segunda-feira, 3 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19853: Notas de leitura (1183): "Entre o Paraíso e o Inferno (De Fá a Bissá)", por Abel de Jesus Carreira Rei; edição de autor, 2002 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
É mais do que merecido o reconhecimento a este diário de Abel Rei, escrito com tanta sinceridade, envolto em tanta ternura, um registo também da vida de uma unidade que palmilhou o Xime, Amedalai, Denbataco, foi ao Buruntoni e ao Poidom, espalhou-se pelo Enxalé, Missirá e Porto Gole.
A um tempo em que os comandos tomaram a decisão de tirar a sede da Companhia do Enxalé para Porto Gole, perdeu-se a ligação a Missirá, em meu entender um erro crasso, as forças hostis eram as mesmas, de Madina, Belel, a região de Sara-Sarauol, são registos serenos os que o Abel Rei nos deixa, é um homem em conformidade com os seus princípios e valores, chega a refletir sobre as consequências do álcool depois de uma borracheira e lembra como esse mesmo álcool devastou a sua vida familiar.
Temos que ter orgulho neste diário, é o espelho de um homem de fé que vai regressar sereno à sua vida civil, sem traumas nem azedumes. Recomendo vivamente a sua leitura.

Um abraço do
Mário


Faça-se justiça a um belo documento, o diário do camarada Abel Rei

Beja Santos

Aprende-se muito com a releitura de certas obras, no caso vertente do diário da Guiné “Entre o Paraíso e o Inferno (de Fá a Bissá)”, por Abel de Jesus Carreira Rei, confessa-se ter havido uma certa ligeireza na primeira apreciação. É um documento de valor excecional, pela sua simplicidade, pelas páginas tocantes que nos lega falando do correio, das patrulhas, das amizades, dos encontros festivos com gente patrícia ou aparentada, pela genuinidade das apresentações, regista as suas devoções, o que o confunde e deslumbra quando a natureza explode em uníssono, veja-se o que ele escreve em 24 de abril de 1968, um amanhecer em Porto Gole:
“Com sons de todas as distâncias, ouvem-se os mais variados cantares das aves. São cinco horas e vinte minutos da madrugada (do dia, é o melhor termo neste momento!). Há dez minutos que o dia começou a nascer: primeiro lento, sem pressa, como se preferisse não sair da escuridão, depois como a volúpia de um prazer, rápido, com a aclamação de toda a natureza à sua volta. Avista-se entre as árvores espesso nevoeiro, o mesmo que torna húmidas e frias, estas manhãs tropicais – confundindo a mata com o rio, que neste momento apresenta uma crista de areia no meio, a quatro ou cinco quilómetros de mim. Também à minha volta, vejo agora nitidamente os mosquitos, que durante estas duas horas de reforço, tomaram o pequeno-almoço do meu sangue.
Poucos minutos mais volvidos, e já está o dia nascido. O homem encarregado do motor-gerador, já o fez parar. Os abutres vieram até aos limites do rancho ‘fazer limpeza’, enquanto os porcos lá continuam a sua tarefa de demolir tudo com o focinho. Os galináceos limparam do chão os grãos de ‘bianda’ mais próximos; e os cães correm de um lado para o outro (sou obrigado, de vez em quando, a interromper-me, a sacudir os mosquitos da minha pele).
Primeiro poucas, e agora em mais quantidade, as mulheres nativas correm para a fonte – um poço que se encontra rodeado de uma pequena horta, tendo algumas árvores em volta: mangueiros; laranjeiras; e cajueiros – de onde levam água clara, com que se saciarão durante o dia. (Os indígenas, não utilizam filtros como nós para limpar a água; metem-na em bilhas de barro, e ela depois assenta). Com as bilhas cheias, elas já regressam. Na tabanca já se ouve, em ritmo cadenciado, o pilão a martelar na ‘bianda’.
Começa a soprar uma ligeira aragem.
O padeiro já começou a sua tarefa, e o cozinheiro também já remexe os caldeirões. E eu termino… Arma às costas, e deixo o meu posto de sentinela!”.

Em Bissá, andará a cavar, fica cheio de bolhas nas mãos, ele que diz no seu currículo que se iniciou a trabalhar com dez anos ao balcão de uma mercearia no centro da então vila da Marinha Grande, e aos quinze anos já exercia a profissão de serralheiro civil. É uma edição de autor de dezembro de 2002, estou aqui a fazer a confissão de que é obra de valor, um diário autêntico, daqueles que começam a pontuar dia após dia e depois esmorecem, há semanas e meses em branco. Embarca no navio Uíge, faz parte da CART 1661, um dos seus comandantes foi um arquiteto de fama, já falecido, Luís Vassalo Rosa, de Bissau segue para Fá, espera ansiosamente notícias da família, descobre o mundo tropical, a África desconhecida, diz singelamente que acaba de apreciar uma grande plantação de bananeiras, era a primeira vez. Não há perda de tempo, vai-se até ao Xime, descreve-se a tabanca, encontra-se gente de terras próximas. Do Xime vai-se até Enxalé, daqui viaja até Mato de Cão que ele designa por local bastante propício a emboscadas do inimigo, terão ido montar segurança a embarcações militares ou civis. Do Enxalé segue para Porto Gole, dá-se por feliz quando regressa a Fá, é sol de pouca dura, regressa-se ao Xime, encontrou conhecidos dos Pousos de Leiria e de Burinhosa em Alcobaça, é uma operação ao Poidom, estreia-se nos tiros, volta para Fá e regressa ao Xime para uma operação ao Burontoni, capturou-se armamento, deu apoio ao seu colega Saraiva, dos Moinhos de Carvide, que vinha completamente abatido. 

O cansaço começa a pesar, surgem alguns problemas de saúde, segue novamente para Porto Gole, operações, atribuem funções de vagomestre, em abril de 1967 regista um dia trágico, morreram sete africanos para as bandas de Bissá. 

