terça-feira, 23 de abril de 2019

Guiné 671/74 - P19710: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Parte II - Os três acidentes na hidrografia guineense


Foto nº 1 > Rio Cacheu > Fonte: http://www.gbissau.org/wp2013/blog/2014/04/25/as-tarrafes-do-rio-cacheu-2/ (com a devida vénia).




Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue desde março de 2018


ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974): Parte II - OS TRÊS ACIDENTES NA HIDROGRAFIA DA GUINÉ - 



1.  INTRODUÇÃO

Na sequência do texto de apresentação deste novo projecto (P19679) (*), estruturado em quatro partes, titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974), acrescentamos que esta questão surge do interesse pessoal pelo seu aprofundamento, onde, na altura própria, teremos a oportunidade de recordar uma experiência única, muitíssimo emotiva e impregnada de uma dor imensa, que teima em não passar, vivida por mim no Rio Geba, em 10Ago1972, acidente considerado como um dos três mais graves registados pelas NT na rede hidrográfica da Guine, durante o período em análise. 

Por outro lado, considerando que estão decorridas mais de quatro décadas desde o seu termo, é de acolher o conceito de que o actual quadro historiográfico, onde consta o que aconteceu, o que foi feito e o que foi dito, muito deve aos textos elaborados, na primeira pessoa, pelos ex-combatentes, ao longo dos últimos quinze anos [faz dia 23], de que são prova pública os cerca de vinte mil postes partilhados na «Tabanca Grande» pelos seus membros. 

Acreditamos que esse quadro vai continuar a ser alterado/actualizado/alterado com a adição de outras "memórias" ainda não divulgadas.  Parabéns por tudo isso… e pela OBRA já construída… PARABÉNS À TABANCA!

Entretanto, os resultados que iremos dando conta ao longo dos diferentes fragmentos são corolário da consulta a diferentes fontes "Oficiais", onde o tema foi tratado, mas não serão as únicas, pois continuaremos a alargar os campos de consulta. Pelo exposto acima admitimos a possibilidade dos "casos da investigação" já coletados poderem vir a ser alterados/corrigidos por via da identificação de situações particulares que já estejam, ou não, consideradas. Por outro lado, quanto aos valores já apurados, procederemos à realização de uma análise demográfica, quantitativa e qualitativa. Essa análise, que terá uma dimensão global, apresentar-se-á, ainda, estratificada em dois grupos (amostras), como são os casos dos "corpos recuperados" e "não recuperados" e as suas respectivas Unidades.

Por razões metodológicas e estruturais do desenvolvimento do trabalho, a análise estatística apresentada no primeiro fragmento foi organizada exclusivamente por quadros de distribuição de frequências, simples e acumuladas, conforme se indicou em cada um dos títulos. Em cada um desses quadros relatam-se os valores quantitativos dos diferentes elementos das variáveis categóricas ou quantitativas relacionadas, tendo em consideração os objectivos que cada contexto encerra.
No presente fragmento, esses mesmos quadros terão agora uma representação gráfica de distribuição de frequências, simples e acumuladas, expressa através de gráficos de barras ou de gráficos circulares.

Por último, serão descritas as causas, factos e resultados que fazem parte da "história" de cada um dos três principais acidentes na hidrografia da Guiné, como foram classificados os casos do Rio Cacheu, em 05Jan65, durante a «Operação Panóplia»; no Rio Corubal, em 06Fev69, em Ché-Che, e em 10Ago72, no Rio Geba, no Xime.

Cada uma destas ocorrências será tratada individualmente e em fragmento separado.

2.  ANÁLISE DEMOGRÁFICA DAS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-74)



Gráfico 1 – Distribuição de frequências segundo a variável número de mortes por afogamento (1963-1974)  (n=144 )
 

Recordamos que a análise demográfica que comporta esta investigação, e as variáveis com ela relacionada, incidiu, como referimos no ponto anterior, sobre os casos das mortes por afogamento de militares do Exército durante a guerra no CTIG (1963-1974), identificados nos "Dados Oficiais" publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II, Guiné; Livros 1 e 2; 1.ª Edição, Lisboa (2001).

O estudo mostra que dos indivíduos que constituíram a população deste estudo, em 81 (56.2%) dos casos de mortes por afogamento os corpos foram recuperados, enquanto 63 casos (43.8%) tal não se concretizou. 


Gráfico 2 – Distribuição de frequências segundo a variável de mortes por ano  (n=144)

O estudo mostra que durante o período em análise (1963-1974) em todos os anos ocorreram mortes por afogamento. Os valores mais baixos foram verificados em 1963 (n=3), 1970 (n=4) e 1974 (n=5). Durante os doze anos em que decorreu o conflito, por quatro vezes (1/3) o número de mortes por afogamento ultrapassou a dezena de casos. Para estes valores muito contribuíram os "acidentes" nos rios da Guiné – Cacheu, Corubal e Geba – como foram os três casos seguintes:

(i) em 05Jan1965, no Rio Cacheu, durante a «Operação Panóplia», com oito mortes do Pel Mort 980;

(ii) em 06Fev1969, no Rio Corubal, em Ché-Che, com quarenta e sete mortes, pertencentes à CCaç 1790 (n=26), CCaç 2495 (n=19) e ao PMil 149 (n=2);

(iii) em 10Ago1972, no Rio Geba, em Xime, com três mortes da CArt 3494.



Gráfico 3 – Distribuição de frequências segundo a variável "Posto" (n=144)


No que concerne à distribuição de frequências relativas ao "Posto" militar dos náufragos, durante o período em análise (1963-1974), constata-se que 113 (78.4%) eram soldados; 22 (15.3%) eram 1.ºs cabos; 7 (4.9%) eram furriéis; 1 (0.7%) era 2.º sargento e 1 (0.7%) era major.


3. OS TRÊS ACIDENTES NOS RIOS DA GUINÉ: CONTEXTO DE CADA UMA DAS OCORRÊNCIA

Para a elaboração deste ponto muito contribuiu o vasto espólio de informação disponível no nosso blogue. Contudo, as maiores dificuldades foram sentidas na obtenção de relatos relacionados com o acidente ocorrido no Rio Cacheu, em 05Jan1965, envolvendo o PMort 980, uma vez que esta unidade não consta no índice de "marcadores". Mas conseguimo-las ultrapassar após termos localizado o P3313 (de 14Out2008), um trabalho do camarada Virgílio Briote, a quem desde já agradeço.

Com efeito, a sequência da apresentação será cronológica com início no acidente no Rio Cacheu, seguido do ocorrido no Rio Corubal e, finalmente, o caso no Rio Geba, conforme se dá conta no gráfico abaixo (elaborado a partir do gráfico 2). 



Gráfico 4 – Identificação dos anos em que ocorreram os acidentes nos rios da Guiné (n=144)


3.1. O CASO NO RIO CACHEU EM 05JAN1965 = O PRIMEIRO

Foto 1 (Rio Cacheu) [imagem acima].. Este rio encontra-se na região norte da Guiné, perto da fronteira com o Senegal. O rio tem 150 kms de extensão, em grande parte é navegável e o seu caudal aumenta drasticamente durante a estação chuvosa, entre Maio e Novembro. O seu estuário é fascinante. A grande extensão do sistema de mangais fez com esta área se tenha tornado no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu. Apesar de ser uma área muito interessante, não é muito frequentada por turistas. No entanto, é um porto seguro para muitos animais como crocodilos, hipopótamos, golfinhos, peixes-boi, gazelas pintadas, macacos verdes e local de acolhimento periódico de aves migratórias.


O CONTEXTO DA «OPERAÇÃO PANÓPLIA» EM 05JAN1965

No âmbito das responsabilidades que recebera de Bissau, após a sua participação na «Operação Tridente», o Batalhão de Cavalaria 490 [BCav 490], sob o comando do TCor Cav Fernando José Pereira Marques Cavaleiro (1917-2012] segue para Farim, em 23MAI64, com a superior missão de preparar a organização, deslocamento e instalação das forças no «Sector 2», que abrangia os subsectores de Cuntima, Jumbembem, Bigene e Farim (a sede), aos quais se juntou, em 24Jun64, o de Binta, então criado.

Contemplado no calendário das acções previstas para aquele Sector, foi planeada para o dia 05Jan1965, 3.ª feira, a «Operação Panóplia», envolvendo as forças da CCaç 461, CCaç 675, CCav 487 e PMort 980, com o objectivo de agir sobre as Tabancas de Sambuiá, Malibolom, Ujeque e Talicó, e respectivos itinerários circunvolventes.

Como apoio logístico às forças terrestres, este contingente contou com a participação da Lancha de Fiscalização Grande [LFG] «Orion», sob o comando do 1Ten Rui Vasco de Vasconcelos e Sá Vaz (comissão: 24Out64/03Dez66), e o oficial Imediato da Reserva Naval; 2Ten RN Virgílio Cabrita da Silva, 6.º CEORN (comissão: 24Out64/02Jun66).



