1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2019:
Queridos amigos,
É mais do que merecido o reconhecimento a este diário de Abel Rei, escrito com tanta sinceridade, envolto em tanta ternura, um registo também da vida de uma unidade que palmilhou o Xime, Amedalai, Denbataco, foi ao Buruntoni e ao Poidom, espalhou-se pelo Enxalé, Missirá e Porto Gole.
A um tempo em que os comandos tomaram a decisão de tirar a sede da Companhia do Enxalé para Porto Gole, perdeu-se a ligação a Missirá, em meu entender um erro crasso, as forças hostis eram as mesmas, de Madina, Belel, a região de Sara-Sarauol, são registos serenos os que o Abel Rei nos deixa, é um homem em conformidade com os seus princípios e valores, chega a refletir sobre as consequências do álcool depois de uma borracheira e lembra como esse mesmo álcool devastou a sua vida familiar.
Temos que ter orgulho neste diário, é o espelho de um homem de fé que vai regressar sereno à sua vida civil, sem traumas nem azedumes. Recomendo vivamente a sua leitura.
Um abraço do
Mário
Faça-se justiça a um belo documento, o diário do camarada Abel Rei
Beja Santos
Aprende-se muito com a releitura de certas obras, no caso vertente do diário da Guiné “Entre o Paraíso e o Inferno (de Fá a Bissá)”, por Abel de Jesus Carreira Rei, confessa-se ter havido uma certa ligeireza na primeira apreciação. É um documento de valor excecional, pela sua simplicidade, pelas páginas tocantes que nos lega falando do correio, das patrulhas, das amizades, dos encontros festivos com gente patrícia ou aparentada, pela genuinidade das apresentações, regista as suas devoções, o que o confunde e deslumbra quando a natureza explode em uníssono, veja-se o que ele escreve em 24 de abril de 1968, um amanhecer em Porto Gole:
“Com sons de todas as distâncias, ouvem-se os mais variados cantares das aves. São cinco horas e vinte minutos da madrugada (do dia, é o melhor termo neste momento!). Há dez minutos que o dia começou a nascer: primeiro lento, sem pressa, como se preferisse não sair da escuridão, depois como a volúpia de um prazer, rápido, com a aclamação de toda a natureza à sua volta. Avista-se entre as árvores espesso nevoeiro, o mesmo que torna húmidas e frias, estas manhãs tropicais – confundindo a mata com o rio, que neste momento apresenta uma crista de areia no meio, a quatro ou cinco quilómetros de mim. Também à minha volta, vejo agora nitidamente os mosquitos, que durante estas duas horas de reforço, tomaram o pequeno-almoço do meu sangue.
Poucos minutos mais volvidos, e já está o dia nascido. O homem encarregado do motor-gerador, já o fez parar. Os abutres vieram até aos limites do rancho ‘fazer limpeza’, enquanto os porcos lá continuam a sua tarefa de demolir tudo com o focinho. Os galináceos limparam do chão os grãos de ‘bianda’ mais próximos; e os cães correm de um lado para o outro (sou obrigado, de vez em quando, a interromper-me, a sacudir os mosquitos da minha pele).
Primeiro poucas, e agora em mais quantidade, as mulheres nativas correm para a fonte – um poço que se encontra rodeado de uma pequena horta, tendo algumas árvores em volta: mangueiros; laranjeiras; e cajueiros – de onde levam água clara, com que se saciarão durante o dia. (Os indígenas, não utilizam filtros como nós para limpar a água; metem-na em bilhas de barro, e ela depois assenta). Com as bilhas cheias, elas já regressam. Na tabanca já se ouve, em ritmo cadenciado, o pilão a martelar na ‘bianda’.
Começa a soprar uma ligeira aragem.
O padeiro já começou a sua tarefa, e o cozinheiro também já remexe os caldeirões. E eu termino… Arma às costas, e deixo o meu posto de sentinela!”.
Em Bissá, andará a cavar, fica cheio de bolhas nas mãos, ele que diz no seu currículo que se iniciou a trabalhar com dez anos ao balcão de uma mercearia no centro da então vila da Marinha Grande, e aos quinze anos já exercia a profissão de serralheiro civil. É uma edição de autor de dezembro de 2002, estou aqui a fazer a confissão de que é obra de valor, um diário autêntico, daqueles que começam a pontuar dia após dia e depois esmorecem, há semanas e meses em branco. Embarca no navio Uíge, faz parte da CART 1661, um dos seus comandantes foi um arquiteto de fama, já falecido, Luís Vassalo Rosa, de Bissau segue para Fá, espera ansiosamente notícias da família, descobre o mundo tropical, a África desconhecida, diz singelamente que acaba de apreciar uma grande plantação de bananeiras, era a primeira vez. Não há perda de tempo, vai-se até ao Xime, descreve-se a tabanca, encontra-se gente de terras próximas. Do Xime vai-se até Enxalé, daqui viaja até Mato de Cão que ele designa por local bastante propício a emboscadas do inimigo, terão ido montar segurança a embarcações militares ou civis. Do Enxalé segue para Porto Gole, dá-se por feliz quando regressa a Fá, é sol de pouca dura, regressa-se ao Xime, encontrou conhecidos dos Pousos de Leiria e de Burinhosa em Alcobaça, é uma operação ao Poidom, estreia-se nos tiros, volta para Fá e regressa ao Xime para uma operação ao Burontoni, capturou-se armamento, deu apoio ao seu colega Saraiva, dos Moinhos de Carvide, que vinha completamente abatido.
O cansaço começa a pesar, surgem alguns problemas de saúde, segue novamente para Porto Gole, operações, atribuem funções de vagomestre, em abril de 1967 regista um dia trágico, morreram sete africanos para as bandas de Bissá.