“Eu confesso: apesar de estar cá há pouco tempo, vieram-me as lágrimas aos olhos. Tinha morrido um capitão de 2.ª linha, mais seis homens nativos, todos pertencentes à Polícia Administrativa e todos eles com as famílias em Porto Gole. Morria o Capitão Abna Na Onça, corajoso e respeitado pelos negros e brancos”.

Gosta de Porto Gole mas trabalha que se farta. Quando tem saudades, vai para a beira-rio, apreciar a paisagem, ver as mulheres a apanhar uma espécie de caranguejos no lodo. E em maio começa o pequeno inferno de Bissá, um outro local inóspito, entre Mansoa e Porto Gole, destacamento de pouca dura, Spínola pôr-lhe-á termo. Falta água, as colunas de reabastecimento são um suplício, volta por um tempo a Porto Gole, as funções de vagomestre são de imensa responsabilidade. E regressa a Bissá em setembro, o quartel está numa lástima, as flagelações sucedem-se, a tensão é permanente. Nesse mesmo mês de setembro rebenta uma mina anticarro, em consequência quatro mortos e treze feridos graves. Estabelece boas amizades com a gente do Pelotão de Caçadores Nativos n.º 54. O correio é cada vez mais espaçado, sente-se fisicamente em baixo, volta a Porto Gole e ao Enxalé, visita Bafatá, não lhe descobriu interesse. O ano passou e em fevereiro de 1968 passa férias em Bissau, regista um ataque de foguetões à Base Aérea de Bissalanca, volta a Porto Gole em março, anota que as coisas correm mal em Bissá, há cada vez mais emboscadas. Gosta de confirmar dados consultando a história da CART 1661. Spínola visita Porto Gole no início de junho, as coisas estão cada vez pior em Bissá. Em novembro, a sua Companhia é rendida, são colocados no quartel dos Adidos em Bissau, viaja novamente no Uíge para Lisboa. Impossível não registar o que ele escreve quando se despede de nós a bordo do navio Uíge na manhã de 20 de novembro de 1968:

“A minha missão não foi das mais árduas; outros houve que sofreram muito mais. Para esses, irá decerto o carinho de todos quantos nos rodearam através das escassas notícias referidas além-mar. Nada paga tão imensa alegria, de podermos regressar ao lar, e esquecermos tantas e tantas horas que passámos sem dormir, atentos ao inimigo, e depois de o termos aguentado, acarinharmos os nossos camaradas feridos ou chorarmos os mortos. A estes últimos: os heróis desconhecidos desta guerra, aqueles que mais ninguém recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos, a estes, a minha modesta homenagem que se resume a desejar-lhes Eterno Descanso. Irmãos de meses difíceis desta tropa, a minha lembrança por vocês perdurará em mim eternamente, pois eu podia ter sido um de vós!”.

Julgo ter reposto justiça pondo no pódio este magnífico diário do camarada Abel Rei.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19844: Notas de leitura (1182): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (8) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19852: Parabéns a você (1630): António Azevedo Rodrigues, ex-1.º Cabo do CMD AGR 2957 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19848: Parabéns a você (1629): António Barbosa, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Osvaldo Colaço, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 (Guiné, 1973/74)

domingo, 2 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19851: Tabanca Grande (480): Maria de Fátima Santos, esposa do nosso camarada Manuel Lima Santos, que perfez 10 presenças nos nossos Encontros Nacionais e que por isso foi convidada a fazer parte da tertúlia. Ocupará o 791.º lugar do nosso poilão

Vem sendo uma questão de justiça e reconhecimento convidar a integrar a tertúlia as nossas companheiras que perfazem 10 presenças nos Encontros Anuais do Blogue.

Este ano foi a vez de receber o certificado que assinala a 10.ª presença nos nossos Convívios, assim como o seu marido Manuel Lima Santos, da Maria de Fátima, que assim se junta ao grupo de senhoras, que convidadas, aceitaram pertencer a esta numerosa família de bloguistas cujo mote é a Guiné.

É com muito prazer que a recebemos, esperando que continue a sentir-se bem entre nós e a participar nas nossas confraternizações. Tem como companheiras de jornada, a Alice Carneiro, a Dina Vinhal (única totalista nos 14 Encontros), a Graciela Santos e a Lígia Guimarães. Muitas mais senhoras se juntarão ao grupo, estamos certos.

Monte Real, 25 de Maio de 2019 - XIV Encontro Nacional da Tertúlia - Momento em que o casal Manuel Lima Santos e Maria de Fátima recebiam os certificados da 10.ª Presença em Encontros da Tertúlia.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19784: Tabanca Grande (479): Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, QG/ CTIG, Bissau, 1973/74... Radialista, jornalista e escritor, vive na Praia, Cabo Verde. Senta-se à sombra do nosso mágico poilão, sob o nº 790

Guiné 61/74 - P19850: Blogpoesia (623): "Mas velhos são os trapos" (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659)

1. Mensagem, de 12 de Maio de 2019, do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar, (ex-Fur Mil Art MA da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com um poema de sua autoria intitulado "Mas velhos são os trapos":


Mas Velhos são os Trapos

Mário Vitorino Gaspar

Pequeno corria ventos e com as nuvens falava:
– Por que não constróis castelos mirabolantes?
Gentes de todas as idades rindo como dantes.
Moço com vinte ri e grita - Por favor não minta!
Andas a sonhar e casado, pai e homem aos trinta?
Rebentas pela vida! Quem a suporta e aguenta?
És vida que espera, sem esperar pelos quarenta.
Num ápice atingiste os cinquenta os que sonhavas.

O que interessa é viver a vida e não só a contar:
– Quantos palmos… palmo a palmo e a medir…
Cantar. Cantar. Segundos, minutos horas a sorrir!
Cantar. Cantar, longe de tormentos e ais de sofrer.
Cantar canções de vida e amores a vida que viver.
Música cresce nos tons nostálgicos de uma flauta
A orquestra e seu maestro, batuta baque na pauta.
Vamos sorrir nos anos poucos ou muitos a amar.

