbembem > 1974 > 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512 > Aqui estou eu a “votar” discurso na messe

Foto 16 > Jumbembbem > 1974 > Escrevendo à minha futura mulher, Rosa Maria ou Romy (como eu lhe chamo), no meu quarto
Um abraço,
Fernando Araújo
Fur Mil OpEsp/RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512

2. Comentário de MR:

A partir de agora o nosso Camarada Manuel Marinho (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), já tem no blogue mais um elemento do seu batalhão.


Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
Fotos: © Fernando Araújo (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

2 DE ABRIL DE 2010 >
Guiné 63/74 - P6093: Tabanca Grande (209): Regressei a Portugal depois de 36 de ausência, mas encontrei a mesma burocracia (João Bonifácio)

Guiné 63/74 – P6097: Agenda Cultural (69): Homenagem da Câmara Municipal de Lisboa ao Marechal António Spínola (Mário G. R. Pinto)


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem:

Camaradas,

Creio ser do interesse de todos os ex-Combatentes, que sob das suas ordens combateram na Guiné, quando desempenhou a função de Governador e Comandante-chefe do CTIG:

HOMENAGEM DA CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA AO MARECHAL ANTÓNIO SPÍNOLA

Realiza-se no próximo dia 11 de Abril de 2010, por altura do centenário do nascimento do Marechal Spínola, uma justa homenagem ao homem que na Guiné se tornou lendário nas qualidades de Comandante-chefe do Exército Português e Governador do Território.

O "Caco" como era respeitosamente conhecido, era estimado na generalidade e odiado por alguns devido a diversos motivos, vai finalmente ter o seu nome inscrito numa artéria da cidade de Lisboa (prolongamento da Av. Estados Unidos da América com a rotunda Infante D. Henrique).

As cerimónias vão contar com a presença de altas individualidades do nosso país, destacando-se o Sr. Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, Fernando Spínola (sobrinho do falecido marechal) e o Embaixador, Dr. João Diogo Nunes Barata, que foi Secretário e Conselheiro de António de Spínola, quando Governador da Guiné e Chefe da sua casa civil, quando Presidente da República, logo a seguir ao 25 de Abril.

Recorda-se que o Marechal António Spínola, nasceu em Estremoz em 11 de Abril de 1910 e faleceu em 13 de Agosto de 1996.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art da CART 2519
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

13 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5989: Agenda Cultural (66): Homenagem aos ex-combatentes da Guerra Colonial do Concelho de Moura, dia 10 de Abril (Francisco Godinho)

Guiné 63/74 - P6096: Meu pai, meu velho, meu camarada (20): Nunca te esqueças de escrever à tua mãe (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 29 de Março de 2010:

Caros Luis, Vinhal, Magalhães e restantes tabanqueiros
É uma pequena homenagem que faço ao meu pai.

Um abraço
Juvenal Amado



MEU PAI MEU AMIGO

“Nunca te esqueças de escrever à tua mãe”.



O meu pai à esquerda

Estas foram as suas últimas palavras quando me abraçou, naquela madrugada fria de Dezembro, à porta de armas do RI 2 em Abrantes.

Assim foi, nunca passei uma semana em que não escrevesse para a minha mãe, no fim mandava beijos e abraços para o meu pai e irmãos. Ele estava lá sempre em segundo plano, mas garantindo que tudo se passava como o previsto.

Era um homem afável com um elevado sentido de humor.

Foi Soldado de Artilharia Antiaérea e Defesa de Costa na Trafaria onde prestou serviço à volta de 1946.

Sobre a sua passagem pela vida militar, conheci as estórias dos desenfianços e do pouco apego à instituição militar bem como à disciplina que ela impunha.

Desenhador de profissão, ilustrava estórias de cowboys e índios para nos divertir. Chegou a fazer banda desenhada e inúmeros cartazes para os bombeiros e outras associações que deles necessitavam para campanhas de recolha de fundos.

Também fez parte de grupos musicais que abrilhantavam os bailes das associações. Tocava bateria e compunha assim o orçamento familiar com mais uns “cobres”.

Vagamente lembro-me com quatro ou cinco anos dormir com o seu casaco por cima, atrás do palco quando já não aguentava mais o sono.