Foto 2 – A LFG «Orion» no Rio Cacheu. Esta Lancha de Fiscalização deixou Lisboa em 01Dez64 com destino a Bissau onde chegou a 13 do mesmo mês, depois de ter escalado os portos do Funchal, S. Vicente de Cabo Verde e Praia. Até ao final do ano de 1964 esteve em patrulha e fiscalização no Rio Cacheu. Fonte:  blogue Reserna Naval, do nosso camarada Manuel Lema Santos, com a devida vénia

Durante o desenrolar da «Operação Panóplia», aconteceu um acidente "grave" no Rio Cacheu, que teve como consequência a morte, por afogamento, de oito militares do Pel Mort 980. Como instrumento de avaliação daquela ocorrência, o Cmdt desta força, Alf Inf. José Pedro Cruz elaborou um «Relatório", que abaixo se reproduz, e cujo original faz parte da História do Batalhão de Cavalaria 490, pp 66-67.

Relatório da ocorrência elaborado pelo Cmdt do PMort 980 – Alf José Pedro Cruz
O PMort 980 participava na «Operação Panóplia» que se realizava na Península de Sambuiá, entre o Rio Cacheu e o Rio Talicó.

Para dar cumprimento à missão, o PMort 980 embarcou na LFG [Lancha de Fiscalização Grande] «Orion» às 05h00 como estava previsto e foi transportado por este meio na direcção E-W pelo Rio Cacheu. Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene. Aí, o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que o PMort 980 desembarcou para o bote de borracha pertencente ao Exército no qual se faria o desembarque na Península de Sambuiá.

Embarcaram para o barco de borracha do Exército 25 militares entre os quais se encontrava o Cmdt do PMort 980 [Alf Inf José Pedro Cruz]. Embarcámos também para esse barco todo o material e armamento necessário para se realizar o desembarque, Como seria mais seguro não embarcaram todos os homens nesse barco, que tem uma lotação aproximada de 30 homens, tendo o Comandante do navio posto à nossa disposição um barco de borracha pertencente à Marinha, no qual embarcaram simultaneamente os restantes homens do PMort (oito), assim como o restante material. Os dois barcos seriam rebocados pela «Orion», de maneira a estarem permanentemente encobertos das vistas de possíveis sentinelas existentes na Península onde se efectuaria o desembarque, junto ao Rio Cacheu. Segundo notícias, essas sentinelas existiam. Os barcos onde eram transportados os homens do PMort 980 seriam afastados da «Orion» ao passarmos pelo local onde se realizaria o desembarque.

Antes do navio se pôr em marcha, foi passado um cabo por baixo do barco onde eram transportados os 25 militares, amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo.

O navio recomeçou a marcha e, depois de ter navegado durante alguns minutos, o cabo que fora passado para rebocar o barco maior, rebentou pelo que o navio se afastou um pouco. Foi posto o motor do barco a funcionar e a recolagem fez-se sem qualquer incidente ou dificuldade. Foi então que se passou um cabo mais forte para dentro do barco de borracha, ficando os próprios homens [militares] que o tripulavam a agarrar nesse cabo, sendo nessa altura avisado pelo Cmdt da «Orion» e depois por mim [Cmdt do PMort] que, em caso de emergência, o cabo devia ser largado imediatamente. Foi nessa altura que eu [Cmdt do PMort] chamei a atenção dos homens [militares] para a conveniência de se chegarem o mais possível para a ré, pois o barco rebocado teria a tendência a baixar a proa. Os homens [militares] assim fizeram.

A marcha recomeçou, não podendo eu [Cmdt do PMort] avaliar a velocidade da «Orion», pois ela, necessariamente, difere bastante (aparentemente), devido às diferenças de tamanho da «Orion» e do barco rebocado. Depois de se navegar nestas condições alguns metros, notei que o barco de borracha deixava entrar água pela proa. Coisa sem importância, pois isso seria natural devido à ondulação provocada pela deslocação do navio rebocador [a «Orion»].

Foi nesse momento que à ré do barco de borracha alguns homens [militares] se levantaram, talvez assustados pela água que saltava para dentro do barco. Mandei-os sentar imediatamente, mas o barco já se encontrava desequilibrado de um dos lados e, sem nos dar tempo a qualquer reacção, afundou-se rapidamente. Alguns homens [militares] que se encontravam dentro do barco sinistrado não sabiam nadar e, então, o pânico foi enorme.

Nadei para junto do barco que se encontrava voltado e icei-me para ele. Seguidamente e auxiliado por um soldado, fui aconselhando calma e ajudando alguns homens [militares] a içarem-se para o barco voltado. Foi feito todo o possível para salvar o maior número de homens. Alguns não chegaram a vir à superfície uma única vez, talvez devido ao grande peso do equipamento, armamento e munições. Entre estes, dois eram bons nadadores.

Verifiquei então que se aproximava rapidamente um barco de borracha da Marinha tripulado pelo próprio Cmdt da «Orion» [1TEN Rui Sá Vaz], a qual se encontrava parada, afastada do barco sinistrado cerca de 80 metros. Depois de se efectuar o transporte de todos os sobreviventes para bordo do navio, efectuaram-se pesquisas em todos os sentidos e recolheu-se todo o material que se encontrava a boiar.

Verifiquei imediatamente que tinham desaparecido no desastre alguns homens [militares] do meu PMort 980 e variadíssimo material.

Ao subir para a «Orion» fui informado que dois homens [militares] se salvaram por terem ficado agarrados ao cabo do reboque, o que prova que o mesmo cabo não foi largado como foi aconselhado para o fazerem em caso de emergência.



Foto 3 - Citação: (s.d.), "Guerra da Guiné: exército português em operações.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114441, com a devida vénia.


Conclusões:

1 – O desastre [acidente] deu-se, em grande parte, devido ao pânico de que os homens [militares] se apossaram.

2 – O pânico foi devido à entrada da água pela proa do barco. Pânico natural, por muitos não saberem nadar.

3 – Que a água entrou devido à ondulação provocada pelo deslocamento do barco rebocador e ainda devido à tendência do barco em baixar a proa, visto o cabo do reboque não ter sido passado por baixo do barco mas sim por cima, indo agarrado pelos próprios tripulantes do barco rebocado.

Recomendações:

1 – Tanto quanto possível evitar, nas operações em rios, homens [militares] que não saibam nadar.

2 – Nunca rebocar um barco com o cabo de reboque passado por cima do barco rebocado e agarrado pelos próprios homens do mesmo barco.

3 – Sempre que possível, evitar reboques por meio de navio de peso elevado e de elevada velocidade.

Comentário do Cmdt do BCav 490 – TCor Fernando Cavaleiro

Concordo com as conclusões e recomendações apresentadas. N que respeita à escolha dos homens [militares] que saibam nadar, creio que infelizmente é bastante teórica pois na maior parte dos casos terão que ser utilizados os efectivos disponíveis. Aliás, não basta saber nadar, pois como se verificou dois dos desaparecidos eram até bons nadadores. A única solução parece-me que será dotar as Unidades de meios próprios para desembarques.

No caso presente é possível que o acidente se tivesse evitado se não tivesse havido necessidade de tomar medidas motivadas pela grande vulnerabilidade do barco de borracha.

O barco tem sido utilizado inúmeras vezes, nomeadamente no percurso Farim-Binta e na travessia do rio Cacheu em Farim, deslocando-se pelos próprios meios e transportando até cargas mais elevadas, sem que a sua estabilidade desse lugar a reparos.

Quartel em Farim, 10 de Janeiro de 1965.

O Comandante do BCav 490, Fernando Cavaleiro


Relatório da ocorrência elaborado pelo Cmdt do PMort 980 – Alf José Pedro Cruz



Incluído na História da Unidade do Batalhão de Cavalaria 490
NOTA FINAL:
A missão definida para a «Operação Panóplia» prosseguiu, dela fazendo parte as restantes forças mobilizadas: CCaç 461, CCaç 675 e CCav 487.

Continua…
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Fontes consultadas:
 Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002); pp 253-254.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-569.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 2; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-304.

Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

21ABR2019.
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Guiné 61/74 - P19709: Estórias avulsas (94): Coitado do meu primo Lino... ou um regresso às memórias da Páscoa da minha infância (Valdemar Queiroz)



A Casa da minha aavó Maria (que data de 1976)


A casa da minha avó Maria, em ruínas (1994)


Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem do  Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70]:


Date: sábado, 20/04/2019 à(s) 01:27
Subject: Coitado do meu primo Lino


Quando chega Páscoa,  lembro-me sempre do meu primo Lino. Coitado do meu primo Lino.

A casa da minha avó Maria ficava à borda da estrada principal. Havia pouco espaço para espalhar rosmaninho e alecrim, no chão, até à estrada, mas o sacristão sabia que a casa da minha avó Maria queria receber a Cruz do Senhor na visita da Páscoa e que lá haveria umas moedas para a côngrua do senhor padre da aldeia.