Quero gritar! Grito e tenho vontade de gritar…
Um ser humano existe não é velho farrapo!
Velho e remendado… é aquele solitário trapo.
Um reformado… sente bem o tempo ocupado.
Outro sozinho triste, vazio oco… desconsolado
Um o tempo medido e pesado é curto e escasso
Outro a vida que era vivida virou fracasso
Grita. Canta, por que não? Dançar e a cantar?

Os dias dão as mãos, óbvio és um sexagenário
Atingidos com alegria a verdade dos setenta
Correm os ponteiros, às voltas. São oitenta
Anos seguidos, a vida é matemática sua soma.
Noventa? Mas por que razão pedi a reforma?
Centenário? Cem anos? Pudera é a verdade?
Vivi, gozei e vi. Filhos e netos é mesmo a idade!
Galguei os anos sem sequer olhar o calendário.

Aprendermos que a vida é também feita de zeros
Nados, ventre da mãe, mulher criada do mundo
Fêmea que amou o homem somente um segundo
E repete-se. Repete. A luz que acende e aquece
Repete. Anos repetem-se e há alma que esquece
Música que toca nos rádios todo a hora e dia
Dancemos ao toque do tambor e da melodia
Matematicamente o mundo é feito de números.

Mas velho… velho, sem voz, mudo e calado?
– Velho, caco de barro esburacado e partido?
Cala-te! Não sabes que esse termo foi abolido?
Inexistente nem lês nas palavras do abecedário!
No mundo: mesmo no mais catalogado dicionário…
Velho! A palavra foi extinta, não se lê nem se lia
Em todos os acordos do mundo de ortografia…
Velho era alguém com idade. É caso acabado.

Vivemos neste mundo anos seguidos de felicidade
Amamos flores do campo e as borboletas voando
Escutamos a voz do mar, ondas leves se enrolando
Há muito que aprender, melhor conhecer este ninho
Lama, palha rendilhada a mãe tece berço do filhinho
Viver sem pecar neste caminho, decerto é duro
Nunca será esforço infinito, decerto será seguro
Seres deste mundo são estrelas do céu sem idade.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19849: Blogpoesia (622): "Rubros telhados", "Gotas de chuva" e "Cada manhã", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19849: Blogpoesia (622): "Rubros telhados", "Gotas de chuva" e "Cada manhã", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Rubros telhados

Rubros telhados, lavados da chuva,
luzindo ao sol.
Tapam os lares e regalam os olhos,
na tardinha de Domingo de Maio.
Que pena! Amanhã, há escola e trabalho.
O que vale, a partir de Junho, a festa das férias.
Viagens. Campo. Campismo. A praia.
Tempo de sonho que a família não esquece.

Do sol ao Minho, abunda o sol.
Latadas de verde. Searas de pão.
Romarias nos montes.
Estralejam foguetes.
Jorra a alegria.

Se reúne a família.
Noitadas de fogo.
Coretos de música.
Confronto das bandas.
Noites sem fim.

A marcha da vida,
No ciclo dos anos.
Reinado da paz.

20h11m
Jlmg

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Gotas da chuva

São balas as gotas da chuva.
Se estatelam no chão.
Abrem crateras.
Parecem vulcões.

Batem na fronte.
Escorrem na cara.
Lágrimas fresquinhas.
Sabem tão bem.

Contas sem conta.
Ao preço da chuva.
Sobraram algures.
O chão ressequido,
Seco do sol,
Batido do vento,
fica feliz.

As sementes rebentam.
Surgem ao ar.
Vestem de verde.
Que regalo é ver tudo a florir.

Não é o acaso.
Tudo perfeito.
Só há que ter fé.
Quem criou tudo isto
Sabe bem o que fez.

Berlim, 27 de Maio de 2019
12h31m
Jlmg

********************

Cada manhã

Saio à rua cada manhã.
Buscando imagens da vida em marcha.
Destinos cruzados.
Gente tão díspar.
Ocidente e de leste.
Ásia menor.

Vestes diferentes.
Damas veladas e rostos barbudos.
Como se estivessem em casa.
Parecem felizes.
Corre-lhes bem.

A troco de quê?
Por certo, grandes interesses.
Estratégia infernal.
Entre as potências.

O pior é se mudam os ventos...
Não olham a meios.
Correm com todos.
Sem olhar para trás.

O melhor seria como é natural.
Cada povo seu chão.
Perspectivas diferentes
Como são os falares.

Reboadas da história
Na sua marcha do mundo.
O passado as teve.
E, agora, o presente.

Berlim, 28 de Maio de 2019
9h54m
Dia de sol duvidoso
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19826: Blogpoesia (621): "Desafio do tempo", "Depois da trovoada e chuva grossa..." e "Um manto de luz", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19848: Parabéns a você (1629): António Barbosa, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Osvaldo Colaço, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 (Guiné, 1973/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19843: Parabéns a você (1628): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1968/70)

sábado, 1 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19847: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (13): ingenuidade ou inexperiência do cap mil Maltez


 Foto nº 1 > Xime, CART 2520 (1969/70) >  O José Nascimentro junto ao obus 10.5


Foto nº 3 > Xime > CART 2520 (1969/70> Quartel do inimigo, ma mata do Xime


Foto nº 2 > Xime > CART 2520 (1969/70) > Depois deum ataque ao quartel


1. Mensagem do José Nascimento [ex-Fur Mil Art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71], membro da nossa Tabanca Grande (*):

Data - 30/05/2019, 15:21

Assunto -  Ingenuidade ou inexperiência do capitão Maltez

Xime, c. 1969/70, cap mil António dos Santos Maltez.
Foto Renato Monteiro (2006) (*)


As forças militares portuguesas representadas pela CART 2520 e comandadas pelo Capitão [miliciano] Maltez caminhavam há algumas horas pelos trilhos das matas do Xime quando a determinado momento se começa a ouvir algumas batidas parecidas com o trabalhar de um machado. Tomadas as devidas precauções os nossas tropas começam a fazer a aproximação da direcção de onde vinha o som dessas batidas.

