segunda-feira, 13 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17133: "Expedicionários do Onze a Cabo Verde (1941/1943)", da autoria do capitão SGE José Rebelo (Setúbal, Assembleia Distrital de Setúbal, 1983, 76 pp) - Parte VI: 16 mortos, devido a doença e desnutrição, ficaram no cemitério da vila de Santa Maria


Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > 1943 > "A fome, a miséria"... A grande seca de 1943 foi evoacad no romance de Manuel Ferreiar, ele próprio expedicionario, "Hora di Bai"... O próprio título diz tudo sobre o dramático dilema que enfrentava o cabo-verdiano de ontem (e de hoje): a vontade de ficar, a necessidade imperiosa de partir... [Foto do álbum  do pai do nosso camarada e grã-tabanqueiro Augusto Silva dos Santos, o então 1º cabo  Feliciano Delfim Santos (1922-1989), da 1.ª companhia do 1.º batalhão expedicionário do RI 11]

Foto (e legenda): © Augusto Silva Santos (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Cemitério de Mindelo > 1943 > Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5. Esteve em Cabo Verde, no Lazareto, na Ilha de São Vicente, entre 1941/43.

Legenda no verso da foto: "Justa homenagem àqueles que dormem o sono eterno na terra fria. Companheiros de expedição os quais Deus chamou ao Juízo Final. Pessoal da A[nti] Aérea depois das cerimónias desfila fazendo continência às sepulturas dos companheiros. Oferecido pelo meu amigo Boaventura [Horta, conterrâneo, da Louri nhã,]  no dia 17-8-1943, dia em que fiquei livre da junta (hospitalar). Luís Henriques".

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005).  Todos os direitos reservados. [Edição do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



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1. Continuação da publicação da brochura "Expedicionários do Onze a Cabo Verde (1941/1943)", da autoria do Capitão SGE José Rebelo (Setúbal, Assembleia Distrital de Setúbal, 1983, 76 pp. inumeradas, il.) [, imagem da capa, à direita].(*)

José Rebelo, Capitão SGE reformado, foi em 1941/43 um dos jovens expedicionários do RI I1, então com o posto de furriel. Não sabemos se ainda hoje é vivo, mas oxalá que sim, tendo então a bonita idade de 96 ou 97 anos. Em qualquer dos casos, este nosso velho camarada é credor de toda a nossa simpatia, apreço e gratidão. E, se já morreu, estamos a honrar a sua memória e a dos seus camaradas, onde se incluiram os pais de alguns de nós.

O nosso camarada Manuel Amaro diz do José Rebelo: (...) "Por volta de 1960, fez a Escola de Sargentos, em Águeda e,  após promoção a alferes, comandou a Guarda Nacional Republicana em Tavira, até 1968. Como homem de cultura, colaborava semanalmente, no jornal "Povo Algarvio", onde o conheci, pessoalmente. Em 1969, já capitão, era o Comandante da Companhia da Formação no Hospital Militar da Estrela, em Lisboa." (...)

A brochura, de grande interesse documental,  e que estamos a reproduzir,  é uma cópia, digitalizada, em formato pdf, de um exemplar que fazia parte do espólio do Feliciano Delfim Santos (1922-1989), que foi 1.º cabo da 1.ª companhia do 1.º batalhão expedicionário do RI 11, pai do nosso camarada e grã-tabanqueiro Augusto Silva dos Santos (que reside em Almada e foi fur mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73).

[Foto á direita: o então furriel José Rebelo, expedicionário do 1º batalhão
do RI 11]


Trata-se de um conjunto de crónicas publicadas originalmente no jornal "O Distrito de Setúbal", e depois editadas em livro, por iniciativa da Assembleia Distrital de Setúbal, em 1983, ao tempo do Governador Civil Victor Manuel Quintão Caldeira. A brochura, ilustrada com diversas fotos, tem 76 páginas, inumeradas.


O batalhão expedicionário do Onze [RI 11, Setúbal] partiu de Lisboa em 16 de junho de 1941 e desembarcou na Praia, ilha de Santigao, no dia 23. Esteve em missão de soberania na ilha do Sal cerca de 20 meses (até 15 de março de 1943), cumprindo o resto da comissão de serviço (até dezembro de 1943) na ilha de Santo Antão.

Sabemos, por este cronista (*), que os "expedicionários do Onze" tinham um grupo cénico-musical que fez espectáculos nas ilhas por onde passou (São Vicente, Sal e Santo Antão), revertendo as reeitas para apoio às populações carenciadas, sobretudo de Santo Antão, tragicamente afetadas pela seca e pela fome que então assolava as ilhas, em plena II Guerra Mundial. 

Na ilha do Sal não chovia há cinco anos e os militares do Onze sofreram graves problemas de desnutrição. 16 expedicionários ficaram sepultados no cemitério da vila de Santa Maria, no Sal. [Na realidade, e segundo lista publicada pelo  nosso colaborador permanente José Martins, são 28 os militares inumados no cemitério de Santa Catarina, na  Ilha do Sal, durante a II Guerra Mundial, de 1941 a 1944]. Conferindo as listas e as datas, os nomes dos mortos do RI 11  seriam estes 15 mais 1 (Manuel Joaquim Marques, que não consta da lista do José Martins), falecidos entre 8/8/1941 e 16/1/1943


ALBINO FERREIRA - soldado, falecido em 8 de agosto de 1941

ABILIO A[BREU] DA FONSECA - 1º cabo, falecido em 22 de agosto de 1941

JOSÉ SIMÕES VAZ - Soldado, falecido em 12 de outubro de 1941

ÁLVARO PEREIRA BASTOS - Soldado, falecido em 19 de outubro de 1941

BERNARDINO DA SILVA CURADO [ou Covado, nalista do José Martins] - Soldado, falecido em 6 de novembro de 1941 

MANUEL COSTA - 1º cabo, falecido em 12 de novembro de 1941

CUSTÓDIO DE OLIVEIRA COXO - Soldado, falecido em 17 de novembro de 1941

JACINTO PEREIRA TEIXEIRA - Soldado, falecido em 22 de novembro de 1941

FLORINDO MIRANDA NOGUEIRA - Soldado, falecido em 28 de novembro de 1941

CARLOS MARIA DA SILVA - 1º cabo, falecido em 24 de dezembro de 1941

ANTÓNIO DA PIEDADE GOMES - Soldado, falecido em 15 de fevereiro de 1942

JOÃO JOAQUIM DE OLIVEIRA - Soldado, falecido em 3 de Março de 1942

ADELINO DE ALMEIDA MATEUS [, Martins, na lista do José Martins] - Soldado, falecido em 22 de Abril de 1942

ÁLVARO GUERRA - 1º cabo, falecido em 9 de Maio de 1942

ARMANDO AUGUSTO DOS SANTOS - Soldado, falecido em 16 de Janeiro de 1943



"Expedicionários do Onze a Cabo Verde (1941/1943)", da autoria do capitão SGE José Rebelo (Setúbal, Assembleia Distrital de Setúbal, 1983, 76 pp. inumeradas, il.)


Parte IV (pp. 26-30)



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[Continua]

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Guiné 61/74 - P17132: In Memoriam (278): Carlos Filipe Coelho (Porto, 1950 - Lisboa, 2017), ex-Sold Radiomontador, CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74), sepultado no dia 9 de Março, praticamente um mês depois do seu falecimento (Juvenal Amado)

CARLOS FILIPE COELHO


1. Mensagem de hoje de madrugada do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), para nos falar, mais uma vez, do Carlos Filipe Coelho, por ventura um inadaptado enquanto vivo e um incómodo depois de morto.

Caros camaradas
Quando somos jovens dizemos "eu vou fazer isto, vou fazer aquilo, farei da vida o que quiser".
Quando enfim chegamos à idade em que temos mais passado do que futuro, dizemos simplesmente "É a Vida".

