CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
22 - De 09 a 23 de Outubro de 1973
Das minhas memórias:
O mês de Outubro de 1973 iniciou-se com a melhoria do tempo e a perspectiva de diversificação da nossa actividade operacional, devido à abertura da nova estrada Aldeia Formosa – Buba. Isso deu-nos, naquela altura, algum ânimo, mesmo sabendo que essa construção implicaria um redobrar de esforços para todos. Mas era o efeito “novidade” que nos animava por certo, esperando que esta estrada não desse as amarguras sentidas na de Mampatá – Cumbijã, que fora traçada para entrar pelos terrenos do inimigo adentro.
Outubro ficaria ainda marcado pelo incontável número de colunas de A. Formosa a Buba com os inevitáveis patrulhamentos e picagens, seguidos da instalação nas matas o dia todo: foram os reabastecimentos do costume, foram os equipamentos e o pessoal da Engenharia, foi a deslocação para Buba do pessoal do BCAÇ 4516 e foram as várias que se fizeram para transportar a população para a festa do Ramadão e para a eleição do sucessor do Cherno Rachid. Se atendermos a que a picada estava muito danificada, nalguns pontos quase intransitável, dá para perceber o esforço exigido a quem fazia a protecção e a quem, de viatura, aos balanços e aos saltos, “navegava” naquele pesadelo. Os troços aproveitáveis da picada, menos sujeitos às correntes diluvianas, ficaram agora devastados pela passagem das máquinas pesadas e de lagarta da Engenharia.
Acrescia ainda a actividade dos patrulhamentos cada vez para mais longe. Como nota positiva, o facto de não termos sido incomodados pelo inimigo, mais preocupado em continuar a flagelar Cumbijã. “A actividade do IN continuou a ser fraca, sendo de salientar a flagelação a CUMBIJÃ, não só pelo grande número de granadas utilizadas, como pela precisão do seu fogo”. (da “Situação Geral” da H. U. do BCAÇ 4513, 01 a 31 Out73)
Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
OUT73/09 – Pelas 1730 GR IN não estimado flagelou o Destacamento de CUMBIJÃ durante 45 minutos, com 100 granadas de CAN S/R e 5 granadas de MORT 82, sem consequências. As NT reagiram com fogo de ART e MORT. [Sublinhados meus a negrito]
- Esteve presente no Comando do Batalhão, a apresentar os seus cumprimentos de despedida, o CHERNO ALIU CHAM da REP SENEGAL, e que agradeceu todo o apoio prestado quando do falecimento do CHERNO RACHID e todo o apoio sanitário que se continua a ser dado em todos os pontos da fronteiriça da REP SENEGAL.~
- Chegaram a BUBA os Dest. ENG N.º 1 e 2 e a Brigada de Estudos e Construção de Estradas.
OUT73/10 – Realizou-se uma coluna de reabastecimento a BUBA a fim de transportar p/ A. FORMOSA os elementos do DEST ENG N.º 1, assim como algumas máquinas e materiais do mesmo.
Foto 2: Nhala, 1973 – Saudosa, esta imagem de Nhala com a mata ao fundo ainda integral. Não faltaria muito tempo para que fosse dilacerada para fazer o troço que ligaria, lá muito por trás dela, à estrada nova A. Formosa – Buba.
OUT73/11 – Forças da 2.ª CCAÇ/4513 durante a acção “OSÍRIS” executam patrulhamento na região do R. UUGUIUOL sem contacto. [relacionado com histórias marginais (3)].
- Forças da 3.ª CCAÇ/4516, accionaram na região de NHACOBÁ uma MAPESS (mina antipessoal) IN, sofrendo dois feridos graves.
[Em carta de 19-10-73 para a Metrópole refiro mais esta flagelação a Cumbijã (dia 9), e o caso do soldado do novo Batalhão (BCAÇ 4516) que ficou sem uma perna ao pisar uma mina entre Cumbijã e Nhacobá. Depois interrogo-me: seria este o soldado que veio a falecer por falta de evacuação atempada? Nunca soube. Mas era a informação que corria.
Outras notas dessa carta: Um pelotão de Buba teve (em 17-10-73) um contacto no mato sem baixas, mas parece que causaram mortos e feridos. Pela rádio pediram tiros de obus a Buba e durante toda a tarde ouviram-se aqui em Nhala tremendos rebentamentos das granadas a baterem a zona; Continuam a chegar as máquinas para a construção da nova estrada. Supõe-se que o PAIGC esteja ao corrente e comece a concentrar as suas forças na área. Pela nossa parte estamo-nos também a preparar].