E, com os cuidados devidos, a tropa portuguesa chega a uma distância de cerca de cinquenta metros do local, numa clareira existente na mata. A esta distância deu para perceber que eram dois elementos do PAIGC, um deles com um lança-roquetes às costas e outro com uma Kalashnikov, estavam a cortar ramagens de palmeiras com uma catana ou uma ferramenta artesanal.

Após uma rápida análise da situação, o Capitão Maltez tomou a decisão de tentar apanhar à mão (vivos) aqueles guerrilheiros inimigos

É iniciado um cerco aos dois guerrilheiros, o que demora alguns minutos e as condições da mata não eram as melhores. Então o inesperado acontece, num movimento involuntário ou talvez não, um dos guias da nossa tropa tropeça num ramo da floresta, provocando um pequeno ruído, mas o suficiente para chegar aos ouvidos apurados dos guerrilheiros inimigos, que num ápice e mais velozes do que um raio desapareceram no interior da mata.

É retomado o caminho pelo trilho e muito mais depressa do que seria de esperar, os elementos que haviam fugido montam uma pequena emboscada e atiram um ou mais rokets sobre a tropa da CART 2520. Os nossos militares reagem e imediatamente respondem com algumas rajadas, fazendo com que aqueles elementos do PAIGC dispersassem de seguida. Uma das granadas atiradas contra os militares portugueses explodiu a escassos metros da fila do pirilau, provocando ligeiros ferimentos nas costas do soldado João Parrinha e de outros dois dos nossos combatentes, o Bárbara e o Setério, que de imediato foram assistidos pelo Cabo enfermeiro Silva.

Feitos de novo ao caminho, a nossa tropa cumpriu o percurso préviamente traçado, chegando já ao cair da noite à nossa base sem mais incidentes.

Para todos os camaradas da Tabanca Grande aqui vai um enorme abraço.

José Nascimento

Anexo:

Foto 1 - Xime, junto ao obus 10,5

Foto 2 - Xime, depois de um ataque inimigo

Foto 3 - Mata do Xime, quartel do inimigo

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Notas de leitura:



23 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

Guiné 61/74 - P19846: Os nossos seres, saberes e lazeres (329): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
Penúltimo dia de viagem, o viandante anda bisonho, tinha ambicionado visitar lugares muito belos como Gloucester, que tem uma catedral fabulosa, Cheltenham e Cirencester, Wantage, o tempo não estica, acertou-se em dois destinos de culto: Burford, uma cidadezinha medieval encantadora e que tem uma igreja sem rival, e Kelmscott Manor, a casa de verão do genial William Morris, o fundador da Arts & Crafts.
Aqui está Burford, as imagens não desmentem o propagandeado, o tão enaltecido património, tudo num brinquinho. Sempre que visitar a região os seus anfitriões sabem que o viandante é guloso por aqui voltar. Diga-se de passagem que com quem ele viajou saiu daqui radiante e com uma enorme vontade de regressar, mal haja circunstância.

Um abraço do
Mário


No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (7)

Beja Santos

Em nenhuma circunstância, insista-se: em nenhuma circunstância, o viandante perde a contemplação de um espaço cemiterial. E porquê, alma lúgubre, acesso de morbidez, hipocondria de ultrarromantismo? De modo algum, é a serenidade, o sentir-se que há uma resposta ao chamado eterno repouso, nada do espalhafato em que ombreiam os latinos, o defunto jaz numa atmosfera de placidez, é como se a natureza se conjugasse para criar um espaço de concórdia, uma sala de conversa entre os vivos e os mortos, com mais ou menos ciprestes, o chilreio das aves, um reencontro sem dramatismo. Imagem tirada de manhã, em Faringdon, daqui a pouco viandante e companha partem para Burford, uma joia do Condado de Oxford.


E no passeio a pé, contíguo ao velho mercado dos cereais, em estilo neogótico, funciona uma charity shop, não é uma loja de caridade, é um estabelecimento em que uma causa de interesse público recebe donativos em roupa, tralha variada, brinquedos, discos, filmes, livros e tudo mais, ali dezenas de milhões de britânicos vão procurar pechinchas e ajudar os outros. Nunca o viandante percebeu como este entendimento social é impraticável aqui no burgo, há assim uns arremedos, caso do Algarve, mas é uma inovação solidária ainda em desuso. E bom seria que assim se mitigassem algumas formas de desigualdade social dando mais valor aos euros que temos no bolso.


Outra prática que é socialmente estimulante: venha aqui à velha cabine telefónica dentro do horário afixado, ofereça livros ou troque-os, o importante é que leia, traga as crianças, assim lhes desperta o hábito. Recicla-se uma velha cabine telefónica, é como se fosse arte urbana, diga-se de passagem que tem um desenho que parece destinado à eternidade, e em vez de uma biblioteca itinerante onde houve um telefone há muitos tesouros em livros.


Burford deve ter sido uma cidade muito rica, mantém o seu pitoresco como porta de entrada das Cotswolds, era próspera nos negócios de lanifícios já na Idade Média, hoje é um local turístico onde a igreja é de visita obrigatória, e já vamos ver porquê.



É um monumento do século XII, obviamente com muitas alterações, veja-se a beleza desta face lateral, a sua belíssima torre, depois uma capela transformada, dá rapidamente para entender que aqui há uma marca de água normanda, como no interior se irão encontrar adições do século XV em diante. Ora acontece que os sinos repicavam e por ali passou cortejo e súbito irrompem damas de honor empunhando raminhos de flores, impunha-se captar a festividade, pediu-se licença, ela foi dada, que todos sejam muito felizes enquanto o amor durar.


É um carro mítico, a Grã-Bretanha imperial é ininteligível sem este bólide de luxo, o Rolls-Royce inundou o império, foi apetecido por marajás, multimilionários, Reis, Presidentes da República, Primeiros-Ministros, continua a ser suficientemente impressionante para se conjugar na plenitude com um casamento onde se pretende dar um toque de distinção. E fica bem na fotografia, pois então.