Como prometi fazer um levantamento de alguma coisa que o Carlos Filipe escreveu, aproveitei aqui uma recordação maravilhosa da vida simples mas feliz que também o Carlos teve. Qual será a dose de felicidade que temos direito? Será que terá sempre um preço, qual será o preço que cada um terá de pagar pelos momentos de felicidade que gozou ao longo da vida? Do blogue Recortes Para o Meu Neto retirei esta recordação que fala do Natal. E Porquê do Natal? Porque foi um Natal feliz ao contrário de muitos outros infelizes, solitários e doridos. Chama-se o conto Natal Imprevisível.

NÃO ADIANTA UM HOMEM MANTER O LIVRO DA SUA VIDA FECHADO. HAVERÁ SEMPRE ALGUÉM QUE O VAI ABRIR MESMO QUE PARA LER UMA SÓ PÁGINA. 

Desconheço se é do Carlos esta citação, mas parece-me apropriada à sua personalidade, por vezes ambígua.

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2 . O nosso camarada teve sempre amigos, e do Blogue "Uivemos Juntos", retirei este texto em sua homenagem.

Com a devida vénia ao Blogue Uivemos Juntos

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3. NATAL IMPREVISÍVEL

Carlos Filipe Coelho

Trabalhava eu por turnos na Rádio, e nessa noite a minha saída era às 02:00h da manhã, apanhava o último comboio às 02:30 e chegaria a casa às 03 horas. Tu tinhas ido trabalhar, embora tivesses saído mais cedo. Foste buscar a menina ao colégio e deves ter começado a tratar dos preparativos para uma noite de Natal a três.
Ora o previsto era que próximo das duas começarias a cozinhar o bacalhau, batatas, couves, o habitual desta noite... A menina estaria a dormir e acordaria, conforme a sua vontade para confraternizar e abrir as suas prendas. Respeitávamos muito os horários da criança, mesmo abdicando de alguns prazeres para nós.

Não havia telemóveis neste tempo. Algum frio da época e uma viagem de comboio com muito poucos passageiros algo "tristes", mas eu ansioso de chegar, porque sabia que ia ter como sempre uma maravilhosa companheira à minha espera para uma noite de carinho, como tantas outras mesmo quando não era natal; ia pensando nas cores dos embrulhos para haver uma distribuição equitativa com a nossa filha pequenina.

Abro a porta, e vens ao meu encontro com o ar mais triste deste mundo, afogada num desânimo que parecia que não teres força para estar em pé. Mais tarde compreendi que este desânimo deveu-se ao facto de saberes que o Natal para mim era a festa do ano mais importante, não por eu ser ou não ser católico, mas porque tinha sido o meu ninho de sonhos em criança esperando pelas prendas que nunca vieram. Céus... com uma quantidade suficiente de guloseimas, as frutas secas, bolo-rei, havia pão, marmelada, nozes, pinhões ou seja de tudo um bocadinho, nem que fosse só para desougar... porque havíamos de ficar assim tristes? O que aconteceu ?!...

Estava combinado que próximo das duas começarias a cozinhar, para quando eu chegasse estar quase pronto, mas fatalidade das fatalidades o gás de garrafa acabou-se... Se calhar tinha mesmo que ser assim, porque ficou a ser um Natal com "sabor" diferente e durante anos foi acontecimento de referência nas nossas conversas natalícias. Creio que consideravas que me ia sentir talvez muito afectado.

Então acordamos que tinham que ser quebrados todos os nossos rituais, senão a coisa não ficava bem. Primeira decisão; vamos comer no chão. Segunda como o bacalhau estava quase cozido (o gás podia durar mais um bocadinho..) vamos fazer esfiado com azeite e cebola. E o resto prossegue normalmente.

Claro que no meio disto a menina já tinha acordado, teve manifestações de espanto por ver comida no chão em cima da toalha que anteriormente tinha visto na mesa; e a situação ia ficando complicada porque a criança não se apercebia de que não podia andar em linha recta, devido à falta de um "generoso" espaço porque estávamos num apartamento J. Pimenta.

Acesas as velas, nós aconchegando o estômago com o singular bacalhau, a criança "petiscando" as doçarias lá fomos criando a nossa noite de Natal, a mulherzinha recuperando do seu desgosto, culminando num rir de felicidade pela forma como as coisas decorriam. Alegria que aumentou com a distribuição das prendas entre os três, que se prolongava sempre, porque havia necessidade de dar oportunidade aos afectos e à apreciação das coisas neste caso principalmente dos brinquedos. Até que que a criança foi viajar nos seu sonhos e nós... nós fumamos mais alguns cigarros, mais um copo de qualquer coisa e mais um copo de sumo, talvez mais uns pinhões, o volume do som da televisão muito baixinho.

Concluímos que tudo tinha sido bom e diferente porque nos amávamos. E neste Natal, cada um de nós foi tudo o que o outro quisesse que fosse.
Até breve amor.

PS. A menina é a tua mãe... Guilherme

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4. Diz- nos ainda o camarada Juvenal Amado

Também sou de opinião utilizar este espaço para denunciar, e agradeço a quem me ajude a fazer chegar o nosso desgosto e denuncia à Associação dos Deficientes das Forças Armadas, à Liga dos Combatentes, ao Governo, etc.

É um veterano mas acima de tudo um ser humano que foi enterrado como de um cão abandonado se tratasse. De vez enquanto somos confrontados com coisas que não julgávamos possíveis dado o carácter melindroso e religioso, no que respeita a normas sociais e humanas. Se o falecido não teve em vida actividade contributiva suficiente, a Segurança Social não paga o funeral.
No caso presente, primeiro disseram que sim, que se poderia proceder ao acto de cremação, para dias depois dizerem exactamente o contrário.

O Carlos vivia de uma pensão que lhe foi atribuída (65%) pela a sua evacuação da Guiné em 1972 mais a referente à sua mulher. Não tinha outros rendimentos há muito tempo, uma vez que a saúde não lhe permitia. Francamente nunca soube de quanto era a sua pensão uma vez que o Carlos, que não escondia as suas ideias nem ideais, escondia as suas necessidades e o que se pode chamar de misérias.

Assim, a família (filha e um neto menor), que não teve posses para arcar com as despesa do funeral, recorreu à Santa Casa da Misericórdia onde ficou a aguardar "vez", possivelmente para ser enterrado como indigente.

Um mês depois de ter morrido, a 9 de Março é finalmente enterrado, sem qualquer cerimónia, sendo a família avisada uma hora antes.

Bem sei que o nosso camarada se dizia à parte deste tipo de sociedade, e pela forma como encarou a morte, escolhendo a cremação, escapava à simbologia que a grande maioria dos portugueses conferem ao ritual com que os corpos descem à terra. Mas a nós compete-nos homenagear a pessoa naquilo que ele representou enquanto vivo e pensante.

Assim, no dia 25 de Março 2017, um grupo de amigos, que na sua esmagadora maioria nunca com ele privou fisicamente, vai estar pelas 16 horas desse dia no portão do Cemitério da Amadora, para assim lhe dizer, onde ele esteja, que não passou por esta vida sem deixar marcas.

Eu ainda vou escrever um lembrete para ser publicado mais próximo, se possível, e quem estiver perto e na disposição de comparecer, será bem vindo.

Esperamos que alguma gente da comunidade guineense esteja presente

Um abraço
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17033: In Memoriam (277): Carlos Filipe Coelho (Porto, 1950 - Lisboa, 2017), ex-Sold Radiomontador, CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74) (Juvenal Amado)

Guiné 61/74 - P17131: Notas de leitura (936): "Portugal Afrique Pacifique", por René Pélissier, edição de autor, 2015 (1) (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se de um tomo bem pesado daquele que será o grande maratonista internacional de recensões das antigas colónias portuguesas. A seleção que aqui se pretende fazer é de obras estrangeiras que possam interessar ao investigador ou curioso, sem deixar de dar a palavra a alguns escritores que Pélissier não esconde a boa apreciação. Também eu não escondo a minha profunda admiração por este investigador que continua ágil e ativo debruçado sobre o período colonial e pós-colonial. É caso para dizer que desejo longa vida a todos aqueles que não perderam o entusiasmo por aquilo que é o estudo aturado do antigo Império colonial português.