Histórias marginais (3) – Inimigos poderosos: formigas e mosquitos...
Foi mais um patrulhamento para a região do Rio Uuguiuol mas, desta vez, com o meu grupo a solo. Ia o grupo em passo lesto e com muito ânimo a atravessar uma zona de savana ensolarada, depois da longa e monótona mata. Pára o grupo e chego-me à frente para ver o que se passava, mas não foi preciso andar muito para ver os três ou quatro homens da frente aos saltos, cinturões e armas para o chão, calças para baixo, palavrões, de repente em cuecas e a esfregarem as pernas, esgares de dor, enfim, parecia uma macacada mas percebi logo que era sério: pisaram formigas. Tenho a ideia vaga de que eram as temíveis formigas vermelhas [1], mas também podiam ser as formigas pretas de grandes mandíbulas [2] que eu cheguei a ver, noutra ocasião, a irem agarradas aos pneus das viaturas que tinham pisado um largo carreiro delas na picada. A verdade é que a ignorância sobre a enorme diversidade animal, que se nos deparava no dia-a-dia, era quase total.
Depois de socorridos os homens, cheios de vermelhões e ainda a arrancar cabeças de formiga cravadas nas pernas, tentei no local avaliar a extensão da área coberta pelas formigas, em total desordem, e concluí que o resto do grupo não podia passar por ali. Tinha que encontrar uma zona em que as formigas ainda estivessem a passar de forma organizada, e tínhamos que sair dali rapidamente. A dez ou vinte metros do local do incidente elas continuavam a sua marcha ordeiramente, sempre no mesmo sentido e alheias ao que se passara lá à frente. Mas não era um carreiro de formigas, era uma torrente delas com, talvez, meio metro de largura. Um pequeno salto era o suficiente para ultrapassá-las. Se não as calcássemos. Para não correr riscos, cortámos duas estacas que eu cravei no solo, sinalizando as “margens” daquele caudal ameaçador e todos passámos sem problemas, com uma pequena corrida e um salto na primeira estaca, até os pés baterem para além da segunda estaca.
Pode parecer caricato um grupo de combate ser travado assim, por uma espécie que mal se vê nas ervas do chão, e caricato também tanto empenho na prevenção de novo incidente e, até, esta relevância que agora dou ao assunto. Mas quem passou por algo semelhante, não vai achar nada de brejeiro neste relato. Muito menos os meus soldados, que diziam que aquelas picadas eram piores que as das abelhas, e que saíram dali com marcas que não esqueceriam tão depressa, sem saberem, ainda, as consequências delas e, muito menos, o que os esperava ainda antes de acabar o dia.
Cumprida a missão do patrulhamento, no regresso já pelo fim da tarde, lá estavam as estacas mas nem sinal das formigas. Só que, como se não tivesse bastado, mais adiante e antes de penetrarmos na mata, durante uma pequena pausa para descanso, fomos atacados por mosquitos. Não daqueles mosquitos que em massa nos atacavam à noite na mata e nos deixavam ardor e comichão, mas cujo incómodo maior era o seu enervante zumbido. Estes eram mosquitos grandes [3] e com um aspecto que eu desconhecia ou de que nunca tinha dado conta: as suas longas pernas eram manchadas de preto e branco. Recordo que, o que primeiro me ocorreu foram as antigas bengalas dos cegos e nunca mais esqueci esta alusão. Tinham também uma fúria a atacar que me pareceu superior aos restantes mosquitos, indiferentes ao espanejar de camisas e quicos.
Mas o pior era que a sua picada, logo aos primeiros instantes, deixava marcas nos mais sensíveis que inspirava apreensão e requeria cuidados imediatos. Recordo bem as costas de alguns com autênticos caroços tumefactos logo após a picada e, não muito mais tarde, viam-se erupções purulentas. Fiquei impressionado e preocupado mas não por mim, pois as picadelas que sofri, para além da dor e do incómodo, não provocaram efeito nenhum. Só muitos anos depois associei este mosquito à malária, lendo artigos sobre o assunto. A verdade é que recentemente, creio que em 2013 ou 2014, por duas vezes, identifiquei esse mosquito junto da minha casa.