A minha avó Maria já tinha posto numa pequena salva de prata uma moeda de 25 tostões (2$50) coberta com um paninho bordado. Uma pequena importância guardada para este dia que o meu primo Lino sabia lá se encontrar e antes que o sacristão a recolhesse ele tirou-a e escondeu no bolso do blusão.

O sacristão estranhou não haver nenhuma oferenda e nem sequer moedas na salva de prata e, embora, tivesse um olhar interrogativo para minha avó, permanecemos ajoelhados de olhos cerrados..

Pouco tempo depois, já o meu primo Lino corria para a Loja do tio Pinto, pra comprar lápis de chocolate e uns rebuçados de bonecos da bola. Pagar seis tostões ($60) com uma moeda de 2$50 seria a mesma coisa que agora pagar um café com 20 €, com a diferença que o Lino teria muita dificuldade em ter uma moeda de vinte e cinco tostões para gastar em guloseimas.

O tio Pinto não lhe vendeu nada e disse-lhe que queria falar com a sua avó. O Lino voltou, a correr, a pôr a moeda no mesmo sítio de onde a tirou.

A minha avó Maria nunca percebeu por o sacristão não ter levado a moeda. E eu nunca soube se o tio Pinto chegou a falar com a minha avó.

O meu primo Lino foi paraquedista na FAP e arranjou lá um problema com pena de prisão. Fugiu para as Ilhas Canárias e alistou-se na Legião Espanhola. Já lá está há mais de 50 anos.

Coitado do meu primo Lino, nunca mais soube dele.

Valdemar Queiroz
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19549: Estórias avulsas (93): Histórias do vôvô-Zé - As nossas andorinhas (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19708: Manuscrito(s) (Luís Graça) (154): Viva o compasso pascal em visita à Tabanca de Candoz


Tabanca de Candoz. Foto de LG (2011)




Viva o compasso pascal
na visita à Tabanca de Candoz!

Mais um ano, mais uma visita
Deste compasso pascal,
É uma festa bem bonita,
E que nunca é igual. 

E que nunca é igual
Logo vem outro, se falta algum,
Renova-se o pessoal,
Que aqui somos todos por um.

Que aqui somos todos por um,
Na alegria ou na tristeza,
Na fartura ou no jejum,
Cabendo todos à mesa.

Cabendo todos à mesa,
Onde não falta o anho assado,
Nesta casa portuguesa,
Onde honramos o passado.

Onde honramos o passado,
O presente e o futuro,
Se alguém está adoentado,
Tem aqui um porto seguro.

Tem aqui um porto seguro,
Damos valor à amizade,
Às vezes o rosto é duro,
Mas o resto é humildade.

Mas o resto é humildade,
Viva o compasso pascal,
E a nossa fraternidade!... 

Boa Páscoa, pessoal! 

Boa Páscoa, pessoal,
Boa saúde e longa vida,
À Ti Nitas, em especial,
Que nos é muito querida!

Quinta de Candoz, 
segunda feira de Páscoa,

22 de abril de 2019
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19603: Manuscrito(s) (Luís Graça (153): Lembrando hoje o pai, o meu, o teu, o nosso pai...

Guiné 61/74 - P19707: (In)citações (129): Feliz e santa Páscoa, com um abraço transatântico do nosso camarada da diáspora luso-americana José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73)

1. Mensagem do nosso camarada da diáspora luso-americana José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de ontem, di 21,  16h49:

Caros a migos e familiares,

Ao longo dos anos, nos trilhos das nossas vidas, fomos presenteados com o nosso crescimento para a vida de homens, com a formação das nossas famílias, com a responsabilidade de sermos pais, com o dever sublime de transformarmos a sociedade em que vivemos num mundo melhor.

Nesta quadra Pascal podemos recordar os nossos primeiros passos na Mata dos Madeiros, a manifestaçåo de solidariedade e amizade ao Fur Mil Fernando Silva pelo seu casamento, o acidente do nosso malogrado Manuel Veríssimo de Oliveira. E muito mais!

O Cordeiro Pascal, símbolo da Páscoa, a mais importante manifestação de fé no quadro liturgico das famílias açorianas, porventura de Portugal, não se come nem se bebe. Ele sente-se com a alma, com o coração. Para os crentes Deus é a Vida a Ressurreição.

Nós podemos estar desencorajados pela violência que grassa um pouco pelo mundo, pela falta de cuidados ambientais que atingirão a vivência das gerações futuras. Também podemo-ns sentir desencorajados pela falta de diálogo nos diversos sistemas políticos, pelo divisionismo que isso cria entre os cidadãos, pela separaçåo volenta das famílias, pela fome que graça pelo mundo. Que dizer das mortes provocadas pela droga, flagelo que mais atinge a nossa juventude? Mas nem tudo está perdido. Esperança da Vida, Jesus ressuscitou dos mortos.

Na Ressurreição de Jesus temos o exemplo que tudo é possível se soubermos ser fortes nos únicos direitos que Ele, na sua infinita bondade, nos legou: amar, respeitar, cumprir.

Que todos vós tenham uma Feliz e Santa Páscoa.

Abraço transatlântico,

José Câmara
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P19706: Notas de leitura (1171): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,

Prossegue a análise da tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte.

Como se recordam, Benjamim Pinto Bull foi o único dirigente nacionalista recebido por Salazar, Pinto Bull era o líder da FLING, organização que aceitou fazer parte de um governo de transição, em 1963. Como escreveu o embaixador Luís Gonzaga Ferreira, cônsul em Dakar, montou-se a Operação Camaleão, Silva Cunha e Pinto Bull, entre outros, estavam em Bissau, a aguardar uma declaração pública de Salazar sobre política ultramarina. Para surpresa de todos, Salazar definiu uma linha de intransigência onde não sabia uma governação com a FLING.
São coisas da história.

Pinto Bull veio a morrer em Lisboa de acidente rodoviário.

Um abraço do
Mário


Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2)

Beja Santos

Fausto Duarte pertence à vasta lista de escritores, divulgadores e investigadores injustamente esquecidos. Homem de uma cultura medularmente europeia, orgulhava-se das suas origens cabo-verdianas e vai revelar-se como o nome mais sonante da literatura colonial guineense e o investigador e divulgador de mérito das coisas guineenses. Continuamos a abordar a tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte.

Torna-se conhecido em Portugal quando o seu romance "Auá" ganha o primeiro prémio da literatura colonial, em 1934. Como se disse em texto anterior, o tema do romance é um conflito permanente entre duas civilizações, conflito que é protagonizado por Malan, um jovem Fula que trabalha em Bissau como criado, e Abdulai que permanece enraizado nas suas tradições e convicções. Malan é um admirador de tudo quanto fazem os brancos e orgulha-se de oferecer a Auá novas lembranças compradas nas lojas frequentadas pelos brancos, em Bissau, como sejam lenços e pulseiras, e não se esquece de juntar folhas de tabaco e cola para conquistar a simpatia da família da Auá. A vestimenta de Malan é também esclarecedora: “Tinha na sua bagagem um belo par de sapatos que o administrador lhe oferecera. Sobre a sua camisa, pendia um amuleto em prata, contendo um versículo do Alcorão”. Em Fausto Duarte pareciam convergir estas suas forças, a Europa e África, trata-se de uma tensão que perpassa toda a sua obra literária.

Voltando a Auá, todos os Fulas da tabanca criticam Ançatu que, desprezando a lei muçulmana, aceitou não somente viver com um funcionário de alfândega, um português branco, e de ter dele um filho. Auá também vive dividida, sente o choque das duas civilizações. Dividida entre Abdulai, jovem Fula que ficou na aldeia e que lhe oferece presentes genuinamente africanos; e Malan, seu noivo, que lhe envia lembranças fabricadas pelos brancos. E Fausto Duarte escreve: “Sentia uma invencível inclinação por Abdulai, um moço Fula que habitava ali próximo, em Saré-Boilela, e que lhe trazia mel de abelhas bravas e leite coalhado em boas cabaças… Era, senão com desdém, pelo menos com indiferença que, de vez em quando, recebia de Bissau alguns presentes enviados por Malan, que se mesclara no convívio permanente dos brancos do governo”. Malan irá novamente trabalhar em Bissau, quando regressa à sua aldeia para se casar é já em desenraizado, um abismo separa os seus valores dos da aldeia, então decide emigrar para Dakar. Aqui sente o aguilhão da nostalgia.

Aquilino Ribeiro, no seu prefácio, exalta o romance Auá, é fulminante: “Está dito, o primeiro que viu a Guiné foi Nuno Tristão, o segundo o autor de Auá”. Na introdução, muito didaticamente, Fausto Duarte contextualiza a cultura dos Fulas à luz dos conhecimentos da época e trata o seu livro como um documentário etnográfico, um novo capítulo de psicologia indígena. Mas o contraste vem na escrita, Fausto Duarte é um homem de cultura europeia com uma testa da sua prosa inequívoca:

“Era meio-dia quando a camioneta chegou a Nhacra. As águas tranquilas do Impernal acariciando o debrum da paisagem dormente, anquilosada pelo sol adusto, áscua viva que se reflectia na opacidade plúmbea dos céus, espreguiçavam em torcicolos ocultando-se entre o tufo emaranhado dos mangais. A vazante tinha posto a descoberto a orla mádida e lamacenta do rio, e uma variedade abjecta de moluscos deslocava-se sobre a terra lodosa, aquecendo-se ao calor estuante de Novembro”.