Um abraço do
Mário


As leituras de René Pélissier acerca da Guiné (1)

Beja Santos

“Portugal Afrique Pacifique” é o mais recente livro de René Pélissier, tão referenciado que está no nosso blogue por se tratar do investigador estrangeiro que melhor conhece a literatura portuguesa na vertente da guerra colonial. Trata-se de uma edição de autor (quem pretender adquirir a obra pode dirigir-se: René Pélissier, Éditions Pélissier, 78630 Orgeval, França).
Trata-se de um livro que é um instrumento de trabalho destinado a bibliotecários, investigadores, livreiros, colecionadores e simples curiosos. É uma obra com mais de 500 páginas, inclui crónicas e miscelâneas, Angola e Moçambique têm a fatia de leão, mas Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Índia e Timor são também contemplados. Obviamente que ficaremos centrados na problemática guineense, vamos ser surpreendidos com uma série de obras sobre as quais nunca tínhamos ouvido falar. Logo à cabeça, “Navigating terrains of war. Youth and soldiering in Guinea-Bissau”, Berghahn Books, Oxford, 2006. O autor aborda em antropologia social um problema muito circunscrito: porquê, como e com quais resultados um adolescente, pobre, marginal e violento, se envolve numa milícia paramilitar – os Aguentas, em 1998-1999 – para apoiar o presidente Nino Vieira? O autor fez o inquérito de 16 meses e considera-se apto a responder à questão. A Guiné-Bissau é um país sem esperança onde a única aspiração de um jovem sem trabalho é de emigrar para a Europa com prioridade para Portugal. Segundo o autor, os políticos atuais exacerbam as rivalidades entre Papéis e Balantas, eles querem manter-se no poder e enriquecer. Muitos dos entrevistados deploram a saída dos portugueses em que havia estabilidade e prosperidade. Tantos mortos e tantos horrores para se chegar a isto!

Segue-se outra obra que desconhecia inteiramente, “Navigating youth, generating adulthood. Social becoming in an African context”, por Catrine Christiansen e Mats Utas e Henrik Vigh, Instituto Nórdico de África, Uppsala, 2006. Nesta obra examina-se a situação em que os Papéis estão no epicentro sangrento da resistência local à quarta campanha de Teixeira Pinto. “Os contos navais” de Joaquim Chaves Ubach, Xlibris Corporation, EUA, 2006 é outra revelação. O autor é um antigo oficial da Armada que andou nos rios e rias da Guiné entre 1965 e 1967. Descreve as suas operações nas rias do Sul, Cacine (no rio Grande de Buba, Cacheu e Mansoa). A impressão que sai desta leitura é que o PAIGC estava muitíssimo bem equipado em artilharia e alvejava implacavelmente as embarcações portuguesas.

“A difusão do nativismo em África, Cabo Verde e Angola, séculos XIX e XX", por José Marques Guimarães, África Debate, Lisboa, 2006 é uma história de intelectualidade crioula, analisa-se a relação entre os movimentos independentistas brasileiros contra Portugal e, de outro lado, o separatismo latente das elites crioulas nas duas colónias atlânticas mais evoluídas. O autor segue os meandros destas pequenas células de intelectuais, por vezes proprietários de escravos ao longo do século XIX, até ao fim da primeira república, 1926. O mérito deste trabalho de Marques Guimarães é de situar numa perspetiva transatlântica ampla elementos dispersos.

A obra seguinte intitula-se “The life, thought and legacy of Cape Verde’s freedom fighter Amilcar Cabral. Essays on his liberation philosophy”, The Edwin Mellen Press, Lewiston, Nova Iorque, 2006. Marxista pragmático, Amílcar Cabral inflamou a esquerda terceiro-mundista de seu tempo. Este agrónomo tudo apostou num projeto de união contranatura entre o arquipélago de Cabo Verde e a Guiné. Tanto na Praia como em Bissau a sua memória continua a ser respeitada, mas, curiosamente, é sobretudo nas universidades negras dos Estados Unidos se se estuda o seu pensamento. É aqui que parece que Amílcar Cabral sobrevive.

Mudamos de longitude. Para os amadores da história oral têm muito peso as narrativas e crónicas relativas ao nascimento, evolução do reino de Kaabu e o seu desaparecimento. Um par de investigadores holandeses estudou a batalha de Kansala (em que os Fulas derrotaram os Mandingas no território da Guiné Portuguesa, em 1867) e procuram uma boa cronologia onde se possa fazer a distinção entre o mítico e aquilo que está incontestavelmente certificado. René Pélissier faz largas referências a livros de que aqui já se fizeram recensão, como o "Diário de Luís de Matos, Memória dos dias sem fim", de Luís Rosa, e o esplêndido álbum “O primeiro fotógrafo de guerra português", José Henriques de Mello. "Guiné: campanhas de 1907-1908", por Mário Matos e Lemos, trata-se do primeiro diário de campanha é a primeira das monografas militares mais completa que conhecemos, neste período. Fica ainda uma referência ao livro “O tempo e o espaço em que vivi”, por Miguel Urbano Rodrigues, Campo das Letras, Porto, 2002. Este jornalista desvela os seus contactos em 1961 em Conacri com alguns nacionalistas angolanos. Este mesmo autor refere que os acontecimentos de 4 de Fevereiro de 1961, em Luanda, não foram o resultado de um plano amadurecido, utilizava-se a presença de jornalistas estrangeiros que estavam à espera do paquete Santa Maria, apanhado por Henrique Calvão. É uma contradição com a vulgata ulterior do MPLA, que propagandeava a sua participação no assalto às cadeias. Miguel Urbano Rodrigues não esconde a sua grande admiração por Amílcar Cabral tanto como pensador como humanista. Uma última referência para a obra de António Duarte Silva, “Invenção e construção da Guiné-Bissau”, Edições Almedina, 2010. O autor procede a um estudo das primeiras organizações protonacionalistas, traz aspetos novos. Introduz uma iluminação na nebulosa das versões antagonistas do massacre de 3 de Agosto, dito do Pidjiquiti. As responsabilidades apontam para António Carreira, ao tempo gerente da Casa Gouveia em Bissau. Resta dizer que Carreira veio desdizer publicamente que tivera quaisquer responsabilidades nos atos da polícia e do exército. É uma obra que se concentra sobre certas temáticas, por exemplo o golpe de estado de Novembro de 1980, as constituições de 1984 e 1993, a etnicidade, o carrossel político depois do conflito de 1998-1999.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série 10 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17124: Notas de leitura (935): Autóctones guineenses e portugueses: Contactos sempre difíceis, dos primórdios à independência (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17130: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVII Parte: Cap IX - Guerra 2: Em pleno Cantanhez, relembrando o meu companheiro, o meu avô materno, que dizia, quando o almoço se atrasava: "Doze horas é meio dia, / Quem não almoça enfraquece! / Já a água não me mata a sede, / Já o meu amor não me esquece!"


Guiné > Região de Tombali > Cufar >  CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67 > Golpe de mão em que aprisionaram o Calaboço (p. 42)  > Mário Fitas, Gibi Baldé e srgt Jata.

Foto: © Mário Fitas (2016). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto abaixo à esquerda, março de 2016, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais.]

 
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVII Parte > Cap IX  - Guerra 2 (pp. 53-58)

por Mário Vicente 

Sinopse:

(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante  militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o periquito fur mil Reis, que é devidamente praxado.

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno... 


Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVII Parte: Cap IX: Guerra 2 (pp. 53-58)

Havia apenas oito dias sobre a varredela em Cabolol, e eis que o 2º Grupo de combate tem de partir para Catió e levar o pelotão de Artilharia. Nessa noite, o grupo da milícia do João Bacar Jaló, estacionado em Priame, detecta que a estrada foi minada, pelo que temos de voltar ao sistema de picagem da mesma. Sorte!...