Mais tarde ensinou-me os princípios básicos da sua profissão, os seus ideais sobre um país novo e livre, fui aprendendo observando-o ao longo dos anos que privei com ele em casa e no emprego.

A nossa relação foi distante enquanto eu fui garoto, o que era natural, pois a figura do pai era sempre austera e menos acessível que a mãe, mas foi fortíssima na minha idade adulta especialmente após o meu regresso da Guiné.

Identificávamo-nos no essencial no plano social e político, gostávamos em grande parte dos mesmos petiscos, filmes e escritores, deferíamos no gosto musical como era natural, mas acima de tudo o que gostávamos mais, era de estarmos juntos.

Qualquer mesa, qualquer café ou um pouco de pão e queijo era o suficiente para saborearmos um copo e o prazer de estarmos juntos. A minha mãe muitas vezes dizia: "tal pai tal filho".

Não me lembro de ele ter pedido algo que fosse só para si.

No dia do Pai percorri a memória e a saudade que tenho dele.
Nunca lhe disse o quanto o amava, talvez convencido que isso estava à vista desarmada.
Sinto que não gozei o suficiente a sua companhia

A sua morte no dia 13 de Janeiro de 1995 foi o acontecimento mais triste da minha vida e hoje lembrei-me de que nunca lhe escrevi uma carta.

Juvenal Amado
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6006: O 6º aniversário do nosso Blogue (9): O Blogue, o futuro, os nossos encontros, os dias em que não me sinto fora de prazo... (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 24 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5154: Meu pai, meu velho, meu camarada (19): Cabo Verde, 1942: Plano de defesa do arquipélago, de Santos Costa (José Martins)

Guiné 63/74 - P6095: Os nossos regressos (22): Os cruzeiros da minha vida (Armandino Alves)

1. O nosso Camarada Armandino Alves (ex-1º Cabo Auxiliar de Enfermagem na CCAÇ 1589 - Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé -, 1966/68), enviou-nos uma mensagem, em 1 de Abril, que a seguir publicamos:


Os cruzeiros da minha vida

Camaradas,

Tenho lido muitas descrições sobre o transporte marítimo do pessoal mobilizado para a Guiné.
Eu não sei como o mesmo se processava no Uíge e no Niassa, certo é que, em tempos de paz, esses navios estavam destinados exclusivamente à movimentação de cargas e passageiros.
Não estavam, com certeza, dimensionados para acolher, como muitas vezes o fizeram, um batalhão e outras unidades.
Segundo me apercebi, em algumas viagens chegaram a transportar um batalhão e mais uma ou duas companhias.
Mas eram considerados barcos estáveis em alto mar.
Alguns dos navios empenhados nestas tarefas, de leva e trás, eram adaptados, mal e toscamente, de transporte de cargas para passageiros, transformando os porões de armazenamento de cargas em longas e atrofiadas camaratas.
Agora, aqueles que não viveram esse pesadelo, imaginem o que são cento e tal homens, enfiados num barco que normalmente transportava meia dúzia de passageiros.
A sua vocação era inequívoca, o transporte de cargas.
Então os poucos camarotes eram destinados aos oficiais e sargentos e o restante pessoal ia no porão, apinhado em colchões de palha, alinhados pelo pavimento sem qualquer tipo de cobertura, ou outra protecção. Privacidade zero!
Para os cabos e praças as instalações sanitárias eram construídas em madeira, sobre uma das amuradas do barco e consistiam, basicamente, num caixote em madeira dividido em três, com uma tábua transversal e um buraco no meio onde o pessoal se sentava.
Os resultados das evacuações caiam directos no mar (sem como é óbvio passar por nenhum tratamento residual).
Quanto a banhos estamos falados, até para lavar a cara era preciso levantar cedo para ter direito a água potável.
A alimentação não era da pior, só que a cozinha não estava dimensionada para servir tanta gente.
Eu, à boa moda da tropa de então ”desenrasquei-me”, pois comecei a entabular conversa com o pessoal da cozinha e a ajudá-los no transporte dos congelados da câmara frigorífica, cuja entrada obrigava a vestir um casaco de peles até aos pés, com carapuço e luvas do mesmo, pois o frio era “mais que muito”.
Assim, viajei todo o percurso dentro da casa das máquinas, pois era um dos poucos sítios onde se sentia menos o balanço do barco e, por isso, menos enjoativo.
Havia na parede um dispositivo com uma escala e um ponteiro no meio, que se deslocava ora para a esquerda ora para a direita, indicando o grau de inclinação do barco.
Acompanhei os mecânicos, de uma ponta à outra do barco, ou seja da casa das máquinas até à hélice a inspeccionar o veio principal de transmissão.
No regresso à Metrópole não tive tanta sorte, mas como o tempo era de Verão passei-o bem e, como vinha de retorno a casa nem liguei a isso. Quanto mais depressa chegasse melhor.
A viagem para a Guiné, foi a bordo do navio Manuel Alfredo e o regresso foi no Ana Mafalda (dois transatlânticos do meu tempo).