Prosa mais naturalista não pode haver. A crítica literária do tempo embandeirou em arco com o romance Auá: “O primeiro grande romance português inspirado em motivos coloniais”; “A arquitectura da obra é um sólido equilíbrio e a cena do conselho dos anciãos coroa-se como cúpula magnífica”; “O escritor que entre nós melhor sabe traduzir o profundo mistério da alma negra”.

O romance conheceu três edições e hoje praticamente ninguém fala dele.

Passemos agora para a conferência proferida por Fausto Duarte no Porto, no âmbito da primeira exposição colonial, em 1934. Começa por referir a atitude dos escritores da sua época face a África e prossegue com comentários sobre a música dos negros, centrando-se na morna, dança tipicamente cabo-verdiana e aqui procura retratar o cabo-verdiano:

“Como poeta e músico, o cabo-verdiano é um eterno apaixonado. O amor, ponto de convergência desses dois estados de alma é tema que não cansa e antes rejuvenesce em cada morna, vai de aldeia em aldeia, surpreende epidermes virgens, sobe à cumeeira dos montes, transpõe o mar e abraça as ilhas no desejo insatisfeito de unir corações enamorados. E para fugir a uma vida de resignação e renúncia, o cabo-verdiano, poeta e místico, artista de provocação, baila e canta”.

A novela “Um crime” foge ao contexto africano. Versa o regresso de um prisioneiro da I Guerra Mundial, Hans Weiss, regressado do exílio da Sibéria. Perdeu toda a sua família. É num grande estado de revolta que comete um crime.

“O negro sem alma”, datado de 1935, publicado na Livraria Clássica Editora, é o regresso ao conflito entre duas civilizações. Bubacar Djaló recusa as pretensões de Songá à mão da sua filha Aminienta, porque Songá não é Mandinga. No final, vamos ser confrontados com a vitória dos princípios africanos sob os princípios ocidentais.

“O negro sem alma” também aborda o exílio e a separação. Momo deixa a sua aldeia no Tombali, atravessa a fronteira e entra na Guiné Francesa para vender dois sacos de arroz. Vive-se em plena I Guerra Mundial e todos os indígenas são apanhados para marchar em direção às trincheiras ocidentais. Momo, na confusão, é mobilizado à força, temos aqui um novo exílio forçado. Vemo-lo num campo de concentração com o uniforme soldado francês, irá combater nas trincheiras, será condecorado. No regresso, assistimos a novo choque de valores. Momo regressou com modos afetados, maneirosos, afrancesados. Atrai a curiosidade dos seus compatriotas, mas é nítido que há desenraizamento.

Antes de regressar à Guiné, Fausto Duarte escreve em 1936 novo romance, "Rumo ao degredo", publicado pela Guimarães Editora. Põe a seguinte dedicatória: “À minha mulher e ao meu filho”. Manuel da Gaita, inocente, é condenado ao exílio. Regressa 15 anos depois à sua aldeia, no Ribatejo. João Gaspar Simões, então sumidade da crítica literária, não foi meigo com Fausto Duarte, diz que "Rumo ao degredo" é um romance que ficou a meio o que devia ser. “Onde seria necessário pôr à prova o talento do romancista, Fausto Duarte sucumbiu”.

Veremos no próximo texto referências as seus últimos trabalhos literários e à sua atividade no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

(Continua)


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Notas do editor:

Poste anterior de 15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19682: Notas de leitura (1169): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série  de 19 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19697: Notas de leitura (1170): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 21 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)

A Galeria dos Meus Heróis > Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"


por Luís Graça 




1. A guerra. Essa coisa tão primordial que é a guerra. Que estaria inscrita no teu ADN, a acreditar nos sociobiólogos para quem o  comportamento humano seria geneticamente determinado.

A guerra é a continuação da evolução por outros meios, dirão os entomólogos, especialistas em insetos sociais,  para quem a morte de um ou de um milhão de formigas ou de seres humanos, é-lhes totalmente indiferente. Desde que triunfe o ADN, um projecto de ADN musculado,uma "raça" nova e superior...

Para ti, a guerra é a aprendizagem da morte. Aos vinte e dois anos. É a inocência que se perde para sempre, ao ver morrer pela primeira vez um homem. Como o teu camarada, Alfa Baldé, que morreu a teu lado. A guerra... é o impossível luto. É a descoberta do mal absoluto.

Fight or flight. Luta ou foge. Não precisaste de fugir nem de lutar. Recusaste o egoísmo genético. Recusaste a lógica absurda de matar ou morrer. Recusaste o cinismo. Recusaste a G3 em posição automática. Recusaste a fria e calculista resignação com que se juntavam e amortalhavam os cadáveres seguintes. E se contavam nas paredes da caserna os dias que faltavam para a peluda.

Cinquenta anos depois, meio século, dois terços da esperança média de vida de um homem do hemisfério norte, vens dizer as palavras que ninguém disse ao Alfa Baldé, no  grotesco enterro que lhe fizeram em Sinchã qualquer-coisa, a sua terra natal.

2. Descansa em paz, Alfa Baldé, meu herói, soldado do 2º pelotão da minha companhia, de tropa-macaca, a minha companhia, os meus camaradas, o meu bando de primatas sociais, territoriais, predadores, filhos das mais desvairadas gentes.

Fazíamos parte da nova força africana, de Herr Spínola, o prussiano, como eu gostava de chamar-lhe, ao nosso Comandante-Chefe. Lembras-te ainda do "Caco Baldé" e da sua voz de ventríloquo ? Tinha o teu apelido, e usava um monóculo, ridículo...

Não, não tens que te lembrar, não ligues a esta minha provocação, são outros contos, outras estórias, outras lendas e narrativas, outros ajustes de contas com as nossas doridas memórias.

Descansa em paz, Alfa Baldé, debaixo do poilão secular, na tua tabanca, no chão fula, belíssimo poilão de uma triste tabanca fula, cercada de arame farpado, trincheiras e valas de abrigo, por causa do Mamadu Indjai, o Terrível, que jurou pôr o teu "chão" a ferro e fogo.


Julgo que eras do regulado de Badora. Ou seria Cossé, lá para os lados de Galomaro? Desculpa-me ter esquecido o nome da tua tabanca. E a cara dos teus filhos. E o rosto das tuas mulheres, agora órfãos e viúvas, sozinhos neste mundo. Ou talvez não: ficaram a cargo do teu mano mais novo, seguindo os usos e costumes do teu povo.


Apercebi-me que os teus campos estavam tristes e inférteis. Já não davam o milho painço nem o fundo, nem a mancarra, nem a noz de cola, nem o arroz de sequeiro. Os homens partiram para guerra. E os mais velhos eram milícias, na tua tabanca organizada em autodefesa. A guerra era agora a principal ocupação de todos. Compravam o arroz ao Rendeiro com o "patacão" da guerra. Nem os "djubis" guardavam já os campos de mancarra, das investidas dos macacos-cães. De Mauser em punho, que a milícia agora usava a G3.

Alguns dos jovens guerreiros, como tu, voltavam agora numa caixão de pinho. Restavam os macabros "jagudis" poisados no alto da morança dos mortos, cheirando a morte, pressagiando a desgraça.

Setembro de 1969. Operação Pato Marreco. Ou era a Ganso Pimpão ? Ou a Pavão Real ? Que importa, agora, o nome de código da operação!... Morreste em linha. Aprumado como o teu poilão. No assalto a um aquartelamento temporário do IN ("barraca", diziam eles), próximo do Poindom / Ponta do Inglês, o "matadouro" do Xime.

IN ? Que estranho termo ou expressão… Uso-o por força do hábito, por comodidade, por lassidão, por economia de análise. IN, abreviatura de inimigo. Para ti, era o "turra". Para muitos de nós, "tugas", era o "turra".

Curioso, nunca soube a tua idade, mas eras dos mais velhinhos, dos que não tinham idade bem definida. Não tinhas bilhete de identidade de cidadão português. Eras um fula preto, um fula forro, não creio que fosses futa-fula. Mas eu levei-te a enterrar na tua aldeia, mais os nossos camaradas do 2º pelotão, fomos dizer-te o último adeus. Com honras militares, tiros de salva, e a bandeira verde-rubra dos "tugas" por cima do teu caixão. De pinho. Do verde pinho de Portugal. Talvez do pinhal de Leiria, que ardeu no verão passado.