Mesmo ao cimo da leve subida, quando a estrada entra no túnel da mata, após o vale de capim que separa aquela do cruzamento do Cabaceira, foram detectadas duas “meninas simpáticas, blenorrágicas prostitutas anti-carro” que por nós esperavam, para nos fornicarem o corpo. Que grande porra!... As viaturas e os obuses no vale, se somos emboscados, estamos com as calças na mão. Há que deitar mãos à obra rapidamente e rebentar as minas, coisa que ainda dá problemas, pois  o maluco do Chico Zé as quer levantar em vez de rebentar. Não pode ser!... E se estão armadilhadas? Felizmente que ele é o único com essa ideia, e o Almeida não autoriza. Vagabundo brinca com Chico Zé:
– Oh pá, Zé, porra!... estás farto da malta? Queres-te ir embora já?...

E era verdade, porque estavam armadilhadas.

Depois de rebentadas, deixaram uma cratera que cabia lá um unimog! Toca a tapar o buraco para as viaturas avançarem. Trabalho efectuado, viaturas passadas, pessoal em segurança, vai um minutinho para fumar um cigarrito. Em todos os trabalhos se fuma, como se diz na minha terra, costumava Vagabundo dizer.

Vamos então verificar como funciona a guerrilha, altamente organizada e eficiente contra a nossa ainda ingenuidade. Fumando o cigarro, juntaram-se em amena cavaqueira de guerra nada menos nada mais que: três alferes, três furriéis milicianos e um milícia, Zé de nome e libanês de nacionalidade, sendo de alcunha portanto, o Zé Libanês e que também ninguém sabia porque é que aquela espécie aparecia fazendo a guerra.

Conversa animada no grupo quando, num repente, um clarão chama aflorou da terra, secundado de um grande estrondo e o grupo foi atirado cada um para seu lado. A meio da picada, Chico Zé de gatas em frente de Vagabundo, dizia para este:
– Estou ferido!… Estou ferido!...

Vagabundo vergado, apalpando-se todo dos pés à cabeça, sem olhar para o seu companheiro e tendo em atenção apenas a confirmação da apalpação que a si próprio fazia, e só com o sentido em si, respondia ao companheiro:
– Não, não estás!

Por momentos a mente de todos entrou no vazio. Um gemido levou-os a voltarem à realidade. Olharam na direcção do gemer agora mais forte, e todos viram o alferes de Artilharia estendido na berma. Perna direita levantada, onde apenas uma óssea forca tíbio-perónia aparecia por entre a chamuscada calça camuflada, pois o pé direito tinha desaparecido. Porra!... uma mina anti-pessoal.
– O enfermeiro depressa!–  gritou Almeida.

O artilheiro, que em princípio não ia p’ró mato nem andava no duro e na dança, ali estava agora a receber os primeiros socorros, com esfacelamento total do pé direito, fractura do terço inferior na mesma perna, queimaduras na coxa esquerda e nos braços. Mais um inválido com vinte e quatro anos!

O cabo de transmissões entra em contacto com o aquartelamento que, de imediato, pede evacuação a Bissau que será depois feita de avião. Mas agora como vai ser? Há que levar o camarada para Cufar. Mais outra loucura. Mas a guerra é isto!... Chico Zé, cara toda chamuscada, camuflado cheio de terra, oferece-se:
– Eu levo o Évora para Cufar!

Todos conhecemos a perícia do Zé, autêntico condutor de ralis, mas é perigoso voltar só. Almeida decide rapidamente, acede e manda subir para o unimog o enfermeiro entregando-lhe uma G3 e nomeia outro soldado, que também salta para a viatura. Chico Zé dá a G3 ao condutor que cede o lugar. Com o ferido esticado na caixa, o enfermeiro e soldado segurando o infeliz, Chico Zé, conduzindo o unimog, arranca direito a Cufar. É assim a guerra, ou ficamos todos ou salvamos um!...

Almeida manda o cabo transmitir para Cufar, de onde saem uma auto-metralhadora e o piquete para vir ao reencontro.

O enfermeiro depois contou que nunca tinha andado assim de carro.
–  Aquela “merda” até andava só sobre duas rodas!

Quando a auto-metralhadora e o unimog do piquete faziam a aproximação para entrar na estrada Cufar-Catió, o Chico Zé entrava no fundo da pista a alta velocidade deixando os outros para trás, fazendo a inversão de marcha.

Primeira vítima da estrada maldita! Eles não perdoam!...

Cufar informa e continuamos para Catió. Chegados a Catió não dá para mais nada, é largar os obuses e correr para o cais, aproveitando a maré, pois há que embarcar para o Cachil, na ilha do Como. Temos de fazer a segurança àquele desterro, enquanto os sacrificados vão efectuar uma operação ao Tombali. É chegarmos nós e saírem eles.

Ficam o primeiro sargento e os cozinheiros, para nos darem as explicações sobre a defesa deste forte Apache. Também não tem explicação plausível pois, é já lugar comum que só quem passou por terras da Guiné e pelos diversos aquartelamentos pode aquilatar do poder de adaptação do valoroso soldado português. Desfalcados, com cozinheiros e outros pobres de Deus, defender um aquartelamento daqueles?!... E se o IN soubesse, e fosse lá? Escaqueirava aquela merda toda e os que não morressem seriam apanhados à mão. Vagabundo confirma “in loco” as descrições do Cachil feitas pelo Fernando, homem dos morteiros. Já não vale a pena comentar pois, por vezes, sente-se mesmo a tristeza e a impotência de uma tropa tipo pé descalço.

Quero antes Cufar onde há ar e espaço, quero ir para a estrada, prefiro morrer nas matas de Cabolol do que aqui entoupeirado neste pequenino murado quintal.

A CCAÇ  continua imparável, há que aproveitar o desempenho e moral desta gente. As operações sucedem-se, é a hora certa para dar um salto ao outro lado do Cumbijã, à quinta do Nino, e verificar como estão as coisas por lá. A 8 de Julho de 1965, a Companhia embarca em Impungueda a fim de levar a efeito a operação Satan. Pelas quatro horas da madrugada as três LDM que transportam a CCAÇ encontram-se frente a Caboxanque. Detectados, as forças do PAIGC abrem fogo contra as NT, as lanchas conseguem acostar e o primeiro grupo de combate a desembarcar contra-ataca, desalojando os guerrilheiros.

Conseguindo progredir através de Caboxanque e depois Flaque Injã, pelas 7h00 consegue-se detectar e assaltar um acampamento, o  qual foi destruído bem como várias instalações e uma grande escola do PAIGC, onde é apreendido bastante material e documentação. Entre a documentação são encontradas várias fotografias, uma das quais do nosso amigo Nino em Pequim.

Na descida de Flaque Injã para Caboxanque somos emboscados. Reagindo bem, a Companhia consegue abater seis guerrilheiros, capturar uma espingarda automática e diverso equipamento. No cais de Caboxanque onde se nos juntara a 4.ª CCAÇ  de Bedanda, enquanto se aguardava o embarque, fomos de novo fortemente atacados, mas o IN foi repelido. Sofremos um ferido grave que foi evacuado de helicóptero para Bissau. Já desflorámos o Cantanhez, dizia Jata, e era verdade…Caboxanque e Flaque Injã ficaram a conhecer os “Lassas” na operação Satan.

Há um caso que nos preocupa. Capturar o Alfa Nan Cabo. Já fizemos três golpes de mão para o apanhar e nada. O gajo parece uma enguia. De etnia balanta, cuja religião reside no respeito e obediência ao espírito dos antepassados, já que têm a experiência vivida em dois mundos, vivos e mortos, por consequência com dupla experiência da vida vivida nessa dualidade, estão em melhores condições de orientarem os que andam por cá. A vida é movimento, movimento é vida.