Um Abraço,
Armandino Alves
1º Cabo Aux Enf CCAÇ 1589 (1966/68)
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

1 de Abril de 2010 >
Guiné 63/74 - P6089: Os nossos regressos (21): No dia 1 de Abril de 1970, a CCAÇ 2381 finalmente despede-se em Parada Militar (Arménio Estorninho)

Guiné 63/74 - P6094: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (15): As famosas costeletas do Asdrúbal, e não só (Rogério Cardoso)

1. Nota solta do nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), enviada em mensagem do dia 29 de Março de 2010.


NOTAS SOLTAS DA CART 643 (15)

As costeletas do Asdrúbal


No pouco tempo que a Cart 643 esteve em Bissau, deu para que todos os locais onde houvesse petisco, fossem visitados. Eram consumidos uns caranguejos do rio, camarão, ostras, etc.

Todos se lembram de um restaurante perto do Forte da Amura, que era conhecido pelo Asdrúbal, ou também pela alcunha do Porco Sujo.
A freguesia abundava, mesmo sabendo que a limpeza não era predicado que se aplicasse, mesmo assim era capaz de ser melhor do que se passava nos aquartelamentos e messes.

Então o que fazia aquela malta acorrer com tal abundância?

Eram dois os motivos, o primeiro é que as refeições eram servidas por uma filha do Asdrúbal, rapariga nova, forte, buçal, com um abundante manto cabeludo distribuido pelo corpo visual. Aplicando-se o velho ditado que "na terra de cego quem tem olho é rei", era o melhor que se conseguia ver por aquelas bandas.
O segundo motivo eram as gostosas costeletas, que deliciavam a freguesia, incluindo eu e alguns camaradas, só que mais tarde, mas dentro do espaço da nossa permanência em Bissau, foi descoberto que elas provinham do desgraçado do chamado Macaco Cão, descoberta feita por acaso, quando um nativo dos arredores, vindo com um às costas e interrogado, afirmou que era costume fornecer o Asdrúbal com tal produto.

Mais tarde, ouvimos dizer que houve grande cena de pancadaria, com destruição de parte do Restaurante, não sei se por causa do macaco se pela cabeluda filha, que era um deslumbre para o Zé Tropa.

R.C.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6072: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (14): Recordando o Fur Mil Américo Leong Monteiro, Maitá

Guiné 63/74 - P6093: Tabanca Grande (209): Regressei a Portugal depois de 36 de ausência, mas encontrei a mesma burocracia (João Bonifácio)

1. Mensagem do nosso camarada João Bonifácio* (ex-Fur Mil SAM, CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), com data de 27 de Março de 2010:

Olá Caros Amigos e Camaradas;

Os melhores cumprimentos ao Carlos, Graça e restantes responsáveis por este local de encontro.

Como em tempos informei, eu tomei uma decisão radical e que foi mudar de temperaturas. Assim, e depois de 36 anos num país frio e com uns verões muito curtos, resolvi regressar a Portugal. Não, eu não retornei... eu regressei apenas ao meu country de origem.

Tem sido muito complicado. Primeiro porque deixei neve e frio no dia 9 de Janeiro, e logo para me habituar melhor, Portugal premiou-me com chuva, vento e frio. Eu nada fiz para merecer este castigo, mas como não chegasse, e vindo do Canadá, pensei que duas semanas depois poderia fazer a escritura de um andar que o verão passado comprei na Quinta do Bom Retiro, Vale Figueira, na freguesia da Sobreda.

