1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Agosto de 2017:
Queridos amigos,
Entramos numa localidade com o objetivo e tudo se vira de pernas para o ar quando sentimos um acicate na curiosidade. Estava com a garganta a arder na naquele dia de canícula, esquecera a medida cautelar de andar com uma garrafinha de água no bolso, em desespero parei num café-restaurante de Vila de Rei. Vi a menção à biblioteca municipal de nome José Cardoso Pires, de cuja obra sou aficionado e que dele tive o privilégio de saborear pilhérias e jocosidades. Foi uma visita surpreendente que a todos recomendo, sem qualquer hesitação.
Um abraço do
Mário
Em Vila de Rei, à procura de José Cardoso Pires (1)
Beja Santos
Quis o acaso que naquela tarde de canícula, a caminho de Pedrógão Pequeno, o viandante sentisse a garganta a arder, a clamar por uma água refrescante. Entrou-se em Vila de Rei e súbito se deu por uma indicação da Biblioteca Municipal José Cardoso Pires. Dessedentado, o viandante pôs-se ao caminho, intrigado e feliz. Intrigado, por o autor de
“O Delfim” ter o seu nome consagrado numa biblioteca, houve o acicate de saber se por ali pairavam memórias do grandessíssimo escritor; e feliz, na justa medida em que o viandante com ele privou e dele guarda as melhores recordações do seu espírito faceto, das suas pilhérias, da imensidade de comentários por vezes acervos, dentro e fora do olimpo de artistas e escritores.
É um belo edifício, tem alguém de muito acolhedor na receção, chama colega para ali ficar, será ele o guia por tal deambulação.
A primeira surpresa é encontrar ali um recanto de homenagem a um poeta e crítico literário hoje injustamente esquecido, João Maia, natural de aqui perto, da Fundada, a sua crítica literária foi das melhores do seu tempo. Ainda bem que a biblioteca aqui fixou a sua imagem de homem sereno, lhe editou até uma obra tocante de memórias de infância, recordações afetuosas do seu lugarejo, e lhe consagra um centro de estudos, deixou obra imensa em diferentes publicações, particularmente na revista Brotéria, da Companhia de Jesus, a que pertencia. Foi muito bom vê-lo presente e dignificado neste nosso mundo que funciona como uma passerelle de ídolos efémeros.
Entrevistado por Artur Portela, José Cardoso Pires falou do seu nascimento espúrio em São João de Peso, aldeia de Vila de Rei. Fez uma apreciação mazinha, um tanto cáustica, do evento:
“Naturalmente que vir ao mundo num estabulozinho sem ser por milagre mariano é uma maldição que fica para o resto da vida. Miséria extrema, daquela que só é possível imaginar nos povoados esquecidos do mapa. À falta de melhor, o meu avô repartiu o nome de filhos por padrinhos que os pudessem proteger, como aconteceu com o meu pai. Com a exceção do meu pai, todos os filhos do meu avô tiveram de emigrar para os Estados Unidos depois de terem servido de mão-de-obra infantil nas ceifas do Alentejo. Foram pastores, foram marçanos, foram tudo, até conseguirem juntar dinheiro par a viagem”. E, mais adiante:
“Eu só nasci no campo porque a minha mãe, que era das Beiras, tinha a obsessão das origens. Quando estava grávida deixava Lisboa e fazia como os salmões: subia a contracorrente para ir ter os filhos lá na terra das origens”.
José Cardoso Pires fez amizades com os maiores artistas do seu tempo, Júlio Pomar deixou dele este belíssimo quadro.
A biblioteca é um foco de atração, o autor de
“Cartilha do Marialva” está sempre à mão de semear qualquer leitor. Segue-se para o espaço a ele dedicado e é com imenso prazer que se para diante do óleo que lhe consagrou Victor Palla, arquiteto, pintor, designer, fotógrafo e editor, entre algo mais. Ainda hoje o viandante procura os seus trabalhos, não há bibliófilo que não revolva o céu e a terra à procura das suas fotografias e das capas dos livros que ele concebeu.
Os herdeiros de José Cardoso Pires ofereceram alguns dos seus bens preciosos, a sua máquina de escrever, livros autografados de outros escritores, traduções dos seus livros, condecorações, fotografias, recordações inolvidáveis.
Fortuito ou não o nascimento deste grande escritor em São João do Peso, permitiu que estes bens estejam aqui ao alcance de quem vive em Vila de Rei ou visita a biblioteca. Estão aqui todos os seus livros. Em jeito de despedida, apetece recordar o louvor que dele teceu outro magnífico das letras e seu companheiro de paródias, António Lobo Antunes:
“Quando anoitece, José Cardoso Pires começa a ganhar consistência no interior da roupa, íntimo de barmen e do labirinto estranho em que Lisboa se transforma, balizada de chafarizes e polícias que perderam, desde há séculos, o costume de sorrir. As árvores pingam trevas em cima de nós, os prédios aproximam-se, como as ovelhas, para adormecerem, encostando umas às outras os quadris das varandas (…) Às duas da manhã, quando as rugas, piedosamente apagadas pela ausência de sol, fazem de nós um grupo de adolescentes à espera da primeira comunhão e de uma nova garrafa, e os empregados dos bares circulam entre as mesas com a diligência das senhoras que procedem à recolha das esmolas no ofertório das missas, saímos para o ressonar a estores soltos dos bairros de Lisboa”.
Em Vila de Rei e pelo país fora ele convida quem quer que seja a pegar nas suas obras, dá gosto ler praticamente tudo quanto escreveu, para poder sentir a sinceridade de uma das suas muito apuradas reflexões:
“O derrotismo assenta na negação, o ceticismo assenta na dúvida, e duvidar é um apelo à revisão, um princípio de análise”.
Continua
____________
Nota do editor
Último poste da série de 22 de novembro de 2017 >
Guiné 61/74 - P18001: Os nossos seres, saberes e lazeres (241): As aldeias serranas da Serra da Lousã (Mário Beja Santos)