O soprar do vento, o ondular das águas, as chuvas fustigando, o enfurecimento do mar, os rios de maré na sua maravilhosa dualidade, de corrida para a foz ou para montante, o relâmpago rasgando o céu, todas as forças que se manifestam animando os corpos são espíritos que tudo controlam do além.

Voltamos a Cabolol. O guia vindo do Batalhão garante-nos haver um novo acampamento, mas não encontramos nada. Leva-nos ao antigo acampamento que verificamos continua destruído. Divergimos para a tabanca de Cantumane que verificamos encontrar-se deserta. Procedimento normal em termos de anti-guerrilha, proceder à revista de todas as moranças e depósitos de arroz.

Quando o grupo destinado executava essa tarefa, a CCAÇ  foi violentamente atacada por um numeroso grupo IN que se encontrava emboscado na mata a norte. Três ataques sucessivos com armas ligeiras e RPG,  verifica-se a impossibilidade de utilização de morteiros, resultante da proximidade em que as forças se encontram. No entanto é-nos dada a oportunidade de contactarmos com um novo, para nós, método de emboscada, a utilização de abelhas. Os cortiços são postos em pontos estratégicos e, ao desencadearem a emboscada, fazem fogo sobre os referidos cortiços.

As abelhas “lassas” saem lançando-se enfurecidas sobre os nossos homens, desarticulando completamente o dispositivo dos grupos de combate, ficando muita gente incapacitada para combate, e para responder à emboscada. Com algum esforço, consegue-se fazer o envolvimento do IN provocando-lhe várias baixas confirmadas. Pela nossa parte sofremos mais um ferido grave que não viria a resistir, o nosso Madeira, sargento Leandro Vieira Barcelos, é atingido no fígado por uma bala depois de lhe ter perfurado o rádio. O Barcelos não se aguentou e fina-se no dia seguinte, no HM de Bissau. A CCAÇ sofre mais três feridos graves por picadelas de abelhas, que foram também evacuados para o Hospital. Limpeza feita, Cantumane mais uma vez destruída, assim termina a denominada operação Trovão.

O célebre e avidamente tão procurado Alfa Nan Cabo,  de etnia balanta, apresenta-se no aquartelamento de Cufar, entregando-se às nossas forças, passando a colaborar connosco. Irá ser um elemento extraordinário com grande influência na prestação dos Lassas, os quais lhe ficarão a dever o safanço de um morticínio, no outro lado do Cumbijã, que mais tarde contaremos.

Alfa Nan Cabo, balanta, desertor do PAIGC
Alfa Nan Cabo, meu irmão, tens por de trás de ti toda uma história que não vale a pena entrar aqui.

Quero só descrever-te agora, correndo uma cortina sobre a tua vida de menino, blufo e homem. Basta recordar aquele lagarto parecido com uma iguana. Ali nas brasas e a malta toda enojada, verificando aquele manjar, cobiçando apenas a pele do lagarto para curtir. Belo petisco! Apenas uma pequena homenagem, meu irmão, à tua compleição física: muito próximo do metro e noventa de altura, com noventa quilos de peso, anda descalço saltando aos pés juntos para cima de um unimog, levanta o dedo grande do pé direito, dá um chuto na bola de futebol a dez metros do varandim do Comando, e esta rebenta contra o muro.

Cheira o IN à distância. Calcula-se que aqui no sul, o exército popular do PAIGC com maioria de guerrilheiros balantas, cinquenta por cento será formado por indivíduos cuja compleição física será como a do Alfa. Já verificámos isso nos que abatemos e fizemos prisioneiros. Estamos feitos!

Voltamos a caminhos de Cabolol mas seguindo a estrada, passamos nas bordinhas da mata e vamos até à tabanca de Cobumba, numa acção punitiva, por a sua população dar guarida a um grupo de guerrilheiros, que teria causado várias baixas à 4.ª CCAÇ  estacionada em Bedanda, entre as quais se contava um sargento.

Entramos no turbilhão da mata de Cufar com o Torcásio a borrar-se todo e a vomitar, não sabemos se foi qualquer estragada que se lhe deu, ou se o medo que ingeriu, pois quem tem mulher e filhos sempre o “cu” lhe traz a recordação. Já parámos três vezes e com o barulho das descargas e ânsias dos vómitos, de certeza não tardará a nossa posição a ser detectada. Noite de breu… não chove… assim será melhor.

Pára novamente a coluna.
– Que porra!...

Passamos a noite nisto e não tardará que estejamos a levar nos cornos em vez de atingirmos o objectivo, o furriel liga o rádio banana, mas desliga imediatamente, o Fumaça que seguia na sua frente vira-se e sussurra:
– Furriel,  formigas das grandes numa abatis!
– Porra!... Só faltava esta!...

Toca a despir, se estas gajas se pegam à roupa estamos fodidos. Bonito!... O furriel sorri perante o imaginável espectáculo, se fosse noite desse maravilhoso luar africano. Uma centena e tal de cus em movimentação pela picada fora. Trampa de guerra!

Mesmo com todos os contratempos, o objectivo é atingido sem problemas. Cobumba é cercada e a população é apanhada de surpresa. Começa a limpeza com um certo alarido entremeando algumas rajadas sobre alguns fugitivos. Como habitualmente é dirigida à população uma prelecção sobre a guerrilha. É feito prisioneiro o guerrilheiro Malan Cassamá que irá para Cufar com mais uns elementos da população, para averiguações. Assim a operação Vindima termina.

Época de chuvas. Vagabundo deveria estar a caminho de férias, para na sua Planície apadrinhar o casamento de sua irmã Adelaide mas… sai tudo furado. A morte do pobre sargento Madeira, alterou a escala das férias. Faça-se o casamento sem o padrinho, haverá sempre alguém que honrosamente faça a substituição. O furriel Vagabundo tem outras festas a realizar.

E temos mais uma surpresa: Tui Na Defa, ex-guerrilheiro do PAIGC, apresenta-se em Cufar, e passa a fazer parte da Companhia de Milícia 13. Meu bom Tui, como eras simpático e que grandes amizades tinhas com todos os Lassas. Soubemos já em Lisboa que também tinhas ficado na estrada maldita. Que o teu iran te dê o respectivo valor, porque para as pátrias a quem serviste, apenas foste um objecto. Apenas os amigos que criaste, se lembraram de ti.

É-nos dada uma rara oportunidade para observar as maravilhas da natureza e seus elementos nas suas mais extraordinárias facetas incluindo as mais violentas e destruidoras. Saída nocturna na mata de Cufar Nalu, para em patrulhamento visitar o velho Acampamento do PAIGC, não vá ter inquilinos novos!

O céu pode considerar-se como uma tela da Natureza, sendo a base de todos os fenómenos atmosféricos correntes que nele se reflectem. Seguindo na célebre bicha de pirilau, somos surpreendidos ainda escura madrugada, no labiríntico carreiro dentro da mata por selvagens sons esquisitos. Babuínos, aves, toda a espécie animal ali vivente se ouve num estranho ruído de aflição, que nos transmite também uma sensação algo estranha. Que se passará? Eis que em segundos a selva é violada por um clarão de deflagração cósmica e imediatamente, o ribombar de enorme trovão ressoa até aos confins das mais ignotas matas. Aí está! Produzindo um dos fenómenos meteorológicos mais espectaculares e violentos resultantes de apenas três ingredientes: ar, água e calor.

Uma trovoada tropical! Quase diárias nesta época, não tínhamos apanhado nenhuma assim nocturna isolados na mata, sendo envolvidos no seu turbilhão de água, caindo em cascata. A sua mais perigosa manifestação, os raios, colossais descargas eléctricas podendo atingir potências inacreditáveis de volts, aquecendo a milhares de graus centígrados, próximo da velocidade da luz, provocando uma explosão sob a forma estrondosa ecoante, o trovão. A energia é tal que ilumina toda a mata e que nos deixa mais cegos por momentos, na escuridão já existente. Depois da cegueira resta-nos a sorte divina de não sermos alvejados, porque o esgaçar das monstruosas árvores, parece som de papel rasgado por nervosas mãos, elevado a milhões de decibéis. Ficamos completamente desnorteados, como formigas saídas do carreiro por entre manada de elefantes. Encharcados até aos ossos, mãos dadas para não nos perdermos, vamos andando devagar com o pensamento não se sabe onde (nem querendo saber de momento). Assim vamos ao encontro do nosso destino…

Vagabundo confirma que o homem se descobre, quando se mede com o obstáculo. Como chega rapidamente sem nos apercebermos, assim se dissipa o tornado deixando apenas o seu rasto devastador.