Eu tinha tantas informações, confirmações e contactos que até pensei: eh pá... Portugal está muito mudado, e daí asneira. Acreditei. Calculem que até vendi a minha casa no Canadá em 48 horas... e hoje dia 27 de Março ainda não estou no andar.

Papéis, inspecções, burocracia, fins de semana longos, férias para tudo e mais, Carnaval e com a Páscoa tão perto, já vi filmes mais bonitos.

Estou a tentar manter a calma, mas até me tem parecido o mesmo da nossa idade para a Guiné. Tudo feito à balda e em cima do joelho, e nós os "combatentes" nem água tínhamos naquele campo quente e de barracas que eu nem me lembro já onde era.

É evidente que a chegada chuvosa a Portugal foi melhor. Tive direito a uma recepção, mas sem a red carpet, mas uma viagem sem "minas" pela segunda circular, eixo norte-sul e depois sobre a sempre espectacular ponte sobre o Tejo, que nem digo o nome, em caso que algum ministro sem pasta... ou quase, se lembre de acordar um dia e deixar de ser 25 de Abril.

Finalmente, parece que a primavera está já à porta em termos reais, pois das datas estou eu cansado. Nós fazemos barulho porque temos 15 graus e no meu segundo país, refilam porque está vento e baixa a temperatura para menos 14 como foi nos últimos dois dias.

Ainda não estou preparado para o combate, mas estou a tentar por-me em forma.

Para já este mail a dizer que cá estou, e a partir de agora, tentar rapidamente adaptar-me a tudo, incluindo aos serviços de saúde.

Por intermédio do Carlos, renovo os meus cumprimentos a todos e obrigado pela atenção dispensada.

João Gomes Bonifácio
CCAÇ 2402
Guiné/1968-70


2. Comentário de CV:

Caro Bonifácio
Pois é... mudar mentalidades é muito complicado, e este país é um caso sério.

Serviço público que se preze atira para as mãos do utente uma molhada de papéis para preencher. Tratam-nos por senhor José, senhor Carlos, quando não, por você.

Não te esqueças da gorjeta que sempre lubrifica o sistema e retira umas pedras da engrenagem.

Bem-vindo ao nosso Portugal imutável e corrupto, e vê se não compras algum andar já vendido a outrem ou ainda hipotecado pelo construtor.

O perigo espreita onde menos esperares.

Em nome da tertúlia desejo-te as maiores felicidades neste teu velho país.

Se puderes envia as tuas fotos da praxe, uma antiga e outra actual para os nossos registos.

Recebe um abraço dos editores e da restante tertúlia.

Vinhal
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5256: Tabanca Grande (186): João Bonifácio regressa em Janeiro de 2010 ao solo pátrio (Os Editores)

Vd. último poste da série de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5981: Tabanca Grande (208): Daniel Matos, ex-Fur Mil da CCAÇ 3518 (Gadamael, 1972/74)

Guiné 63/74 - P6092: Notas de leitura (87): Antologia O Corpo da Pátria, de Pinharanda Gomes (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Não conheço mais obras sobre literatura de nacionalistas que combateram na Guiné ou à Guiné aludam.
Peço a amabilidade a quem possua livros de exaltação nacionalista, proveniente de antigos combatentes na Guiné, que me facultem para se proceder a inventário.
Recordo que já aqui se fez referência a uma Antologia do Conto Ultramarino organizada por Amândio César.