Nem isto te deixaram fazer à maneira dos teus. Afinal, eras um soldado, regular, do exército português. Colonialista, dizia a "Maria Turra", na rádio lá de Conacri... Cumprias o teu serviço militar obrigatório, como qualquer cidadão português. Eras do recrutamento local. 


Todos os exércitos têm normas, regulamentos, protocolos... O teu enterro fez-se segundo a NEP não sei quantas... Mas tenho uma dúvida: não chegaram a chumbar o teu caixão, não houve de esperar pelo "coveiro" de Bissau, fomos no "gosse gosse", a caminho da tua aldeia, em dois ou três Unimog, com medo que o teu cadáver começasse a cheirar mal. E o "pavão real" do teu "alfero", ia à frente, de peito feito ao vento, pela estrada fora... Na brincadeira, chamávamos-lhe também o "Pimpão"... E ele até nem desgostava do epíteto...Fez um discurso patriótico, que ninguém terá entendido, crianças, mulheres e velhos da tua aldeia: "Honra e Glória ao bravo soldado Alfa Baldé, que deu a vida pela Pátria!"...

Portugal ? Ainda te lembras ? Os senhores que vieram do Norte e do lado mar ? Não, não vieram pelo deserto. Esses, foram outros, árabes, bérberes, tuaregues, mandingas do reino do Mali, abrindo as rotas subsarianas do ouro e da escravatura. Depois é que vieram os "tugas" e os outros europeus... Os teus antepassados foram escravizados, muitos foram parar ao Novo Mundo, aos engenhos de açúcar e às plantações de algodão. Outros, quiçá, trabalharam nos arrozais do rio Sado. Ou eram escravos domésticos em Lisboa.

Não, não tens que saber de geografia. Nem de história. Nem de geopolítica. Nem de antropologia. No sítio onde tu agoras moras, debaixo do teu poilão, já não te servem para nada os conhecimentos de geografia, história, geopolítica ou antropologia. Só espero que algum senhor da guerra, do teu país, não venha um dia destes autorizar o abate do teu poilão, a troco de um punhado de iuanes, o patacão chinês.  Sabes, dizem que estão a dar cabo das florestas da tua terra, da tua África. O deserto do Saara já espreita às portas do "chão" felupe, mais a Norte. Os "madeireiros" não têm pátria nem ideologia.

Bolas!, mas eu, mesmo ao fim destes anos todos, eu deveria recordar-me do nome da tua aldeia, no "chão" fula. Passámos lá uma semana ou duas, com a nossa secção, um mês antes de morreres. Já não te lembras ? Creio que a tua tabanca, pelas notas,amarelecidas,  do meu diário, ficava no limite do regulado de Badora, a sul, já a confinar com o regulado do Corubal.

O teu nome, esse não esqueci, Alfa Baldé, apontador de dilagrama, o melhor da companhia. Esqueci foi o lugar onde nasceste, talvez Sinchã ou Saré qualquer-coisa, mas não faz mal.

Passei lá uns belos dias, contigo e a nossa secção. Felizmente que o Mamadu Indjai não nos importunou nessa altura, mas andou a pôr o regulado do Corubal a ferro e fogo, como ele jurou, cumpriu e fez cumprir. Mamadu Indjai, um senhor da guerra do PAIGC, que acabará também miseravelmente fuzilado nas matas do Boé, depois de atentar contra a vida do seu chefe, o "pai da Pátria"... Mas era um "cabra" valente, "herói da luta de libertação"...É assim, querido Alfa, todas as revoluções devoram os seus filhos: Cabral, Indjai, Mané, 'Nino'... Ontem, como hoje. Na tua terra ou na minha.

Lembro-me que o chefe da tua tabanca deu-me uma morança e arranjou-me uma espécie de "impedida", que tu me apresentaste como sendo tua "irmãzinha". Vinha-me acender o lume à ao fim da tarde. (À noite apagágavmos todas as fogueiras, por causa dos "snippers" do Mamadu Indjai. Estava em vigor o "black out" total. Até o cigarro era proibido.)


Não falava uma única palavra de português, a minha "impedida". Não cheguei a perceber qual o seu papel naquele filme. Creio que era uma das quatro mulheres do chefe das milícias. Já devia ter sido mãe, já não tinha a "mama firme" das bajudas. Mas foi amorosa e gentil comigo. Tratei-a sempre, delicadamente, como uma "irmãzinha", tua, e minha. Nunca esquecerei a massagem que me fez à coluna, com mezinhas tradicionais, depois de uma estúpida queda que eu dei na cambança de um riacho que corria ali perto, quando fomos os dois à caça, tu e eu.

Pude também, na ocasião, aperceber-me como eras um exímio caçador, e um terrível "snipper"... Das lebres às galinhas do mato, dos javalis às gazelas, não falhavas um tiro, emboscado na orla da bolanha, ao lusco-fusco. Eu, que sempre detestei a caça, acompanhei-te pelo menos uma vez, ao fim da tarde.

Mas o que agora queria dizer-te, e é isso que importa, é que chorei por ti, confesso que chorei por ti, que morreste a meu lado,e que levavas um prisioneiro, teu irmão, pela mão. E tu que nem sequer eras meu irmão, nem grande nem pequeno. Eras apenas meu camarada de armas. Nem tinhas a mesma cor de pele. Nem a mesma religião. Nem a mesma língua. Nem talvez a mesma pátria. Nem o mesmo continente. Não comias carne de porco. Nem bebias "água de Lisboa". Eras apenas um guinéu, soldado de 2ª classe, exímio caçador e o melhor apontador de dilagrama da companhia. E o primeiro a morrer em combate, "vítima de fogo amigo", que estranha ironia!

Ganhavas 600 pesos de pré, o equivalente a um saco de arroz por mês para alimentar a tua família, mais 24$50 por dia, por seres desarranchado. 

Não eras homem de grandes falas, e o teu léxico em português era bem escasso para a gente poder manter um diálogo aprofundado sobre a tua vida e a do teu povo. Eu fazia muitas perguntas, às quais nem sempre sabias responder.

Para mim, eras apenas um homem, da subespécie Homo Sapiens Sapiens. A única que chegou até aos nossos dias. E que, convém recordá-lo, nasceu na Mãe África. Somos todos descendentes de africanos que acabaram por colonizar e povoar o planeta.

Tu foste o primeiro homem, género Homo, espécie Homo Sapiens,  subespécie Homo Sapiens Sapiens, que eu vi morrer a meu lado. Nunca mais chorei por ninguém, por mais nenhum morto, acredita. Chorei por ti, Alfa Baldé. Chorei de raiva, de impotência e de dor.

Nascemos meninos, tu e eu, mas fizeram-nos soldados. Azar o meu e o teu, por termos nascido no sítio errado, no tempo errado.
Imagino-te "djubi", à volta da fogueira, na morança do marabu ou do "cherno" da tua tabanca, decorando o Corão. Uma das cenas mais lindas que eu trouxe da tua tabanca, e que eu guardo na minha memória, os "djubis" à volta da fogueira, ao fim da tarde, soletrando as letras das tabuínhas em árabe. 

E tu, seguramente, nunca me viste "menino de coro", a cantar, de sobrepeliz branca, nas cerimónias da Semana Santa na igreja matriz  da minha terra, "reconquistada aos mouros", em 1147, que eram tão seguidores de Alá como tu e os teus.

Lembro-me de ainda teres querido aprender as letras dos "tugas", o alfabeto latino, para poderes ser soldado arvorado e um dia chegares a 1º cabo como o Suleimane Baldé, fula-fula, ou o Vitor, que era mancanha de Bissau, o Lopes, que era cabo-verdiano da ilha da Brava. Mas a nossa atividade operacional era intensa e muito pouco tempo sobrava para poderes frequentar a escola, o posto escolar militar, do furriel Veloso. Além disso, tinhas uma família, duas mulheres, dois filhos... Chegavas cansado e esfomeado à tua morança, fora do quartel onde estávamos sediados.

3. E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto por um dilagrama dos nossos. Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém salvou a honra da companhia. Alguém safou o teu/meu comandante de uma porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara, nas nossas caras. Um dilagrama dos nossos. O teu dilagrama, empunhado pelo nosso "alfero"... 


Não, não sei o que lhe deu, ao "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, que estava à guarda do Mamadu Camará.

Não posso julgá-lo, era um meu superior hierárquico, meu e teu, nosso comandante de pelotão. Mas só sei que vai morrer na cama, ele (e o nosso capitão...), sem qualquer remorso na consciência "por te ter morto", e ter provocado vários feridos graves, quando estávamos em linha no assalto a uma "barraca" dos "turras"... 

"Homicídio involuntário" ? Não, "acidente com arma de fogo", é mais indolor... Muito provavelmente vai morrer em paz e contar aos netos que foi um "herói de guerra"...

"Acidente com arma de fogo" (segundo o relatório elaborado pelo capitão...) no auge da batalha, quando avançávamos em linha, no assalto ao acampamento do IN, levando tu pela corda o teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro, que te fora confiado à última hora. Porque o teu posto era o de soldado apontador de dilagrama. E eras o melhor da companhia. O que se passou na cabeça do "alfero" que empunhou indevidamente o teu dilagrama e largou-o no ar quando, inadvertidamente,  saltou a cavilha de segurança ?... Podia ter-nos morto a todos!...