Passamos pelo destruído acampamento que continua na mesma como coisa assombrada. Ali, com certeza o espírito dos mortos vagueará e imporá o temor e a impossibilidade de reconstrução.

Rompeu a manhã e descendo pelo lado contrário, direito à picada da antiga tabanca de Cufar Nalu, vão-se os camuflados enxugando pelo calor corporal emanado, enquanto o pensamento mais tranquilizado se desprende e procura outras paragens.

Vagabundo
ligando os fenómenos da natureza, sorri interiormente e relembra os seus tempos de escuteiro, a trovoada no acampamento no eucaliptal da Fonte da Eira e os resistentes ao (bronquítico ataque). Também a chuva caía como Deus a mandava, trovejando fortemente, mas foram fortes, resistentes, verdadeiros rapazes de Baden Powell. Levantando o pano da tenda para comunicarem com os da frente, a panela de arroz com carne no meio, à vez por ordem não comandada, a colher ia entrando e enchendo aquelas bocas sem temor da trovoada.

Por onde andais vós,  meus grandes amigos? Peta, Carmélia, Casado, Pitórrela, Mochila e outros? Quem sabe não vireis aqui bater com os costados para conhecer esta bonita terra? Olhem, eu vou enxugando esta merda de roupa camuflada no corpo, só que já caminho de perna um pouco aberta pois já sinto os tomates assados. Um dia iremo-nos encontrar, se tudo correr bem e tiver a sorte de não levar um tiro nos cornos,  havemos de beber uns copos à nossa saúde. O sorriso apareceu novamente ao relembrar outras aventuras dos tempos de puto e gandulo.

Vagabundo caminhando agora, já de regresso, na leve subida de acesso ao fundo da pista de aviação na estrada Cufar /Catió, a porra do camuflado mal enxuto de água mas agora molhado pelo suor, foi atingido o fundo da pista, com o pensamento já em qualquer coisa para comer, pois o esgalgado estômago já se encontrava em vazia badalação de horas de almoço. Voltando mais uma vez à sua Planície e ao familiar convívio dos seus mais queridos, o furriel relembrou seu avô, quando a hora de almoço por vezes se atrasava, o simpático e amigo velhote recitava:

Doze horas é meio dia,
Quem não almoça,  enfraquece!
Já a água não me mata a sede,
Já o meu amor não me esquece!

Como vês,  Tânia, até o velhote traz a recordação. Adorável este sabedor avô. Parece que está aqui, nos seus segredos, fugindo ao controlo das filhas, minha mãe e de minha madrinha.
– Pst! Pst! Tens bagalhuça?

E sorrateiramente fazia o gesto,  esfregando o indicador e polegar.
–  E ela é bonita? Respeita sempre!

Simplesmente maravilhosa, esta criatura, com quem tanto convivi desde que enviuvou, eu apenas com quatro anos fiquei a ser o seu “companheiro”, pois sempre assim me tratou.
–  Por onde andará aquela alminha, meu doce companheiro?

Nunca imaginaste bom avô! Nem terás conhecimento do abutre em que se tornou o teu companheiro. Ainda bem que ignoras a guerra.

Chegados! Vamos ao duche e ao almoço que a fome é negra.
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domingo, 12 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17129: Blogpoesia (498): "Nomes e verbos..."; "Cabeleira farta de prata..." e "Nem a carvão... nem a gasolina...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728



1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros durante a semana ao nosso blogue, que publicamos com prazer:



Nomes e verbos...

Entrei pelo dicionário dentro.
Como se entra num museu.
Tantas galerias.
Tantas estantes bem ordenadas.
Repletas.

Peguei num verbo.
O verbo amar.

Pus-me a conjugá-lo.
Em todos os tempos e suas formas.
Foi no infinito que eu fiquei.
Como um apaixonado.
Agarrado ao chão.

Segui adiante.
Aos substantivos.

Que grande jardim.
Tantas flores.
Parei nos cravos.
Ó que cheirinho!
E as rosas, de tantas cores.
Que perfume!

E fui ao sótão.
Dos adjectivos.
Todos em cestos.
Como as sementes.
Tão variados.
De tantas espécies.
Que maravilha!
Davam para tudo.

Pelo corredor fora fui dar à cozinha.
Era a sala das interjeições!
Ferviam panelas.
Soltavam odores.
Ó que regalo!
Tanta panela.
Sem cozinheira.

E depois um salão.
Dos advérbios.
Todos janotas.

Lá estavam os de tempo.
Todos sem uso.
Intemporais.

Depois os de modo.
Todos pedantes.
Muito formais...

E mesmo no fim,
Uns caixotões.
Abri-lhes a tampa.
Quase morria.
Eram os assentos,
Pontos e vírgulas...
Tanta ferrugem!...
Fora de uso.

Bar "Caracol" 12 de Março de 2016
10h21m
sábado de sol
JLMG

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Cabeleira farta de prata...

Escorre da cabeça pianista
uma cabeleira farta, de prata.
Seu rosto enrugado, sereno,...
se fixa no piano calado.

Seus dedos avançam-lhe ávidos de sons.
Poisam nas teclas. Saltitam frementes.
Sobem acordes de pautas,
volutas de tons,
em cascatas acesas, raiadas de luz.

A sala se enche com ondas
duma maré, prenhe, do mar.

Esvai-se o tempo fluente de cor
Enquanto o piano entoa e encanta
uma sala de gente faminta de paz e harmonia...

Ouvindo Beethoven, concerto nº 1, por Martha Argerich
Mafra, 6 de Março de 2017
21h28m
Jlmg

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Nem a carvão... nem a gasolina...

tenho um coração de carne.
igual ao de toda a gente.
sessenta badaladas por minuto.

se cansa e arfa.
sofre e ama.

me serve fiel,
desde o começo.
sem nada exigir.

sempre pronto.
nunca se negou a trabalhar.

por isso o guardo bem dentro,
lugar seguro.
seu alimento vem-lhe da alma.
e do Sol aceso
que me alumia...

Berlin, 11 de Março de 2015
16h24m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17117: Blogpoesia (497): Neste dia da Mulher, um poema de Juvenal Amado, dedicado à sua companheira de sempre

Guiné 61/74 - P17128: Manuscrito(s) (Luís Graça) (113): Não há mortes grátis!

Não há mortes grátis

por Luís Graça


Imagina que morres no hospital,
como um  cão,
abandonado.
O único gesto, humano, que tiveram para contigo,
foi o da jovem enfermeira
que, com todo o profissionalismo,
te deu a injeção de morfina
e correu a cortina em redor da tua cama,
para que o teu estertor,
a tua morte lenta,
não perturbasse os vivos,
nem o fluxo dos que esperavam no terminal da morte.

Lembro-me de um médico francês,
conceituado professor,
que um dia definiu o hospital
como o lugar onde se morre
... sem uma palavra.
Depois do encarniçamento terapêutico,
a treta da humanização acaba aqui.
Os médicos, em face da derrota,
que é o triunfo da morte sobre a ciência,
batem discretamente em retirada.

A medicina só se ocupa dos vivos,
a morte pertence a outro pelouro…
Tal como na guerra, lembras-te ?
No helicóptero, nas evacuações Ypsilon,
não iam cadáveres,
só os feridos, graves, que ainda podiam salvar-se,
se chegassem em menos de trinta minutos ao HM 241, em Bissau...
Os mortos, esses,  levavam-se às costas,
em padiolas, improvisadas,
quatro paus, atados por lianas,
com um fundo feito por um dos nossos impermeáveis.