Um abraço do
Mário


O corpo da Pátria:
Dar voz aos nacionalistas que combateram na Guiné


Beja Santos

Alguns dos poemas publicados por Rodrigo Emílio em “Vestiram-se os Poetas de Soldados” tinham aparecido na antologia “O Corpo da Pátria” (Editora Pax, Braga, 1971) organizada por Pinharanda Gomes, um intelectual e filósofo que nunca escondeu o seu ideal nacionalista. Aos poetas nacionalistas que não combateram ou combatiam em África chamou-lhes poetas da retaguarda (caso de Fernanda de Castro, Natércia Freire, Fernando Guedes e Pedro Homem de Mello); aos poetas combatentes chamou-lhes poetas da frente, incluindo, entre outros, Rodrigo Emílio, José Valle de Figueiredo, Jorge Silveira Machado, Almeida Matos, Armor Pires Mota e João de Mattos e Silva. Como se compreenderá, iremos referenciar os poetas que combateram na Guiné e que pelo seu canto se assumiam pela integridade territorial, usando as expressões possíveis que a lírica, o epigrama, a épica e a apologética consentem, revelando sentimentos exaltados, de apelo ao heroísmo, por vezes de consciência abismada e patética. Diz Pinharanda no prefácio: “O leitor encontrará um mundo vário de motivações: o amor, a morte, a saudade, a promessa, o ódio, o medo (o medo!), a indecisão, o regresso, a viagem sem retorno – o testemunho vivo, directo, de quem reagiu ao empurrão. Ainda que a validade intrínseca de alguns poemas possa ser posta em causa, todos os poemas antologiados são vivo testemunho de um lance histórico da vida portuguesa”.

Como se passa a exemplificar. De Jorge Silveira Machado, natural de São Jorge, Açores, oficial condecorado, o poema “Quem é o inimigo”:

Só conhecemos o inimigo
quando começa o tiroteio
a força a violência o ódio os berros
e a morte pelo meio

quem é o inimigo
quando há silêncio na floresta
no rio no tarrafo no capim
esperar é o que nos resta

só conhecemos o inimigo
quando o fogo cresce à nossa volta
e tudo acaba como principia
quando se volta
..............................................

só conhecemos o inimigo
quando começa o tiroteio
a dúvida o perigo
e a morte pelo meio



De Almeida Mattos o poema “Guiné/67”

Solenes, voltaremos.
E sobre o mar as cicatrizes ficam
livres da dor, do ódio desta guerra

Inútil e eterna essa lembrança
breve e inútil como nossas vidas.

Amanhecerá no teu corpo um pleno verão,
feito de frutos desta longa ausência
dos corpos que ficaram nas bolanhas
que em nossos próprios corpos viverão.



De Armor Pires Mota e do seu poema “Cântico”

Vou partir para a metralha, Senhor!
Carrego de morte os bolsos e os olhos
doidos de manhãs de claras, rasgadas no infinito.
Afivelo a alma bem dentro da alma
e, de medo, trauteio a marcha do rio Kwai.
Não sujo as mãos de qualquer remorso,
não seja cobarde: tenho o meu povo, a minha bandeira! –
e, se tombar no sangue, na lama,
seja para Ti, Senhor,
a força do meu cântico.



A minha maior surpresa foi encontrar nesta colectânea “Poema de uma Guerra Longe”, de Ruy Cinatti, datado de 1970. Conhecia-o, recebi-o na Guiné, era a resposta a uma descrição que eu fizera de um encontro com guerrilheiros. Carta e poema foram oferecidos à Sociedade de Geografia de Lisboa:

Sete horas húmidas, algures.
Progressão, fardas ensopadas.
Silêncio na terra de combate.
Silêncio nos corpos.
Estacas calcinadas.

O piar da aves, o olhar súplice.
Dois tiros quase num só eco.
O desabar das folhas, ramos rápidos.
Um grito que se apaga.

Missão cumprida, a meta adivinhada.
Febre sem alma ou acordo.
O peso súbito de um morto

Caindo nos ombros estreitos,
Doloridos,
da minha miséria.

__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6087: Notas de leitura (86): A Lebre, de Álvaro Guerra - a intervenção da tolerâcia numa escrita que escapou à censura (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6091: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (27): Teixeira Pinto - o dia-a-dia

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 26 de Março de 2010:

Amigo Vinhal
Mais uns apontamentos de “Viagem …” que se calhar te vai dar um pouquito de trabalho, ajudando-te na saúde, que espero esteja bem.

Um abraço extensivo a todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (27)

Teixeira Pinto – o dia a dia


A actividade operacional da “FORÇA” em Teixeira Pinto foi tão intensa ou mais do que em Bula, mas tivemos na verdade outras condições dadas pelo comando do CAOP 1

Ao que me disseram, parece que fomos destacados para lá por a nossa operacionalidade no sector de Bula ter sido considerada eficiente. É verdade que tínhamos sido a Companhia do Batalhão que mais combates travou nas matas de Bula e ao que sei, mais estragos causou ao IN, que nos teria “um certo respeito”.