Burford é para descer e subir, da cidadezinha é tudo aparentemente plano, mas os cafés, as antiguidades e galerias de arte, restaurantes e negócios de toda a sorte são para percorrer subindo ou descendo até ao rio Windrush. Impossível não captar algumas imagens destas atividades turísticas, irresistível, impensável não haver vendas de bilhetes-postais, uma forma de comunicação obrigatória para os valores britânicos: para dar parabéns, para anunciar que nasceu uma criança, para perguntar se pode passar lá uns dias em pernoita, para desejar boas festas, a indústria de bilhetes-postais atinge delírios até nas tiradas do humor, pensa o viandante que nenhum outro povo exacerba este culto como o britânico.



Burford tem muito para ver, parece provado, agora viandante e companha vão amesendar, segue-se a visita a um belíssimo templo que é a Matriz de Burford, vamos todos visitá-la e usufruir da sua beleza. O leitor que se prepare.


(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 25 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19823: Os nossos seres, saberes e lazeres (327): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19842: Os nossos seres, saberes e lazeres (328): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte VII: o socialismo, a amizade entre os povos, o internacionalismo proletário, a beleza da mulher chinesa, a bruxa de Nanquim, o maldito e tão amado patacão do Tio SAM... e as"Kalash", "made in China", que matavam os meus camaradas de armas no CTIG...

Guiné 61/74 - P19845: Convívios (897): I Almoço de Confraternização do Combatente Limiano, dia 10 de Junho, Pavilhão Expolima, Ponte de Lima (Mário Leitão)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Leitão, [ex- Fur Mil na Farmácia Militar de Luanda, Delegação n.º 11 do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), 1971 a 1973] com data de 19 de Abril de 2019:

Caro Luís, 
Ponte de Lima vai comemorar pela sétima vez o DIA DO COMBATENTE LIMIANO, que incluirá um PRIMEIRO ALMOÇO DE CONFRATERNIZAÇÃO. 
A organização é da responsabilidade do Núcleo de Ponte de Lima da Liga dos Combatentes. 
Como vem acontecendo desde 2013, esperamos honrar com a nossa presença os nossos 53 limianos mortos durante a Guerra Colonial, os 27 nossos combatentes que tombaram na Primeira Grande Guerra e os nossos conterrâneos que deram a vida contra as hostes napoleónicas. 

Agradecemos a divulgação no teu-meu-nosso blogue! 

Um abraço dos grandes! 
Mário
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19839: Convívios (896): Cinquentenário da partida da CART 2520 para o CTIG, em 24 de Maio de 1969... Comemorado em Torres Novas, a 25 do corrente (José Nascimento)

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19844: Notas de leitura (1182): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (8) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Já temos território de combate, refregas onde se gera a confusão, Companhias que se enfrentam por acasos da topografia, há gente que se perde, em breve Santos Andrade vai começar a falar de baixas, é um bardo que dedilha a dor das perdas.
Deu-se atenção a dois aspetos transversais à vida de todos os combatentes: a chegada do correio, e nada se encontrou de mais enquadrador e de alta qualidade literária que um texto de Álamo Oliveira, e chegou a hora de falar de Alpoim Calvão que emparceirará com os seus fuzileiros na Operação Tridente, e antes dela falarmos aqui se faz referência a uma tortura que a todos irmanou, a todos aqueles que andaram com arma na mão: o lodo, tão mais infernal quanto é a cama daquele tarrafo onde rasgamos a farda e perdemos o equipamento.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (8)

Beja Santos

“Até chegarem ao local,
ficaram fartos de andar.
Uns contra os outros lutaram
mas não houve nenhum azar.

Nas viaturas se montaram
até ao ponto de reunião.
E depois desceram para o chão
e muito tempo a pé andaram.
Houve moços que desmaiaram
mais ou menos às dez e tal.
E começou a sentir-se mal
o Zézinho, nosso amigo,
e deu a todos um bom castigo
até chegarem ao local.

Para os locais indicados
começou tudo a avançar
e começaram a atirar
para cima dos malvados.
Houve tiros por todos os lados
e a aviação a bombardear.
Houve ordem para retirar
porque avançar não podiam
e todos os militares que iam
ficaram fartos de andar.

Perdeu-se uma secção
no meio daquele matagal
e ao passar de um certo vale
houve uma precipitação:
Em frente de uma povoação
duas companhias se enfrentaram,
até que se certificaram.
Aquilo foi um castigo!
E sem ser contra o inimigo
uns contra os outros lutaram.

O comandante das operações
todo o caso estava a ver.
Pensou em comunicação fazer
sem ter excitações.
Se não fossem as comunicações
não sei o que se poderia dar.
Os soldados vieram contar
que ele é que tudo defendeu.
E o Pécurto uma G3 perdeu,
mas não houve nenhum azar.”

********************

A gente da BCAV 490 entrou em funções, estes versos são eloquentes. Mas voltemos atrás, às coisas do espírito e depois a adaptação ao terreno. Quem diz coisas do espírito fala no correio, aquela linha mágica que une a identidade, o passado ao presente, verbos de consolação, por vezes de angústia, por vezes por mão alheia falam os pais, a namorada ou a mulher, deitam-se contas à vida, chegam trivialidades, até insinuações e calúnias.