Ainda mais jovem do que tu, o teu "turra" era um jovem mandinga, que apanháramos a norte do Enxalé, tão crente como tu, tão observador dos preceitos corânicos como tu, meu querido "nharro". (Desculpa tratar-te assim, sei que o termo tem hoje uma conotação racista, mas era coloquial entre nós, "tuga" e "nharro" eram usados sem sentido de ofensa...)

Rebentou, de imediato, a fuzilaria quando o dilagrama explodiu nas nossas caras. A nossa secção já não pôde avançar mais. Tu tiveste morte quase instantânea, ainda balbuciaste umas palavras em fula, que eu mal consegui ouvir e muito menos fixar. Quando chegou o 1º cabo auxiliar de enfermagem, para te estancar o sangue e pôr o soro nas veias, já era tarde demais... Um estilhaço varara-te o coração. O "turra" mandinga, esse, ainda sobreviveu e foi depois evacuado de helicóptero com mais alguns feridos nossos...

E agora, Alfa Baldé, que foste poupado à humilhação da "derrota" e não viste o teu país sentar-se de pleno direito à mesa do mundo... Que farias tu com esta independência e com esta bandeira, a da Guiné-Bissau, contra a qual lutaste sem querer, sem saber, sem poder ?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres ? E os teus netos ? E os homens grandes da tua tabanca de Badora ? E os líderes do teu povo que te obrigaram a combater ao lado dos "tugas" ?

Herr Spínola, o homem grande de Bissau, esse já morreu há uns largos anos atrás, ainda no século passado. Há vinte e tal anos.

Não lês os jornais, não chegaste a aprender o alfabeto latino e a juntar as letrinhas e a poder ler o livro da 3ª classe, com a torre de Belém ao fundo: "Esta é a minha pátria amada"…

Pois é, o homem grande de Bissau morreu, não de morte matada, como a tua, ou a do Amílcar Cabral ou a do 'Nino' Vieira, mas de acordo com a lei natural das coisas, com 86 anos. Soubeste, com certeza, da morte do Cabral e do 'Nino'. Ou talvez não.

Quanto ao teu régulo, sei que foi miseravelmente fuzilado na parada de Bambadinca, o poderoso régulo de Badora, tenente de milícias, Mamadu Bonco Sanhá, que havia trocado o cavalo branco da gesta heróica do Futa Djalon, por uma prosaica motorizada japonesa de 50 centímetros cúbicos... 

Não sei se foi oferta do Schulz ou do Spínola (que chegou à tua terra em meados de 1968). Pois o Mamadu Bonco Sanhá, dizia-se, era dono de centenas de cabeças de gado e de um harém, mas era mentira, de cinquenta mulheres, uma em cada aldeia de Badora… Fantasias dos "tugas" que pouco ou nada sabiam da história e da cultura do teu povo.

Também se dizia, mas era mentira, que o puto Demba era filho dele,o Demba e mais outros "djubis" da nossa companhia. O Demba já morreu, também, o puto Demba, não sei se sabias. Era de Taibatá e andou fugido pelo Senegal e por todo o Norte de África até chegar a Portugal. Acabou por morrer cá, na minha terra, no hospital, o terminal da morte.

Hoje os heróis do passado sucumbem sob o peso das cruzes de guerra. Ou pedem esmola nas ruas de Bissau, tal como os teus filhos e netos. Ou morrem de desespero e insolação às portas do templo da deusa Europa, em Ceuta, em Melilha, em Lampedusa...

Que voltas o mundo deu, meu soldado, desde esse dia já distante em que a tecnologia da guerra ou a lotaria do ADN ou a insensatez de um oficial "tuga" te ceifou a vida.

Porquê tu, meu herói, três meses depois de jurares bandeira, em Bissau, na presença do general Spínola, e te comprometeres, por tua honra, a defender uma pátria que, afinal,  não era a tua, até à última gota do teu sangue ?

E do "turra" mandinga não tenho notícias, se é isso que queres saber, mas a princípio duvidava que ele tivesse podido sobreviver, aos graves ferimentos do teu dilagrama, mal manejado pelo "alfero", comandante do nosso pelotão. Mas parece que sim, safou-se pelo menos daquela vez: alguém o viu no hospital, em Bissau, ainda no 4º trimestre de 1969. Foi tratado no hospital como um dos nossos, e o Spínola deve ter mandado libertá-lo, depois de jurar arrependimento e prometer nunca mais pegar numa Kalash ou num RPG 2.

Afinal, a avaliar pela idade dele, mais novo do que tu, devia ter sido arrebanhado pelo Mamadu Indjai, o Terrível.

E agora deixa-me dizer-te, amigo,à laia de despedida: não sei se um dia ainda terei forças para voltar à tua terra, ao teu chão. Já estou a ficar velho demais para poder viajar para esses sítios de África. Mas se porventura o fizer, gostaria de perguntar pela tua aldeia, e de procurar-te e de ter tempo para conversar contigo, só tu e eu, debaixo do teu poilão. Nunca mais lá voltei, à Guiné, à tua terra.  Ando a ver se ainda arranjo uns restos de coragem e de dignidade. Tenho uma dívida para contigo.
 
© Luís Graça (2019).

Última vetrsão: 12/6/2023

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19683: A galeria dos meus heróis (27): Éramos todos bons rapazes!...(Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19704: Blogpoesia (616): "Melaço", "Os astros", "Fugazmente..." e "Variedade...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Melaço

Com mel e aço se faz unguento, um espaço de doçura.
Tudo depende do jeito de se ser.
Quem resiste ao pão e à colher da sopa.
Frutos da natureza.

A sapiência é o que fica da arte de aprender.
Tudo está ao nosso alcance. Apenas damos nosso esforço.

Quem não se esforça fica preso para sempre à cepa.
Custa subir a escada. Mas encurta a distância e alarga os horizontes.
A amizade se conquista com a doçura dos nossos gestos e sorriso.

Berlim, 18 de Abril de 2019
dia de sol radioso
8h00m
Jlmg

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Os astros

Miríades de seres gigantes preenchem o espaço infinito do céu.
Nos circundam vertiginosos. Num silêncio sepulcral.
Descrevem rotas helicoidais, com a precisão milimétrica dum relógio ideal.

Que sabemos nós o que e para que são?
Deles recebemos o dia e a noite.
As estações do ano e as marés do mar.
A luz, a chuva e o vento são seus instrumentos para, em orquestra, tocarem a sinfonia da nossa existência.
Seu maestro é o Criador...

Berlim, 17 de Abril de 2019
7h43m
Jlmg

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Fugazmente...

Como um cometa, a vida passa vertiginosa e fugaz.
Deixa um rasto, umas vezes brilhante, outras negro, conforme a chama que a faz girar.
Se do mal, o traço é espesso e preto.
Se do bem, brilha como uma estrela e, como o sol, fica a iluminar.

O mundo seria um céu de estrelas se nossas vidas fossem um jardim de flores.
Não haveria fome e guerra em parte alguma.
Imperaria a justiça.
O mundo seria um reino de paz e alegria.
Até os anjos nele quereriam ficar...

Berlim, 16 de Abril de 2019
8h15m - Lindo dia de sol
Jlmg

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Variedade...

A riqueza da natureza está na variedade e abundância.
Tantas espécies de seres povoam a terra.
Vêm de sementes tão pequenas e parecidas.
A crosta que veste a terra é feita de material, aparentemente morto e inerte.
Vendo-o a fundo, se depara um inextricável movimento de partículas orquestradas, movidas por energia oculta.
As plantas, terrestres e aquáticas, todas se diferenciam na forma e no tamanho.

Miríades de semoventes espalhados pelo mundo.
Desde os minúsculos aos extintos dinossauros.
Todos, numa dependência incontornável da seiva e da luz do sol.

E o homem, de natureza híbrida, comungando do natural e do espiritual.
Dotado da capacidade de transformar e interferir o ambiente circundante.
Muitas vezes, com efeitos muito nefastos.

Como não um fim sem um começo, onde estará o Criador?...

Berlim, 15 de Abril de 2019
8h11m
Dia de sol
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de14 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19678: Blogpoesia (615): "Serra do Pilar", "Baladas perdidas" e "A leveza do ar", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19703: Parabéns a você (1608): António Branquinho, ex-Fur Mil Inf do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor:

Último poste da série de 20 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19699: Parabéns a você (1607): António Joaquim Oliveira, ex-1.º Cabo Quarteleiro da CART 1742 (Guiné, 1967/69)

sábado, 20 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19702: XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande (5): De Nova Iorque com amor, em dia de aniversário de casamento: o João Crisóstomo é o 47º camarada a responder à chamada da mãe de todas as Tabancas... E aproveita para ir, no dia 18 de maio, ao almoço convívio da sua companhia, a CCAÇ 1439 (Enxalé, Portogole e Missirá, 1965/67)... Com ele, são já 47 os inscritos para a Operação Monte Real 2019...


