MEMÓRIAS DA GUINÉ
2 - A Mobilização
Em Setembro de 1969 sou mobilizado, sendo integrado num Batalhão que estava a ser formado em Chaves com destino à Guiné.
O Comandante de uma das Companhias, Capitão Pardal (do quadro permanente) baixou ao Hospital Militar e eu fui designado para o substituir. Munido das análises e do relatório médico dirigi-me a Chaves, onde cheguei ao fim de um determinado dia.
Na manhã seguinte apresentei-me ao Comandante de Batalhão e referi-lhe o que tinha acontecido comigo, relatando-lhe a cólica renal de que teria sido acometido e mostrando-lhe os documentos que me acompanhavam.
- Já tomou o pequeno almoço? - perguntou-me o Comandante.
- Não, ainda não, respondi-lhe.
- Então venha daí comigo e enquanto o tomamos juntos vamos conversando.
Nessa conversa que tivemos fiz-lhe ver que para o Batalhão que comandava não era aconselhável ter um Comandante de Companhia (um capitão) fisicamente diminuído e que me parecia dever procurar-se, em primeiro lugar, o meu restabelecimento completo antes de iniciar funções.
Concordou comigo e mandou chamar o médico para me observar. Dessa inspecção médica resultou que, nesse mesmo dia, fui mandado para o Hospital Militar do Porto.
Aí apresentei as minhas queixas no que respeitava à parte renal mas também fiz questão em referir que fazia a digestão dos alimentos com dificuldade e tinha permanentemente azia.
Fui por isso sujeito a diversas análises à urina e ao sangue.
Quando os resultados foram conhecidos pelo médico este chamou-me ao seu consultório e fez-me algumas perguntas:
- O Senhor Capitão consome bebidas alcoólicas com frequência?
- Não. Raramente bebo vinho e quando o faço é com muita moderação. Quando muito bebo um copo a certas refeições.
- Nunca teve hepatite?
- Não, que eu saiba não.
- Olhe Senhor Capitão, para África o Senhor não vai, concerteza. Há aqui uma análise que nos dá valores muito altos: quatro cruzes.
- Quatro cruzes? Mas isso é um cemitério. Doutor, o que se passa? Estou a ficar intranquilo.
O médico acabou por me aconselhar calma e decidiu que, durante quinze dias, passaria a fazer uma rigorosa dieta e que, no final dessas duas semanas, voltaria a fazer novas análises.
Com este contratempo, em Chaves não puderam esperar mais por mim e fui substituído no Batalhão que estava para partir para a Guiné.
As novas análises apresentaram somente duas cruzes, o que já não foi considerado grave. Quanto às minhas queixas na região lombar verificou-se que, além de pedras nos rins, eu tinha uma deficiência congénita: uma das vértebras finais da minha coluna vertebral não tinha ossificado completamente, pelo que, possivelmente, era essa anomalia a causadora da incomodidade que sentia quando estava algum tempo na posição de pé. Defeito de fabrico. Nada que fizesse parte da lista de doenças que impedissem o cumprimento do serviço militar. Tive, por isso, alta do Hospital, e apresentei-me na minha unidade de origem: o Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3, em Paramos, Espinho. Unidade essa que, no caso de Portugal ser atacado, fazia parte da defesa antiaérea da cidade do Porto.
Parada actual do ex-GACA 3 de Espinho
Nunca percebi porque pertencendo eu a uma arma de artilharia antiaéria teria de integrar uma Companhia de Infantaria.
Como já havia sido mobilizado para a Guiné, fiquei, por isso, hipotecado a essa província ultramarina, como acontecia então.
Passei a fazer parte de uma lista de rendição individual. Quando chegasse a minha vez renderia na Guiné um Capitão que, porventura, viesse a ser evacuado por doença ou ferimento. Nessa situação e com base numa disposição vigente na altura, ofereci-me para efectuar uma comissão civil no território da Guiné, solicitando, por isso, que a minha futura mobilização fosse suspensa.
O resultado dessa minha iniciativa foi o seguinte:
"Por despacho de S.Exª o Secretário de Estado do Exército foi indeferido o requerimento em que o Cap. Milº de Artª Fernando de Pinho Valente do G.A.C.A. 3 requer suspensão da mobilização para o C.T.I. (Comando Territorial Independente) da Guiné, até ser despachado o seu oferecimento para o mesmo C.T.I. em cumprimento de comissão civil.
Nos termos do mesmo despacho deverá ser o oficial informado que a sua passagem à comissão civil está a ser considerada."
Perante isto resolvi escrever uma carta pessoal ao General Spínola, Governador e Comandante-Chefe da Guiné.
Nessa carta referia que, não sendo militar profissional, tinha dúvidas acerca da minha futura actuação como Comandante de uma Companhia Operacional. Não estava em causa a minha colaboração no esforço que estava sendo levado a efeito na Guiné, mas pela formação que tinha e pelas boas provas que já havia prestado como técnico de engenharia, julgava eu que poderia dar muito melhor rendimento no desenvolvimento sócio-económico que sabia estar a verificar-se na Província do que propriamente no campo militar.
Uns dias antes de me chegar a mobilização para substituir o Capitão Milº Quintela que havia sido alvejado com um tiro num braço na região de Serpa Pinto, recebi uma carta do Secretário do General Spínola onde me era dito que o Senhor Governador e Comandante-Chefe tinha tomado em muito boa conta as palavras da minha carta e que, quando chegasse à Província, lhe pedisse audiência que ele me receberia.
Na altura fiquei optimista e lembro-me de dizer à Lena:
- Olha, suponho que a guerra da Guiné está ganha.
Ela queria que eu pedisse uma nova Junta Médica, mas resolvi esperar pela nova mobilização. Mobilização que passados dias chegou.
Procurei lugar num dos táxis da praça de Viseu, que se dirigiam a Lisboa regularmente nessa altura. Acabei por arranjar lugar num deles.
Os meus companheiros de viagem deram-me o lugar da frente.
Despedi-me da Lena e do miúdo que ficaram lavados em lágrimas.
Pus uns óculos escuros e durante alguns quilómetros não falei. As lágrimas rolaram-me ininterruptamente pela cara.
Às 2 horas da manhã desse dia voava na TAP para a Guiné.
(Continua)
in "Memórias da Guiné" de Fernando Magro - Edições Polvo, Ldª - 2005
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Nota do editor
Primeiro poste da série de 24 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11865: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (1): A incorporação na vida militar