Recorde-se ao livro de Álamo Oliveira intitulado “Até Hoje (Memória de Cão)”, já referenciado, para falar da chegada do correio, texto belíssimo:
“Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos, macacos eufóricos, doentes. Doentes da alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentido expostos, uterinos os desejos quando se aproxima o calor da mãe. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e que se amparam nos mil dedos que os agarram. Visse-os Fernão que diria Lisboa pequenina a aclamar o D. João, todo rei de Portugal. Dois ídolos triunfantes, os sacos são levados em braços até à casota onde funciona a secretaria. As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias de tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho, recados e apreensões, mortes, doenças e vidas – um caudal de palavras jorradas no desafio das emoções. Algumas cartas trariam o carimbo do ‘visado pela censura’ militar, para que todos soubessem que ela existia, actuava, mexia, não fossem fazer revelações que comprometessem o sério segredo do Estado que tresandava de dúvidas malcheirosas. Estão todos à porta, os da frente espremidos de encontro aos batentes, alguns escapulindo lá para dentro disparados por gatilho informe. Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo o quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionada metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa demora da desfloração. O sargento ordena que se afastem e esperem. Obedecem sem pragas, controlando os movimentos do cabo demasiado lentos para a sua impaciência. São chamados pelo acaso de cada subscrito. ‘Pronto!’, um grito, mais um, duas chamadas, três, sete, a voz febril, alegre também, o braço de ânsia esticado sobre cabeças, a carta presa por encanto entre os dedos da comoção. Ao último envelope desapareceram, dispersos por todos os sentidos, poalha que a varinha-mágica semelha, mutação do raio, o diabo a esfregar um olho. O silêncio pode cortar-se à faca, o calor bate de encontro à terra, nem um corpo para bronzear. Agarrados a cartas e a aerogramas, embiocados no confessionário do seu recanto, estão com a vida dos parentes, dos amigos, dos vizinhos nas mãos, devorando-a desenhada em letras, linha sobre linha, lâminas sobrepostas que o destino empilha até que saltam de emoção para emoção, o filho já diz papá, a cria nova da vaca, a trombose do pai, as obras na casa, a morte da avó, chove, faz sol, as saudades, a colheita, o jantar da chegada, os abraços, o dia aprazado do casamento, o ciúme e a fuga, os beijos que são muitos, o vazio da cama, receio pela vida e pela sorte, o diabo da solidão, sem mais tempo para pensar no carbúnculo da guerra”.

 Álamo Oliveira

Nada encontrei de aproximado em toda a literatura da guerra deste texto da chegada do correio. E temos a adaptação, há a fornalha do sol, a floresta-galeria, a saída para a operação com o capim orvalhado, a folhagem que corta as mãos, o imprevisto de uma chuvada que lambuza a lama, e depois o tarrafo.
Pegue-se num curto texto de Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira, em “Contos de Guerra”, Chaves, 1994, é o quanto baste:
“Quem já andou na Guiné, quer por prazer cinegético, quer por obrigação militar, sabe o que significa andar no lodo. Põe-se o pé com toda a cautela na superfície escura e escorregadia e afundamo-nos até à coxa. Sente-se uma ventosa que suga as pernas e as prende ciosamente. O esforço necessário para dar um passo é violentíssimo e muitas vezes a prisão do lodo apodera-se das botas e há que caminhar descalço. Se, por acaso, o lodo é mais fluido e o homem se enterrar até ao peito, é preciso desatolá-lo e ensinar-lhe a nadar no lodaçal que se agarra à roupa e à pele, cobrindo-o de uma estranha película que o calor do sol transforma em carapaça quebradiça e a água tem dificuldade em lavar”.

Alpoim Calvão irá fazer-nos companhia na Operação Tridente, que aqui merece ser contada, terá sido aqui que se forjou a amizade entre ele e o Coronel Fernando Cavaleiro, comandante do BCAV 490.
Já estamos a falar de uma guerra muito violenta, é tempo de aqui rever o inultrapassável “Nó Cego” de Carlos Vale Ferraz.

(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 27 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19833: Notas de leitura (1181): “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19843: Parabéns a você (1628): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19834: Parabéns a você (1627): António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da CCAÇ 17 (Guiné, 1973/74)

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19842: Os nossos seres, saberes e lazeres (328): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte VII: o socialismo, a amizade entre os povos, o internacionalismo proletário, a beleza da mulher chinesa, a bruxa de Nanquim, o maldito e tão amado patacão do Tio SAM... e as"Kalash", "made in China", que matavam os meus camaradas de armas no CTIG...

Assim se faz a guerra e a paz... Dez anos depois, em 1982, o António Graça de Abreu, então a viver na China, vê, pela televisão, um general chinês a colocar, no Regimento de Comandos da Amadora, antigo RI 1,  "uma coroa de flores no monumento aos militares Comandos, homenageando os portugueses mortos, muito deles caídos diante das balas disparadas por estas armas, made in China"


1. Mensagem do António Graça de Abreu, com data de  29/05/2019 à(s) 02:24:

Meu caro Luís

Mais uns textos do meu inédito Diário (secreto) de Pequim, para eventual publicação no blogue.
Publica o que quiseres.

Forte abraço,
António Graça de Abreu



2. Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) 


Mais uns excertos do "diário chinês, secreto", ainda inédito, do nosso camarada António [José] Graça de Abreu. Recorde-se que ele viveu na China, em Pequim e en Xangai, entre 1977 e 1983; foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras.  Na altura, ainda era, segundo sabemos, simpatisante ou militante do Partido Comunista de Portugal  (marxista-leninista), o PC de P (m-l), fação Vilar (Eduímno Gomes), alegadamente o único recomhecido pela República Popular da China.

Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 230 referências. Compulsivo  viajante, tem "morança"  em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Nasceu no Porto em 1947.] É casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. (*)

Pequim, 20 de Maio de 1981

Agora veio à China uma delegação da Frelimo, encabeçada pelo moçambicano Marcelino dos Santos, ministro da Economia. Li Shunbao, o intérprete desta delegação, trabalha comigo na secção portuguesa das Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras e contou-me, com algum desgosto, a visita dos camaradas de Moçambique ao Armazém da Amizade, a maior loja de Pequim reservada apenas a estrangeiros.

Chegaram às sete da tarde, os chineses fecharam a loja para servir apenas os distintos africanos e a comitiva por lá permaneceu durante duas horas. Compraram, compraram, compraram, as senhoras moçambicanas abasteceram-se, em quantidade, dos mais variados produtos, artesanato chinês de qualidade, jades, jóias e até colecções de casacos de peles. No fim, à saída, tiveram o privilégio de não gastar um tostão.