Talvez por essas razões, ficamos à ordem não do BCAÇ 2905 mas do comando do CAOP 1, que nos utilizou em “rotação” com os Fuzos, Páras e Comandos lá estacionados, como se fôssemos também Tropa Especial. Só não fizemos saídas de heli!

Assim sendo, a breve trecho e após provas dadas(?!) recebemos certas contrapartidas de maneira a minimamente satisfazer o “para trabalho igual, salário igual “ do pós 25 Abril, digo eu (!!!), sendo que neste caso o salário era a alimentação e o armamento. O trabalho era o que todos sabemos!

Talvez para que mantivéssemos a dinâmica e a boa operacionalidade no ”trabalho”, passamos a ter rancho melhorado, suplemento e ração de combate especial, ao que recordo idêntica à dos Fuzileiros. Quanto ao armamento, para além da nossa dotação normal, acumulamos mais duas MG, um (dois ?) morteiro 60 e creio que mais um lança-granadas, ao que recordo por GCOMB. Estas armas eram-nos também dispensadas pelos Fuzileiros que, sem desprimor para as outras tropas Especiais, era um Pessoal diferente, impecável, de fácil convivência sempre prontos a nos apoiar e ajudar no que pudessem.

Claro que estas “benesses” nos ajudavam à auto-confiança e moralizavam o Pessoal nas constantes acções a desenvolver naquelas matas belicosas. Dava-me gozo e confiança olhar para a Rapaziada do bi-grupo (por norma reduzido) formada na parada antes das saídas e vê-los com aquela disciplina, aquele “porte” e aquele armamento!

Na verdade sinto orgulho e emoção por ter ajudado a comandar e ter feito parte integrante daquele grupo de Rapaziada que, como tantos e tantos milhares de outros, a troco de nada se sacrificaram e deram o seu melhor incluindo sangue e vida, na defesa da que sentiam sua Pátria e do seu símbolo maior a Bandeira, também naquelas latitudes flamejante e que nos tempos actuais são tão pouco ou nada reconhecidos, esquecidos e maltratados em nome(?) de uma vergonha (?!) absurda, que nos querem fazer sentir, mas que eu não sinto nem aceito! Como tantos milhares, cumpri o meu dever o melhor que soube e pude e volto a afirmar que me sinto orgulhoso por o ter conseguido, com a ajuda de Deus e dos meus Camaradas de armas.

Foto 1 > O meu 2.º GCOMB completo

Foto 2 > Elementos 4.º GCOMB

Recebidas todas estas “cerejas”, faltava o “bolo” propriamente dito que não tardou a ser servido ! Foi um grande e pesado bolo com doses de veneno que foi sendo cortado em fatias que pareciam não acabar, sobrando sempre mais uma !!!! Íamos comê-las lá para o Balanguerês e Burné, por norma a todas as trinta e seis horas durante cinco meses até primeiros de Dezembro, com interregno de Agosto em que fomos para o AGREBIS. O pior é que algumas dessas fatias nos “caíam” pior por ficarem estragadas, afectando-nos o corpo e a Alma!

Para de certo modo “desenjoar” deste bolo e para fugir um tanto ao ambiente e disciplina castrenses, alguma da Furrielada (creio que só?) alugamos uma vivenda situada numa perpendicular à Av. Principal e próxima do quartel, que usávamos parcialmente nas nossas trinta e seis horas de descanso.

Aberta a todos os que quisessem confraternizar de mente aberta e sem hierarquias, por lá passou quem quis e continuou a lá ir quem se sentia bem naquele ambiente de sinceridade e espontaneidade. Eram momentos de recuperação psicológica em que nos permitíamos quase tudo, inclusive… sonhar!

Era uma vivenda simpática, com o seu belo alpendre onde não faltavam a cadeira de baloiço que nos embalava numa leve modorra e os sempre presentes (julgo que em toda a Guiné) “bancos –caixote” a par de umas cadeiras. Já se dizia “o seguro morreu... de velho” e assim também não faltava nunca pelo menos uma ou mais G3 à mão, já que na segurança “mais valia prevenir que remediar” e elas podiam vir a fazer a diferença, mesmo considerando Teixeira Pinto um “oásis de paz”!