Morres como um cão,  camarada,
e, pior ainda, imagina
que ninguém reclama o teu cadáver,
ou porque não tens família,
parentes, amigos, conhecidos,
ou porque a tua família está longe
ou, mais provavelmente,
não tem recursos.

Se ninguém reclama o teu corpo,
os gatos pingados perdem o dia,
não faturam,
ninguém te lava,
ninguém te veste,
ninguém te calça,
ninguém te cruza as mãos…
Ou, pior,  ninguém te enterra na terra da verdade
ou, muito menos, te manda para o forno crematório,
cumprindo a tua derradeira vontade.

Até um morto, camarada, custa dinheiro,
um enterro, já não direi cristão,  mas humano, decente,
custa uma pipa de massa…
Mesmo que alguém, por dever profissional,
ou simples caridade, ou compaixão,
acione o teu direito constitucional (ou simplesmente humano)
a uma morte condigna,
incluindo as cerimónias fúnebres,
os burocratas da segurança social
vão, primeiro, consultar a tua ficha
e fazer  o teu deve e haver…

E, na melhor das hipóteses,
podes ser enterrado ou cremado,
a crédito, a prestações,
se a funerária for pelos ajustes…
Nas terras pequenas,
não na cidade grande, anónima,
é possível pagar a prestações
a despesa do funeral,
ou contar com o subsídio da segurança social
que, tal como o Estado, paga, 
mesmo que tarde e a mais horas...

Aqui não adiante puxares pelos teus pergaminhos,
ou pelas cruzes de guerra que ostentavas no peito
no 10 de junho dos combatentes
da guerra do ultramar.
Meu camarada, meu bravo, meu herói, 
tu, depois de morto,
não tens filhos, netos, parentes,
amigos, colegas, camaradas,
és um “presunto”
e,  com sorte, vais na “salgadeira”,
o caixão de chumbo,
que chegará aos tombos, por terra e por rio, 
até ao cais de Bissau,
à espera de embarque, no Niassa ou no Uíge...
Três ou quatro meses depois,
talvez chegues ao cemitério da tua terra
para ficares na tua última morada
e repousares finalmente em paz!

Agora que a guerra acabou há muito
(mesmo que para ti nunca tenha  acabado!)
só tens um cenário à tua frente,
és um sem-abrigo, à espera da última morada,
estás num câmara escura, 
metido num saco de plástico, preto,
com fecho éclair,
nu e congelado,
na morgue do hospital,
em trânsito,
à espera de um carimbo e de uma autorização de despesa,
que podem demorar semanas…

Há 50 ou 100 anos atrás,
irias imediatamente para a vala comum,
sete palmos de terra e uma pazada de cal viva,
que ao fim de 24 horas tresandavas a morto,
e o cheiro a morto é o único cheiro
que os vivos não suportam!

Bem razão tinham os gregos da antiguidade clássica,
que punham na boca dos seus mortos uma moeda, 
para pagar ao barqueiro 
que fazia a travessia do rio Caronte…
Alguém se esqueceu, camarada, 
do último gesto de misericórdia,
pôr-te a moeda, entre os dentes cerrados,
para o maldito barqueiro de Caronte:
... é que não há mortes grátis!

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Guiné 61/74 - P17127: Parabéns a você (1221): Manuel Luís Rodrigues de Sousa, Sargento Ajudante Ref da GNR, ex-Soldado At Inf do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série > 11 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17125: Parabéns a você (1220): Artur Soares, ex-Fur Mil Mec Auto da CART 3492 (Guiné, 1972/74) e Joaquim Sequeira, ex-1.º Cabo Canalizador do BENG 447 (Guiné, 1965/67)

sábado, 11 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17126: Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, CCAÇ 4740 (Cufar, dez 72 / jul 73) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, jul 73 /ago 74) (13): Visita de cortesia a Fá Mandinga, onde ainda pairava o fantasma do famoso "alfero Cabral"...


Foto nº 1 > Fá Mandinga > Bajudas a lavar no rio


Foto nº 2 > O alf mil Luís Mourato Oliveira, cmdt do Pel Caça Nat 52 (Mato Cão) de visita ao seu vizinho e camarada Manuel Elvas, cmdt do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga)... O pretexto foi uma caldeirada de cabrito... Para lá foi de jipe... Parece que no regresso, com a maré cheia, teve de ir dar uma volta a Bafatá...

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Fá Mandinga  > c. 1973/74

Fotos (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Continuação da publicação do extenso e valioso álbum fotográfico do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro, que foi alf mil da CCAÇ 4740 (Cufar, 1972/73) e do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74). (*)

Foi o último comandante do Pel Caç Nat 52. Irá terminar a sua comissão em Missirá, depois de Mato Cão, e extinguir o pelotão em agosto de 1974.

De vez em quando também ia a Fá Mandinga, ao "petisco",,, Quem lá mandava, nessa altura,  era o Manel Elvas, cmdt do Pel Caç Nat 63... Diz ele que ainda por lá pairava o fantasma do famoso "alfero Cabral"... E as bajudas continuavam lindas...

O Manuel Elvas (apelido ou alcunha ?) terá sido o último comandante do Pel Caç Nat 63, desativado em agosto de 1974 (**)-

Antiga estação agronómica, agora transformada em quartel, dizia-se que por lá passara, no início dos 50, o engº agrónomo Amílcar Cabral, licenciado pelo ISA- Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa... Ora, este facto não parece estra documentalmente comprovado...

Sobre Fá Mandinga, que fica a escassos quilómetros da nordeste de Bambadinca, na margem esquerda do Rio Geba Estreito, temos mais de 120 referências no nosso blogue. Foi sítio de passagem para muitas subunidades que estiveram no leste e não só, nomeadamente nos primeiros anos de guerra (**). Havia também a Fá Balanta...

Como já aqui o dissemos, Fá Mandinga aparentemente teve um papel discreto na guerra, para além do facto de lá terem estado, em formação, as três companhias do futuro Batalhão  de Comandos Africana... Em formação e não só: foi daqui que partiu a 1ª CCmds Africana para a Op Mar Verde (22 de novembro de 1970)...

E durante muito tempo Fá Mandinga esteve erradamemte associada ao nome do engº agrónomo Amílcar. De facto, a estação agrária experimental de Fá tinha boas instalações, entretanto desafetadas com o início da guerra. Mas Amílcar Cabral nunca ali trabalhou, e muito menos ali viveu. Ele e a sua primeira esposa, portuguesa, Maria Helena Rodrigues, silvicultora, viveram e trabalharam na estação agrária experimental de Pessubé, nas imediações de Bissau, entre setembro de 1952 e março de 1955.


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 >  Bambaddinca >  Carta de Bambadinca > Escala 1/50 mil (1955) > Posição relativa de Fá Mandinga, a escassa meia dúzia de quilómetros de Bambadinca, na direção de Bafatá.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).

Guiné 61/74 - P17125: Parabéns a você (1220): Artur Soares, ex-Fur Mil Mec Auto da CART 3492 (Guiné, 1972/74) e Joaquim Sequeira, ex-1.º Cabo Canalizador do BENG 447 (Guiné, 1965/67)


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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Março de 2017 > Guiné 61/74 - P17122: Parabéns a você (1219): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutor Auto Rodas do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

sexta-feira, 10 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17124: Notas de leitura (935): Autóctones guineenses e portugueses: Contactos sempre difíceis, dos primórdios à independência (Mário Beja Santos)

Ângulo da Fortaleza de Amura
Imagem retirada, com a devida vénia, do blogue Marinha de Guerra Portuguesa


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
A investigadora Maria Teresa Vásquez Rocha registou no seu trabalho alguns aspetos fundamentais que outros autores também confirmaram: a precariedade da ocupação do território, no fundo, e até às guerras da pacificação das primeiras décadas do século XX, a presença portuguesa circunscrevia-se a um conjunto de praças e presídios, eram inúmeros os conflitos com os régulos, a presença militar meramente simbólica, não se podia combater a concorrência que percorria livremente o que se chamava a Grande Senegâmbia; tropa mal remunerada e indisciplinada, mal equipada e insuscetível de poder sair das praças e presídios. Só no fim da primeira década do século XX é que o Governador Carlos Pereira mandou demolir as muralhas circundantes da fortaleza de Bissau, foram necessárias conversações morosas com os régulos de Bandim e Indim. Por último, a missionação não dispunha de recursos e o islamismo trazia para os autóctones aliciantes argumentos, era uma rutura menos drástica que o cristianismo pedia. É preciso atender a todos estes fatores para se perceber com a presença portuguesa que dava ao rei o título de Senhor da Guiné era uma quase quimera.