A conta, extraordinária e exorbitante, era para ser paga pelas autoridades chinesas, pelo
generoso e mais do que irmão Partido Comunista da China, tudo em nome do socialismo, da amizade entre os povos e do internacionalismo proletário.

Li Shunbao, humilde chinês, meu amigo e camarada, não gostou do que viu.


Pequim, 22 de Agosto de 1981

Mas quando é que eu ganho juízo? Hoje descubro outra mulher chinesa, quase a beldade perfeita, no lugar certo, passeando-se pelo Vale das Cerejeiras, por detrás do Wo Fo Si卧佛寺, o templo do Buda Deitado, na Colina Perfumada, arredores oeste de Pequim. Dela, pouco mais fiquei a saber do que o seu nome, Liu Xiaochun, sendo Liu刘 o apelido de família e Xiaochun小春, o nome próprio que significa "pequena Primavera, ou Primavera Breve." 

Fixei-lhe o rosto (como é possível uma mulher ser tão serenamente bonita!…), as formas do corpo, os seios perfeitos sob a blusa branca, justa, e as calças bem cintadas, azuis, arredondando o primor das nádegas. Não lhe toquei com um dedo sequer, mas apetecia-me tocar-lhe com todos os dedos, das mãos, dos pés, com todas as células do meu corpo, beijá-la até a polpa dos meus lábios sangrar de prazer e exaustão. Quatro anos na China, a olhar para as meninas chinesas e a não ter nenhuma. Xiaochun, em tempo de Verão, a "Primavera Breve." O avançar por dentro das estações do ano, o perpassar da natureza.


Pequim, 30 de Agosto de 1981

Dia de, no Yuanmingyuan圆明园, o Jardim da Perfeição e da Luz, antigo Palácio de Verão que data dos séculos XVIII e XIX, encontrar uma chinesinha que pega na minha mão, a pousa sobre o seu joelho bonito -- a palma da mão voltada para cima --, e que me lê a sina. Um portento, a mulher, Wu Mei 吴美de seu nome, nascida em Nanquim, 23 anos, aluna do Instituto de Cinema de Xangai. Bruxa. Com toda a aprendizagem e tiques de actriz, mais a percepção do essencial das coisas da vida.

Nunca me tinham lido a sina. Foi preciso viver em Pequim para encontrar uma "cigana de Nanquim" disposta a tal tarefa, cheia de saber e segurança.

Num excelente mandarim à mistura com um macarrónico inglês, a Wu Mei foi-me explicando o significado dos traços na palma da minha mão. Mais ou menos nestes termos:

"Tu és muito forte, na cabeça. Tens uma carreira importante que será interrompida aos cinquenta anos por um acidente grave, de que recuperarás, quanto ao teu trabalho. Tens três mulheres na tua vida, a primeira aconteceu há alguns anos, a segunda e a terceira vão seguir-se uma à outra. Não foste feliz com a mulher com quem casaste, gostas muito dos teus irmãos e da tua família."

Pedi à Wu Mei (Wu吴, apelido de família, associado ao antigo reino de Wu, actual província de Jiangsu cuja capital é Nanquim onde ela nasceu, e Mei美 que significa "bonita"), pedi à Wu Mei que dissesse a minha idade. Confessa que não está escrita na palma da mão, mas ela aponta para 29 anos. Face à minha negativa, corrige de imediato para o número certo, 34 anos. Voltou a insistir que eu era inteligente, mas mal aproveitado pelas outras pessoas, mesmo assim descobriu que eu tenho um futuro brilhante à minha frente. Quero acreditar que sim.

Wu Mei, a bruxa chinesa de Nanquim! Miguel de Cervantes, nas Novelas Exemplares, bem avisou: "Yo no creo en brujas, pero que las hay, hay".

Bruxas bonitas, até na China…

Pequim, 18 de Novembro de 1981

Esta manhã chego à embaixada da União Soviética e o tovarich de serviço na Intertourist recebe-me com as seguintes palavras:

"Good morning, do you have american dollars?"

Eu tinha porque já ia avisado que, depois de fazer a viagem no Transsiberiano, devia pagar a estadia das quatro noites em Moscovo nessa maldita (e tão amada!) moeda dos reacionários e capitalistas filhos do tio Sam. Logo depois segui para a embaixada da Mongólia para pedir outro visto no passaporte, para a passagem do comboio pela república mongol. A primeira coisa com que me deparei à entrada da porta foi o letreiro: "Visas must be paid in USA dollars or Swiss francs, only."

Na China, ao longo destes mais de quatro anos vi, "claramente visto", compreendi a "superioridade" do sistema socialista. Com os parceiros russos e o seu filhote mongol basta entrar nas respectivas embaixadas para entender que os dólares norte-americanos são excelentes para olear o socialismo e ajudá-lo a singrar.

Amadora, 15 de Abril de 1982

Comia sossegadamente o meu bife à hora do almoço quando vi, no pequeno écrã  da TV, um general chinês, de visita a Portugal, a depositar um ramo de flores no monumento aos soldados Comando mortos em combate em África, aqui ao lado no Regimento de Comandos da Amadora, o antigo RI 1 que tão bem conheci há dez anos atrás.

As voltas que o mundo dá, ou simplesmente o doce-amargo do fluir dos dias….

Quando em 1972 parti deste quartel para a guerra na Guiné levava o desgosto de, pequeno alferes miliciano, ir combater por uma causa em que não acreditava. Iria encontrar guerrilheiros que, melhor ou pior, lutavam pela independência das suas terras. Depois, em Teixeira Pinto e em Mansoa, no meu Comando de Operações, estive com as 35ª. e 38ª. Companhias de Comandos, impressionantes tropas de combate com quem fiz amigos e com quem cheguei a sair para o mato.[1] Unidos, camaradas, lutávamos pela sobrevivência, pela vida.