Por lá passávamos bons momentos em amenas cavaqueiras por norma “des-intelectuais” e pseudo-filosóficas que não nos levavam a lado algum a não ser a umas gargalhadas e a uns “arriões” vocabulares susceptíveis de fazer corar um “militar de carreira” e o meu amigo Portuense “Teixeira Malcriado”!!!…
As escritas mais ou menos comentadas, as “confidências – disseminadas” de amores e desamores temporários, os comentários e as criticas jocosas normalmente com base no feminino… iam-nos escorrendo as horas. O importante era não ter tempo para pensar muito nas incertezas do amanhã!

A entremear, também lá aconteciam as “cerimónias” de fazer inveja a qualquer batucada, em que o whisky, as Casal Garcia e as “bazucas” fresquinhas, acompanhadas ou não por petisco eram quem comandava, nos punham a desopilar com cantorias infernais ao desafio, sincopadas ou não por viola e “batuque” na meia cabaça ou na mesa e nos podiam levar a fazer as ditas e consideradas “figuras tristes”!!! Eram espectaculares estas cerimónias e aconteciam quase sempre que chegávamos da mata.

Foto 3 > "Cerimónia” – Urbano de pé eu à viola

Foto 4 > "Cerimónia" com a G3 à mão

Claro que muito do tempo também se passava no “lar doce lar” do quartel, por onde cirandavam a “Belinha” e a "Sheilinha”, duas canídeos rafeiras que me adoptaram e de quem gostava muito. Por onde andasse no quartel, elas seguiam-me e já crescidotas, quando saíamos nos “Unimog” elas seguiam-no até à saída da povoação, até que um dia um “inteligente” lhes mandou um tiro. Nunca mais as vi!

Foto 5 > A Bélinha e a Sheilinha

O nosso BAR (Furriéis) era o dos Comandos. Por lá se bebiam uns valentes copos e se passavam tempos agradáveis em conversas talvez meio “sérias da treta”, já não recordo e em que algumas vezes no final, o caminho mais curto entre dois pontos deixava de ser a linha recta para ser a sinusoidal!!!

Havia também por lá a “mota da Companhia”, isto é, a motorizada do Alferes Barros (guineense) em que dávamos umas voltitas e fazíamos umas “habilidadezitas”. Esta motorizada era o transporte que o Barros usava para se “desenfiar” com o pretexto de visitar a família (dizia), deixando-me e ao Castro “órfãos” do comando do 2.º GCOMB e até bi- grupo em algumas das saídas para o mato.

- Oh Alferes… outra vez? Foda–se… a família é grande com'ó caralho…!!! - Dizíamos-lhe (bocas no género) rindo!

- Sabes onde está o Barros? Sei lá…, deve-se ter “posto nas putas”… e a gente que se “foda”…!!! - Dizíamos bem dispostos.

Ele era (é) um “gajo porreiro”, valente e que confiava em nós. Por isso é que de quando em vez “abusava” sem dizer népia! Na verdade formávamos uma boa equipa.

Foto 6 > “Mota da Companhia”- a minha “habilidade” com o descanso no chão !!!

Foto 7 > “Clientes da mota da Companhia”, montada pelo dono. Da esquerda: Alf Mil Freitas Pereira; Fur Mil Fontinha; eu; Alf Mil Barros e Alf Mil Gaspar

O rio, onde se davam umas braçadas e uns mergulhos para refrescar e desanuviar, mesmo com o risco de “ganhar elefantíase”, pródiga naquelas paragens como tive ocasião de constatar, era também um local que de quando em vez visitava e apreciava, que me transmitia uma certa paz de espírito e me ajudava a “reformatar” para a próxima saída.

Enfim, todos os pretextos eram bons e úteis para gastar o tempo, evitando questionar-me sobre o futuro! Vivia o dia a dia e… era só!

Foto 8 > Bolanha - rio

Foto 9 > Banho retemperador com faca no cinto por causa dos “elefantes”!!!

Foto 10 > À procura do Mundo - bolanha ao fundo
Fotos: © Luís Faria (2010). Direitos reservados


Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5984: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (26): Teixeira Pinto, Julho de 1971, no pico da época das chuvas