Tudo isto se passou em curto espaço de tempo, pois urgia sair dali rapidamente para evitar consequências mais graves, e foi o que fizemos, em correria, alguns ainda em troco nu e a sacudirem-se mutuamente. Nos dias seguintes acompanhei os casos mais graves e verifiquei como era demorada a cicatrização daqueles autênticos furúnculos purulentos. Mas já estava habituado a que um ou outro não comparecesse à chamada por estar com paludismo. Por tudo isto e por muitas outras ocorrências, embora seja quase imune à picada dos mosquitos, ainda hoje, se descubro um único mosquito no quarto, só adormeço quando estou certo de o matei.
[1] – Marabunta (Cheliomyrmex andicola): é uma formiga-correição que vive principalmente debaixo da terra nas selvas tropicais da América. (Outras fontes referem América e África), são de cor avermelhada, tamanho médio.
Tudo isto se passou em curto espaço de tempo, pois urgia sair dali rapidamente para evitar consequências mais graves, e foi o que fizemos, em correria, alguns ainda em troco nu e a sacudirem-se mutuamente. Nos dias seguintes acompanhei os casos mais graves e verifiquei como era demorada a cicatrização daqueles autênticos furúnculos purulentos. Mas já estava habituado a que um ou outro não comparecesse à chamada por estar com paludismo. Por tudo isto e por muitas outras ocorrências, embora seja quase imune à picada dos mosquitos, ainda hoje, se descubro um único mosquito no quarto, só adormeço quando estou certo de o matei.
[1] – Marabunta (Cheliomyrmex andicola): é uma formiga-correição que vive principalmente debaixo da terra nas selvas tropicais da América. (Outras fontes referem América e África), são de cor avermelhada, tamanho médio.
As suas mandíbulas são em forma de garra e armadas com grandes espinhos, semelhantes a dentes, que permitem que elas se prendam às suas presas durante o ataque. As suas picadas são extremamente dolorosas, irritantes e paralisantes. A dor que provocam assemelha-se com a da picada das "formigas de fogo".
São a única espécie que remove e consome carne de vertebrados, como lagartos, serpentes e pássaros, inclusive de animais de maior porte, bem como do homem. (Todos os dados parecem corresponder às formigas que referi. A recolha é da Wikipédia com a devida vénia).
[2] – Formiga legionária: é uma formiga semelhante à marabunta mas capaz de matar até galinhas e outros animais maiores devido ao seu ferrão muito venenoso. Matam e comem qualquer coisa que encontrem pela frente. O que principalmente a distingue da marabunta, é que não constroem ninhos permanentes e estão quase sempre em movimento. (Julgava ser esta a formiga que refiro no texto, mas agora tenho dúvidas, pois não encontrei informação desta espécie com a cor negra. A recolha é do site “comotudofunciona” com a devida vénia).
Nota: Em África, todos os que encontraram estas espécies pela frente, ainda assim, podem-se considerar sortudos, pois aí não existe a formiga-bala que, como o nome indica, a sua picada é semelhante ao impacto duma bala. E o pior vem depois: é frequente as suas vítimas, ao fim de um dia ou dois, apelarem para que lhes amputem o membro picado por já não suportarem mais a dor. Só existe na América do sul).
[3] - Anopheles, mosquito transmissor da malária: A doença é transmitida pela fêmea do mosquito do género Anopheles. No Brasil, o principal parasita que causa a malária é o Plasmodium vivax. Ele é menos perigoso do que o Plasmodium falciparum, por exemplo, o mais predominante na África. (Recolha do site “VEJA”).
Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
(...)
OUT73/11 – Forças da 3.ª CCAÇ/4516, accionaram na região de Nhacobá uma MAPESS (mina antipessoal) IN, sofrendo dois feridos graves. [Relacionado com a minha nota anterior, com data de 19-10-73].
(...)
OUT73/16 – O Cmdt do Batalhão deslocou-se a Nhala e Buba.
- Por determinação superior o BCAÇ 4516 passa a ser força de intervenção do Comando-Chefe. [Ficou apenas a 3.ª CCAÇ em Colibuia].
OUT73/17 – Pelas 1530 forças da 1.ª CCAÇ/4513 interceptaram em Xitole (2 E 7-17) grupo inimigo de 120 elementos armados, deslocando-se no sentido S-N. NT sem consequências, o IN com prováveis feridos e mortos. Capturado 1 granada de RPG-7.
(...)
OUT73/23 – Durante a picagem do itinerário MAMPATÁ-UANE foi detectada uma mina A/P IN por forças da CART 6250.