Um abraço do
Mário


Autóctones guineenses e portugueses: 
Contactos sempre difíceis, dos primórdios à independência

Beja Santos

A Revista Africana, que era editada pela Universidade Portucalense, no seu número de Setembro de 1997, publicava o artigo “Guiné: o gentio perante a presença portuguesa (II)”, por Maria Teresa Vásquez Rocha, trabalho que se inseria num projeto de investigação sobre o Islão na Guiné-Bissau, num arco temporal desde os primeiros contactos até à atualidade. A autora começa por dizer que a presença portuguesa deu sinais de crescimento a partir do século XVIII e ao longo do século XIX, expressando-se por relações comerciais, políticas e de caráter religioso. Este último aspeto prende-se com um dos maiores insucessos da missionação portuguesa que logo se viu confrontada com o proselitismo do Islão e a fortíssima e generalizada subsistência das crenças tradicionais africanas. Procurando descrever as Praças, e socorrendo-se de inúmera documentação que encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino e que foi tratada em termos paleográficos, escreve claramente: “Uma vez que o apoio dado pela metrópole era reduzido ou nulo, as Praças e suas guarnições eram normalmente decadentes”.

Um dos aspetos singulares deste trabalho é exatamente a epistolografia que deixa bem claro quanto às queixas permanentes do abandono da Guiné. E muita dessa correspondência é endereçada ao governo em Cabo Verde, já que a Guiné apenas se autonomizou relativamente a Cabo Verde em 1879, até aí esteve dependente quase na totalidade de Cabo Verde em termos políticos, administrativos, militares e religiosos, como aliás António Carreira sintetizou admiravelmente: “As Ilhas eram o cérebro, o continente o corpo”.

Os estabelecimentos de Cacheu e Bissau tinham a caraterística particular de os titulares do poder local serem nomeados pelo rei, apesar de ficarem dependentes do governo de Cabo Verde.

O Capitão-Mor de Cacheu era provido nos cargos de Feitor e Juiz, subordinado ao Ouvidor de Santiago. Todo este excesso de acumulações se revelou prejudicial às praças, ao seu bom funcionamento. A documentação analisada permite avaliar casos repetidos de corrupção e grande negligência perante os interesses do Estado.

Para se avaliar como a Guiné era a parcela menor do governo de Cabo Verde, atenda-se ao significado da deliberação do Conselho de Estado, na sua reunião de 14 de Junho de 1653, determinado que os governadores de Cabo Verde visitassem pelo menos duas vezes o distrito da Guiné durante o seu triénio. Voltemos atrás à história das Praças. Em 1696 foi nomeado pela primeira vez um Capitão-Mor para a Praça de Bissau. As povoações de Geba, Farim e Ziguinchor tinham um comandante militar nomeado pelo governador de Cabo Verde. Era frequente enviar-se para estes presídios e praças soldados indisciplinados e punidos, antigos corrécios, que aproveitavam todos os pretextos para se insubordinarem, ou por falta do pagamento do pré, ou pelo fardamento estar desfeito e não ser substituído ou até mesmo por falta de armamento e munições.

No século XVIII, a soberania portuguesa é francamente precária e no século XIX a história da Guiné Portuguesa continua a mover-se à volta das povoações de Cacheu e Bissau, a soberania portuguesa fazia-se sentir apenas entre os rios de Casamansa e de Bolola.


Fortaleza de Cacheu
Imagem retirada, com a devida vénia, do blogue Alma de Viajante

Perante a penúria de meios e a mais completa desarticulação dos recursos, já desde o século XVII se ensaiavam formas de administração contemplando a criação de sociedades de caráter majestático. Em 1670, apareceu a primeira Companhia de Cacheu, com o exclusivo de navegação e comércio da Costa da Guiné. Resta dizer que tudo isto não passava de uma encenação, não havia meios de controlar as frequentes incursões dos concorrentes espanhóis, franceses e ingleses. Também nessa companhia majestática surgiram abusos e irregularidades, foi sol de pouca dura. A segunda Companhia de Cacheu, designada como Companhia de Cacheu e Cabo Verde, foi criada em 1690. À semelhança da primeira, gozava de uma série de benefícios e isenção de direitos. Mais abusos e irregularidades.

Em 1755, foi criada a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que passou a deter o monopólio do comércio das colónias de Cabo Verde e Guiné. Para além do recurso às companhias de caráter majestático, a colonização portuguesa foi levada a cabo por habitantes de Cabo Verde a quem foram concedidas facilidades no comércio a realizar na Guiné do Cabo Verde.

Observemos agora as Praças: viveram quase exclusivamente do comércio, o que quer dizer goma-arábica, cera, algodão, a par do ouro e dos escravos. Para a obtenção dos escravos, verifica-se uma enorme concorrência entre as potências europeias e aqui se pode perceber porque é que os régulos se sentiam muitas vezes lesados pelo facto dos portugueses venderem muitas vezes produtos de qualidade inferior por preços mais onerosos que a concorrência, e por isso batalhavam Para que aparecessem mais comerciantes, que houvesse maior liberdade de comércio, os religiosos também secundavam esta liberdade de comércio.

Estamos agora no fim do século XVIII, começa a questão de Bolama quando Philipe Beaver chega a Bolama à frente de bastantes famílias, vêm com o objetivo de se estabelecerem, Portugal não dispunha de capacidade militar para ripostar e os ingleses faziam contratos com os régulos de Canhambaque e Guínala. A presença religiosa, durante quase todo o século XVI, fora das fortalezas e feitorias, teve sempre caráter esporádico e provisório, havia as visitas dos frades de Santiago que regressavam depois às ilhas após alguns meses de pregação. Também os Jesuítas não foram bem-sucedidos. Os missionários viviam em extrema pobreza, não tinham meios para manter as igrejas. Ainda foram batizados alguns régulos, mas revelou-se trabalho inconsistente. Onde a missionação teve algum sucesso foi junto dos Grumetes, que eram empregados nos trabalhos auxiliares de porto e dos navios, a designação tornou-se extensiva a todos os naturais que, convertidos ao cristianismo, adaptassem normas e apelidos portugueses.

 O islamismo penetrou na Guiné trazido pelos Mandingas, a propagação da doutrina foi um processo lento mas duradouro, com algumas originalidades de aculturação. Mandingas, Fulas e Sossos foram as etnias mais islamizadas. O islamismo, quando comparado com o cristianismo, revelava-se menos exigente para o africano, o cristianismo obrigava a uma drástica rutura com princípio em crenças ancestrais, o islamismo foi sempre mais flexível. Isto para não deixar de referir a questão elementar da monogamia e da poligamia. No termo do seu trabalho, a autora descreve a importância das confrarias (a Qadiriya e a Tidjaniya eram as mais importantes). Os missionários supunham que a conversão do régulo se traduzia automaticamente na tradução do seu povo, não se apercebiam que os régulos eram nomeados pelos conselhos dos homens grandes e estes tinham uma maior influência que o régulo junto das populações.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17109: Notas de leitura (934): “O Adeus Ao Império, 40 anos de descolonização portuguesa”, organização de Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira, Nova Veja, 2015 (Mário Beja Santos)