João Crisóstomo, nosso camarada da diáspora (EUA, Nova Iorque), ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), casado com a Vilma (, aqui o casal, em 2013, "just married"), e destacado ativista social luso-americano (de causas célebres como As Gravuras de Foz Coa, Memória de Aristides Sousa Mendes, e Timor Leste)


1. Acaba de me telefonar o João Crisóstomo, de Nova Iorque. A dar um abraço festivo, e a pedir duas coisas ao Carlos Vinhal,  coeditor do blogue e membro da comissão organizadora do nosso Encontro Nacional:

(i) para o inscrever no XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande, Monte Real, 25 de maio próximo (*);

e (ii) e para lhe postar um "cartanito" de parabéns no dia do seu aniversário, a 22 de junho.


Hoje ele faz anos de casado (6º aniversário) e continua feliz com a sua Vilma, em Queens, Nova Iorque. E mandou mais um email a mais de 200 dos seus amigos. Aos mais próximos, fez (faz sempre) questão de telefonar.

Contrariando os seus planos de viagem para este ano, vai fazer um esforço por vir cá, a Portugal, para estar no convívio da sua companhia, a CCAÇ 1439, a 18 de maio, e aproveitar para ir a Monte Real, a 25... Nunca foi, até à data, ao Encontro Nacional da Tabanca Grande. Esta é a boa notícia. A menos boa, é que vem sozinho.

Estou muito feliz, como seu amigo e camarada, e como editor do blogue, por voltar a estar com ele, e para mais no encontro anual da nossa Tabanca, que é a mãe de todas as tabancas. Daí a razão de ser desta notícia...


Já o inclui na lista dos inscritos no nosso Encontro Nacional. São já 47 os inscritos. Disse-lhe que também tencionava ir, a 18 de maio, ao encontro da rapaziada da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/67), encontro que está a ser organizado pelo Manuel Calhandra Leitão ("Ruço"), que vive na Achada, Mafra. (Telem. 938 028 152). Foi 1º cabo, apontador de morteiro 81. Mais um herói desconhecido da guerra da Guiné. Já lá fui a casa dele, há uns meses atrás. É um grande camarada que está a precisar do nosso carinho e apoio, numa fase de doença que ele felizmente está a superar com grande dignidade, lucidez e coragem.  Tinha acabado de falar com ele ontem ou anteontem e ambos lamentávamos a anunciada ausência do nosso João Crisóstomo. 


Hoje tenho esta feliz notícia, que me chega à Tabanca de Candoz onde passo a Páscoa todos os anos.

Só espero que, atrás do João Crisóstomo,que vem de longe, do outro lado do Atlântico (!),  venha aí mais uma enxurrada de inscrições no nosso XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande, a realizar-se no próximo dia 25 de maio, em Monte Real, Leiria.

Camaradas e amigos, estamos a pouco mais de um mês da Operação Monte Real 2019. Está na altura de fazer os preparativos e dar ordens ao Carlos Vinhal para vos pôr na lista. E cada inscrito deve trazer mais um (, ou mais dois, três, quatro ou cinco, amigos, camaradas e/ou familiares). Precisamos de, pelo menos, uma centena de participantes. Email para inscrições:

Carlos Vinhal (Leça da Palmeira / Matosinhos):

carlos.vinhal@gmail.com



Entretanto, aqui ficam os nossos parabéns, de toda a Tabanca Grande, para o casal João e Vilma. Muita saúde, amor e longa vida, que eles merecem tudo.

2. Aqui fica a mensagem que ele mandou, por email, a alguns de nós, amigos e camaradas da Guiné:

Caríssimos…

“camaradas", “tabanqueiros , “amigos” e... não sei que mais “bons vocativos " poderei usar … : todos eles são apelidos saídos de um coração com saudades e com pena de não poder falar vos directamente ao telefone…

Acabei de falar com o Luís Graça e verifico que ele pôs logo a boca no mundo…. Fiquei contente , mas um pouco "sem jeito": como vou agora explicar o não ter pegado ao telefone a cada um de vocês também?... Não é “discriminação” ( palavra agora muito em uso, pelo menos aqui nos "States”…); simplesmente…não dá...

É que os contactos por telefone estão a ficar cada vez mais difíceis e, como não uso o Facebook,, sinto-me perdido para poder contactar a todos a quem gostaria. Como sabem "não dá” para falar a todos ao telefone, mesmo que todos tivessem a coragem de “apanhar " o telefone ; pois com tantas chamadas de desconhecidos a tentar "vender a banha da cobra”, não é de admirar que o ignorem por vezes. Eu faço o mesmo.

E se é verdade que alguns destes, aqui endereçados pelo Luis Graca, eu apenas conheço e convivi apenas por pouco tempo… isso não é desculpa: diz o ditado que "os amigos dos meus amigos são meus amigos também”. Um ditado que geralmente se prova válido. Enfim…

Felizmente que existe o e-mail. E aqui estou: Com saudades e muita amizade, este é credor da certeza de que não esqueço os que me são queridos. De coração os meus melhores votos nesta quadra festiva. E até 18 ou 25 de Maio, se Deus quiser.

Eu e a Vilma estamos bem, celebrando hoje o 6º aniversário do nosso casamento... Como o tempo voa Meu Deus!

João & Vilma
 



3. AS 47 INSCRIÇÕES NO XIV ENCONTRO NACIONAL DA TABANCA GRANDE (até à tarde de hoje)


Alfredo da Silva e esposa - Cabeceiras de Basto
António Acílio Azevedo e Irene - Leça da Palmeira / Matosinhos
António Estácio - Mem Martins / Sintra
António João Sampaio e Maria Clara - Leça da Palmeira / Matosinhos
António Joaquim Alves e Maria Celeste - Carregado / Alenquer
António José Pereira da Costa e Maria Isabel - Mem Martins / Sintra
António Martins de Matos - Lisboa
Armando Pires - Algés / Oeiras

Carlos Cabral e Judite - Pampilhosa
Carlos Pinheiro - Torres Novas
Carlos Vinhal e Dina - Leça da Palmeira / Matosinhos

Ernestino Caniço - Tomar

João Afonso Bento Soares - Lisboa
João Crisóstomo - Nova Iorque (EUA)
Joaquim Mexia Alves - Monte Real / Leiria
Jorge Canhão e Lurdes - Oeiras
José Barros Rocha - Penafiel
José Manuel Cancela e Carminda - Penafiel
José Pedroso e Helena - Sintra
José Ramos - Lisboa

Lucinda Aranha e José António - Torres Vedras
Lúcio Vieira - Torres Novas
Luís Graça e Maria Alice Carneiro - Lourinhã
Luís Paulino e Maria da Cruz - Lisboa


Manuel Augusto Reis - Aveiro
Manuel José Ribeiro Agostinho e Elisabete - Leça da Palmeira / Matosinhos
Manuel Lima Santos e Fátima - Viseu
Miguel e Giselda Pessoa - Lisboa

Rui Guerra Ribeiro - Lisboa

Vítor Ferreira e Maria Luísa - Lisboa

Guiné 61/74 - P19701: Os nossos seres, saberes e lazeres (319): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte III: Pequim e Macau, out / nov 1982

1. Foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. Viveu em Pequim e Xangai entre 1977 e 1983.  Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com 230 referências. Vive em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Chama-se António [José] Graça de Abreu, nascido no Porto em 1947.


2. Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (*)

por António Graça de Abreu



Pequim, 15 de Outubro de 1982
O António Graça de Abreu, em Pequim, na Praça Tianamen,
s/d, [c. 1977/83]

As autoridades chinesas deram-me o dia 26 de Outubro [de 1982] como limite da minha estadia na China. Vim com um visto de turista que já não pode mais ser prorrogado, a não ser que eu tenha uma actividade laboral que justifique a permanência no país. O embaixador Costa Lobo [ , embaixador em Pequim, entre 1982 e 1985], disse-me anteontem que tinha enviado, há dias, um telex para o Palácio das Necessidades, registando o meu pedido de trabalho na embaixada, mas que não obtivera qualquer reposta. Deve ser verdade.

A espada de Démocles suspende-se sobre a cabeça de um pacato cidadão das terras lusitanas. Ou talvez não, a espada pode cair mas, em vez do gume afiado ser de ferro, aparecerá revestido de uma lâmina de papelão. A ver vamos…

Ando preocupado, pois claro, como preocupado viajo pela vida há já não sei quantos anos. Sei que o ponto de viragem é a curva com mais curvas que encontrei desde que nasci. Todavia, fui eu que escolhi a estrada, sou eu que conduzo, acelero, travo, volteio. Os obstáculos no percurso são colocados por estranhos, não depende de mim o traçado da via, nem os buracos traiçoeiros, o piso escalavrado, os barrancos na berma, a lama ou a gravilha. Eu sabia que era sim e não tive receio da viagem. Agora só me resta continuar a conduzir e a manobrar. Que não me faltem forças para chegar vitorioso ao fim da prova mais dura de toda a minha vida. Como troféu, receberei não uma taça, não uma coroa de louros, mas uma mulher chinesa.