- Seguiu para BUBA, com destino a BISSAU a 1.ª CCAÇ 4516.
Das minhas memórias:
23 de Outubro de 1973 – (terça-feira) – Carreiro de Uane.
Estive com o meu grupo, mais uma vez, na protecção à coluna para Buba – e retorno -, junto ao “carreiro” de Uane. Este “carreiro” era um corredor de passagem e reabastecimento da guerrilha que se cruzava com a nossa picada, mais ou menos a meio caminho entre Nhala e Mampatá. Daí que, para a protecção às colunas, saísse um grupo de Nhala e outro de Mampatá fazendo a picagem até ao “carreiro” onde nos encontrávamos e trocávamos informações sobre alguma anormalidade. Depois cada grupo se afastava umas centenas de metros na direcção dos respectivos aquartelamentos e instalava-se na mata junto à picada onde se passava o dia quase todo, até ao regresso da coluna a A. Formosa. Uma vez ou outra, instalávamos na zona de Samba Sabali. Se não tivesse ordens em contrário, eu preferia ficar com o grupo quase em cima do “carreiro”, onde emboscava para evitar surpresas vindas dali.
Neste dia (23), já no “carreiro” há algum tempo, estranhei a demora do alferes de Mampatá (CART 6250). Instalei logo ali o grupo na mata e fiquei na picada a aguardar. Por fim lá apareceu ele ao fundo na curva, sozinho por também já ter instalado o seu pessoal, (os grupos quase nunca se chegavam a ver), e com uma pequena caixa de madeira na mão. (Foi nesta ocasião que me avisou de que em Mampatá um milícia me tinha procurado para me matar... Seria só da bebedeira? Um dia talvez conte). Vinha então o alferes com uma caixa na mão. Era uma mina antipessoal artesanal que ele tinha levado tempo a levantar. Ainda nos rimos da mina quando a examinei e vi que estava quase podre. Parecia inofensiva, mas nunca fiando!...
Julgo ter sido neste dia que, enquanto esperava, penetrei no “carreiro” numa certa extensão a tentar descodificar sinais que me dessem uma ideia do número de elementos que ali passaram e em que direcção porque, à chegada, tínhamos visto o óbvio, mesmo no ponto onde o “carreiro” cruzava a picada: tinham ali passado muitas botas e muito recentemente. Não recordo a direcção. Passei essa informação ao camarada de Mampatá e, mais tarde, ao meu comandante em Nhala.
Era sobre este “carreiro” mas a muitos quilómetros dali na direcção do Rio Corubal, que tínhamos em permanência um pequeno campo de minas. Mesmo a partir de Nhala a corta-mato, para se interceptar o “carreiro” no sítio minado, caminhavam-se várias horas, já não recordo ao certo, e sempre com um guia à frente porque, sem a sua ajuda, ainda que chegasse perto, podia nunca localizar o campo de minas. Bastava que fosse lá, por exemplo, após a época das chuvas para as levantar, quando elas haviam sido implantadas em plena época seca. Foi o que me aconteceu num dia complicado e que mais tarde relatarei.
Seguem-se algumas imagens de um dos inúmeros patrulhamentos até ao “carreiro” de Uane, com o objectivo de fazer a picagem e depois montar segurança para a passagem de uma coluna auto de A. Formosa a Buba e regresso. Podem parecer monótonas estas imagens da picada Nhala-Mampatá, mas muitos reconhecerão com saudade alguns destes trechos. Até já davam saudades naqueles tempos, quando a deixámos de usar para passar a utilizar a estrada nova...
Imagens da picada Nhala - Mampatá
Foto 4: O homem da bazuca. Lá à frente vai uma parte do grupo e a equipa da picagem.
Foto 6: O homem dos dilagramas.
Fotografia (slide) tirada da borda da picada. Nas minhas costas o “carreiro” corre para Norte, para os lados do Corubal.
Foto 9: O Fur. Mil. José Maria Pastor e o Fur. Mil. Domingos Oliveira nas imediações do “carreiro”. O resto do grupo está instalado na mata do lado direito.
Foto 10: Estamos de regresso após as passagens da coluna. À direita o que resta do que foi a tabanca e destacamento das NT, Samba-Sabali.
(continua)
Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor
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Foto 11: Quase a chegar a casa. À direita fica o aquartelamento de Nhala.
Foto 12: Nhala à vista. A tabanca, mais à esquerda quase não é visível.
(continua)
Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor
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