“Eu confesso: apesar de estar cá há pouco tempo, vieram-me as lágrimas aos olhos. Tinha morrido um capitão de 2.ª linha, mais seis homens nativos, todos pertencentes à Polícia Administrativa e todos eles com as famílias em Porto Gole. Morria o Capitão Abna Na Onça, corajoso e respeitado pelos negros e brancos”.
Gosta de Porto Gole mas trabalha que se farta. Quando tem saudades, vai para a beira-rio, apreciar a paisagem, ver as mulheres a apanhar uma espécie de caranguejos no lodo. E em maio começa o pequeno inferno de Bissá, um outro local inóspito, entre Mansoa e Porto Gole, destacamento de pouca dura, Spínola pôr-lhe-á termo. Falta água, as colunas de reabastecimento são um suplício, volta por um tempo a Porto Gole, as funções de vagomestre são de imensa responsabilidade. E regressa a Bissá em setembro, o quartel está numa lástima, as flagelações sucedem-se, a tensão é permanente. Nesse mesmo mês de setembro rebenta uma mina anticarro, em consequência quatro mortos e treze feridos graves. Estabelece boas amizades com a gente do Pelotão de Caçadores Nativos n.º 54. O correio é cada vez mais espaçado, sente-se fisicamente em baixo, volta a Porto Gole e ao Enxalé, visita Bafatá, não lhe descobriu interesse. O ano passou e em fevereiro de 1968 passa férias em Bissau, regista um ataque de foguetões à Base Aérea de Bissalanca, volta a Porto Gole em março, anota que as coisas correm mal em Bissá, há cada vez mais emboscadas. Gosta de confirmar dados consultando a história da CART 1661. Spínola visita Porto Gole no início de junho, as coisas estão cada vez pior em Bissá. Em novembro, a sua Companhia é rendida, são colocados no quartel dos Adidos em Bissau, viaja novamente no Uíge para Lisboa. Impossível não registar o que ele escreve quando se despede de nós a bordo do navio Uíge na manhã de 20 de novembro de 1968:
“A minha missão não foi das mais árduas; outros houve que sofreram muito mais. Para esses, irá decerto o carinho de todos quantos nos rodearam através das escassas notícias referidas além-mar. Nada paga tão imensa alegria, de podermos regressar ao lar, e esquecermos tantas e tantas horas que passámos sem dormir, atentos ao inimigo, e depois de o termos aguentado, acarinharmos os nossos camaradas feridos ou chorarmos os mortos. A estes últimos: os heróis desconhecidos desta guerra, aqueles que mais ninguém recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos, a estes, a minha modesta homenagem que se resume a desejar-lhes Eterno Descanso. Irmãos de meses difíceis desta tropa, a minha lembrança por vocês perdurará em mim eternamente, pois eu podia ter sido um de vós!”.
Julgo ter reposto justiça pondo no pódio este magnífico diário do camarada Abel Rei.
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Nota do editor
Último poste da série de 31 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19844: Notas de leitura (1182): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (8) (Mário Beja Santos)
Gosta de Porto Gole mas trabalha que se farta. Quando tem saudades, vai para a beira-rio, apreciar a paisagem, ver as mulheres a apanhar uma espécie de caranguejos no lodo. E em maio começa o pequeno inferno de Bissá, um outro local inóspito, entre Mansoa e Porto Gole, destacamento de pouca dura, Spínola pôr-lhe-á termo. Falta água, as colunas de reabastecimento são um suplício, volta por um tempo a Porto Gole, as funções de vagomestre são de imensa responsabilidade. E regressa a Bissá em setembro, o quartel está numa lástima, as flagelações sucedem-se, a tensão é permanente. Nesse mesmo mês de setembro rebenta uma mina anticarro, em consequência quatro mortos e treze feridos graves. Estabelece boas amizades com a gente do Pelotão de Caçadores Nativos n.º 54. O correio é cada vez mais espaçado, sente-se fisicamente em baixo, volta a Porto Gole e ao Enxalé, visita Bafatá, não lhe descobriu interesse. O ano passou e em fevereiro de 1968 passa férias em Bissau, regista um ataque de foguetões à Base Aérea de Bissalanca, volta a Porto Gole em março, anota que as coisas correm mal em Bissá, há cada vez mais emboscadas. Gosta de confirmar dados consultando a história da CART 1661. Spínola visita Porto Gole no início de junho, as coisas estão cada vez pior em Bissá. Em novembro, a sua Companhia é rendida, são colocados no quartel dos Adidos em Bissau, viaja novamente no Uíge para Lisboa. Impossível não registar o que ele escreve quando se despede de nós a bordo do navio Uíge na manhã de 20 de novembro de 1968:
“A minha missão não foi das mais árduas; outros houve que sofreram muito mais. Para esses, irá decerto o carinho de todos quantos nos rodearam através das escassas notícias referidas além-mar. Nada paga tão imensa alegria, de podermos regressar ao lar, e esquecermos tantas e tantas horas que passámos sem dormir, atentos ao inimigo, e depois de o termos aguentado, acarinharmos os nossos camaradas feridos ou chorarmos os mortos. A estes últimos: os heróis desconhecidos desta guerra, aqueles que mais ninguém recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos, a estes, a minha modesta homenagem que se resume a desejar-lhes Eterno Descanso. Irmãos de meses difíceis desta tropa, a minha lembrança por vocês perdurará em mim eternamente, pois eu podia ter sido um de vós!”.
Julgo ter reposto justiça pondo no pódio este magnífico diário do camarada Abel Rei.
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Nota do editor
Último poste da série de 31 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19844: Notas de leitura (1182): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (8) (Mário Beja Santos)