Pequim, 19 de Outubro de 1982

Estou com um pé no estribo para saltar para Hong Kong e Macau. Faço um pequeno balanço do que tenho escrito neste diário e há sempre mais vida do que a escrevinhação quotidiana mostra, as palavras saem inseguras, confusas, falhas de energia. Quando começarei a escrever bem, a escrever obra? Tenho montado o esquema, já levantei a arquitectura do romance a inventar “Chen Yuhua, a Menina de Jade”, mas não escrevo nada.

As minhas incapacidades capazes terão a ver com as raízes que mergulham de modo avassalador e profundo no húmus dos dias. Porém, em vez de árvore frondosa, nasce um caule enfezado e retorcido, rebentos e ramos que quase não se vêem.

Pequim, 20 de Outubro de 1982

Seis horas da tarde no bar do hotel Yangjing. Espero o Tian Hu, meu aluno na Faculdade de Línguas Estrangeiras de Xangai, colega da Yu Ping. O rapaz vive aqui na capital e chega para, no edifício ao lado do hotel, o Dian Hua Dianbao Dalou,  ou o seja, a Grande Central de Telefones e Comunicações, me ajudar na ligação telefónica para a Yu Ping, em Xangai, tudo falado em chinês para não levantar qualquer suspeita. 

O Tian Hu tem 23 anos, é arguto e esperto, e tem sido uma espécie de hongniang, a “casamenteira” na China clássica que costuma mexer habilmente os cordelinhos dos enredos pré-matrimoniais rumo à concretização de casamentos difíceis.


Pequim, 22 de Outubro de 1982


A Yu Ping chegou para se despedir de mim, pelos atalhos, via Hefei e Tianjin.

Fui buscá-la às sete da manhã à estação dos caminhos-de-ferro de Pequim. A festa nos nossos olhos, corações em alvoroço e entrámos no trolley 106, no percurso até ao Dongwu Gongyuan, o Jardim Zoológico. Não fomos ver leões, nem pandas, nem elefantes, tomámos logo o autocarro 332 até ao Yiheyuan, o Palácio de Verão. Não fomos ver o lago nem os aposentos da imperatriz Ci Xi, avançámos logo para o autocarro 333 até Wofusi, o Templo do Buda Deitado. Não fomos visitar o Mestre, nem acender pauzinhos de incenso no pavilhão dourado. Trocámos tudo pela caminhada pelo Jardim Botânico, até ao Vale das Cerejeiras, já em Xiangshan, a Colina Perfumada. Passámos pela casa onde Cao Xueqin (1715-1763) viveu e morreu, deixando inacabado o manuscrito do Hong Lou Meng 红楼梦,

O Sonho do Pavilhão Vermelho, uma fabulosa história que cruza amores possíveis e impossíveis e é o mais famoso romance de toda a literatura chinesa. Mais acima, escondido na vegetação, fica o Templo das Nuvens Azuis, numa curiosa arquitectura sino-indiana. Não era altura para mais visitas. Perto, num pequeno bosque de bambus, está o pavilhão com o ataúde de cristal destinado ao corpo de Sun Yat-sen [1866-1925], pai da República Chinesa. Uma saudação e continuámos o caminho.

Estamos agora em pleno Vale das Cerejeiras, deitados num leito de urze e folhas secas, escondidos na vegetação, a meia encosta, entre árvores baixas e arbustos, ignorados, esquecidos, enlaçados, um homem de um reino distante e uma mulher de Xangai, dois num só, envoltos em faiscantes novelos de ternura, o céu azul por cobertor, a terra tépida por leito e almofada. Gostar até à loucura, a China-mulher nos meus braços, sob o meu corpo, eu dentro dela, ela toda em mim, espasmos sublimes, nuvens e chuva caindo docemente no verde ondulante de colinas perfumadas.

Macau, 31 de Outubro de 1982

Cheguei a Macau há uma semana, esta singular península que é, há vários séculos, refúgio dos missionários no Império do Meio, os portugueses da religião alheia que, por delitos que não cometiam, recebiam ordens para abandonar a China e aqui se acolhiam, à espera de melhores dias, melhores meses, melhores anos. Quase todos davam a volta às proibições e acabavam por regressar à terra chinesa.

A minha situação é semelhante. Fixaram-me um prazo limite para sair da China e aí vim eu, recambiado até Macau. Em Pequim, naquele aeroporto frio e triste, ao entrar no BAC 111 chinês para voar até Hong Kong, sofredor de desconcertos e angústias, os olhos permaneceram secos, mas as lágrimas corriam por dentro, e encharcavam tudo.

Macau, 6 de Novembro de 1982

Na quinta passagem por Macau, estou a fazer uma mãozinha de jornalismo num novo semanário, o “Tribuna de Macau”, dirigido pelo José Rocha Dinis que veio do “Diário de Notícias” e já me conhecia das crónicas, muitas, que tenho publicado no DN, como correspondente em Pequim. Para sobreviver, necessito absolutamente de ganhar umas patacas.

Tenho a sorte de ter também como amigo o Jorge Neto Valente a quem devo, até ao resto dos meus dias, um agradecimento vasto como o delta do rio das Pérolas. Cedeu-me, como das outras vezes em que vim a Macau, sem eu pagar um avo, o 4º. andar do apartamento no Pátio da Casa Forte, ali defronte da igreja de S. Lourenço, quase sempre vazio porque o Jorge o destina a contabilistas de Hong Kong que, de quando em vez, vêm a esta cidade para o ajudar a tratar de assuntos e negócios. Tenho um mini-lar em Macau, sobrevivo, vivo em busca de melhor vida.


Macau, 15 de Novembro de 1982

Migram as aves,
em busca do calor, do grão ou da frescura.
Assim também os homens,
em busca do ouro, do pão ou da ternura.[1]

Por isso:

Regresso ao meu amor Macau,
após mil falas, dez mil silêncios.
Na foz de um rio de pérolas,
a cidade cicia segredos, envolta em bruma.


Macau, 19 de Novembro de 1982


Apesar de muitos destroços portugueses e chineses coalhando as águas barrentas em volta de Aomen 澳门, a Porta da Baía, gosto muito de Macau, sinto-me bem neste burgo, único em toda a Ásia. Por norma sou bem recebido e não me sinto em terra estranha. Tenho vindo sempre sozinho, a partir das paragens chinesas e aqui, diante de tanta mulher bonita, agiganta-se a minha pena por não ter nenhuma. Tem sido a minha sina sínica. Creio que sei como amar bem uma mulher, como na minha ingenuidade me entrego e desejo partilhar tudo. E habituei-me a receber tão pouco… O que é que falha em mim, no que ao feminino diz respeito?

Espero supremos prazeres e viver com alegria, mas no fundo também sei que gosto de estar triste. Trata-se deste malfadado masoquismo afectivo que tanto compraz ao português puro, a começar pelo primeiro grande modelador da alma lusitana, o meu amigo Luís de Camões, continuado por outro enorme cultivador de paixões infelizes, Manuel Maria Barbosa du Bocage que em Macau, 1789, padecia igualmente de mal amar e de mal viver. Bocage que escrevia: “Camões, grande Camões, quão semelhante/ acho o teu fado ao meu.

E o meu fado também com parecenças com os maiores poetas, e eu, pobre vate coxo e inapto, com uma Dinamene lá longe, em Xangai. Eu, esquartejando-me pela China e por Macau, a viver pobremente da pena, do que escrevo e traduzo, e sempre tudo tão mal pago. Eu, rigorosamente como o Camões (ele em Moçambique) “a comer de amigos”, hoje o almoço pago pelo Joaquim Amaral, ontem o jantar pago pelo Rogério Beltrão Coelho. Eu, com setenta patacas no bolso.
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Nota do autor:

[1] Na tarde de 19 de Dezembro de 1999, no grande espectáculo comemorativo da transição de poderes, da devolução de Macau à China, que teve lugar no Centro Cultural de Macau, os alunos da Escola Portuguesa disseram poemas de Miguel Torga, Camilo Pessanha, António Manuel Couto Viana, Bai Juyi (por mim traduzido para português), António Gedeão, Eugénio de Andrade e, para meu completo espanto e surpresa, o primeiro poema declamado pelos jovens era este, da autoria de António Graça de Abreu, eu próprio.

[Fixação de texto e links; LG]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série >  20 de abril de  2019 > Guiné 61/74 - P19700: Os nossos seres, saberes e lazeres (318): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (1) (Mário Beja Santos)

Vd. poste de 19 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19698: Os nossos seres, saberes e lazeres (317): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte II: 12 de setembro de 1980: o 4º centenário da morte de Luís de Camões