Na Guiné-Bissau, em Mansoa, em Junho de 1973, após uma missão da 38ª. Companhia de Comandos, na estrada Jugudul-Bambadinca, vi-os chegar com quatro espingardas Kalashnikov capturadas aos guerrilheiros mortos numa emboscada, duas delas ainda com sangue fresco. Tomei uma das armas na mão, culatra atrás, bala na câmara e apontei para o céu. Eram quatro Kalashs fabricadas na República Popular da China, oferecidas pelos comunistas de Mao Zedong para matar tropas portuguesas. 

Dez anos depois, um general chinês coloca uma coroa de flores no monumento aos militares Comandos, homenageando os portugueses mortos, muito deles caídos diante das balas disparadas por estas armas, made in China. (**).
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quarta-feira, 29 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19841: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXIII: Luís António Andrade Âmbar, alf cav (Ponta Delgada, Açores, 1944 - Moçambique, 1967)






1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia). (*)

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à direita], instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

Morais da Silva foi cadete-aluno nº 45/63, do corpo de alunos da Academia Militar. É membro da nossa Tabanca Grande, com o nº 784, desde 7 do corrente.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 26 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19718: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXII: José Jerónimo Silva Cravidão, cap inf, cmdt CCAÇ 1585 (Nema e Farim, 1966/68) (Arraiolos, 1942 - Bricamal / Farim, Guiné, 1967)... Morreu, heroicamente, em combate, no dia em que fazia 25 anos... Ninguém lhe deu uma condecoração, por mais singela que fosse.

Guiné 61/74 - P19840: Antropologia (33): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-China, 2015 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,
Longa foi esta viagem de memórias e sobre a memória, o antes, o durante e o depois, e o depois é marcado pelo regresso à vida, estudos, constituição de família, uma linha profissional. Casos houve de muita dor, o stresse pós-traumático. Anos depois de cada um partir para a sua vida, deu-se o reencontro com o passado, a CART 3313 reúne-se anualmente, segue um ritual, há conversas que dispõem bem, há interpretações de factos em que nem todos são concordantes.
A antropóloga assiste a tudo, entrevistou muitos, leu documentação, conhece a obra do escritor Lobo Antunes. E adverte: "Todos os que ali estão sabem que ninguém quer cruzar a fronteira que separa o que deve ser lembrado do que deve ser esquecido. Mas estes encontros não são isentes de risco. A presença dos pares implica o confronto de versões nem sempre coincidentes e que podem expor pedaços indesejados do passado. O passado existe na representação que sobre ele constroem, nas imagens e nos episódios que compõem a história que é contada e repetida, ano após ano.".
Um trabalho de valor excecional, direi sem hesitar tratar-se de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


Regressos quase perfeitos, uma obra excecional de antropologia (3)

Beja Santos

Aqui se conclui a digressão pelo espantoso trabalho antropológico de Maria José Lobo Antunes centrado na memória de combatentes que fizeram parte de uma Companhia de Artilharia, a 3313, que esteve no Leste de Angola, na região de Gago Coutinho, e mais tarde na região de Malanje. "Regressos quase perfeitos", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-China Edições, 2015, é um ensaio invulgar, onde se questiona o género e o modo de vida daqueles mancebos, como lhes foram chegando as representações da guerra colonial, como partiram e viram Angola, como regressaram e se reencontraram, a antropóloga acompanhou-os nesses almoços de confraternização onde há uma nova busca de sentido para interpretar aquela experiência que lhes mudou a vida.

Acabada a guerra, mesmo tendo voltado diferentes, condutores ou escriturários, atiradores ou mecânicos, eram homens feitos que iriam retomar as vidas interrompidas. Alguns traziam exames escolares aprovados, outros sonhavam em fazer um curso universitário, outros pegaram logo em ofícios como motoristas ou voltaram à agricultura. Muitos casaram nos anos seguintes. Ouvidos os seus testemunhos, observa a antropóloga: “O que sobressai nestes relatos é o reconhecimento da inadequação das respostas pessoais às circunstâncias que os rodeavam. A guerra ainda os rondava. Mas só na década de 1980 é que surgiu a categoria nosológica de desordem de stresse pós-traumático". Dos entrevistados, só um frequentou sessões psicoterapêuticas de grupo e temos novo comentário da investigadora: “O tempo do regresso foi sobretudo um momento para se agarrarem ao que de novo lhes ia acontecendo. A família e o trabalho vieram preencher o que antes fora ocupado pelo quotidiano militar. Dos 26 meses em Angola restaram fotografias guardadas em álbuns, episódios e imagens que persistiam apesar da distância, uma vaga revolta que se foi dissolvendo. Os camaradas com quem viveram durante dois anos desapareceram nas suas vidas retomadas”.

Veio o 25 de Abril, uns acolheram-no entusiasticamente, outros não, questionou-se tanto sacrifício em vão. Dá-se nova palavra à antropóloga, depois de analisar as memórias dos entrevistados: “Deslizando entre dois momentos do tempo (o do passado perdido e o da sua convocação do presente), elas evidenciam a falta de alternativas contemporâneas a um discurso identitário herdado do Estado Novo. É esta ausência que traça as fronteiras nos interiores das quais os sujeitos reconfiguram as suas memórias da guerra de Angola”.

Demoraram a reencontrar-se, a primeira vez foi no final de julho de 2001, 30 anos depois do embarque no "Vera Cruz" para Angola, encontraram-se em Fátima.
Houve um trabalho anterior de encontros ou contactos, cada um tinha seguido a sua vida e a investigadora observa: “O fim da ditadura implicou a criação de atos de demarcação inequívocos, pelos quais o passado foi remetido para um vasto território impronunciável. O Império Português, reimaginado durante o Estado Novo deixou de existir com a descolonização. Mesmo o vocabulário ultramarino se viu transformado no vestígio anacrónico de um passado tornado impossível com o 25 de Abril”. Houve como que um período de nojo em que uma parte significativa do passado recente desapareceu do debate público. A guerra tornou-se um tabu existencial e discursivo, tema incómodo. Mas foi silêncio breve, logo a seguir começaram a ouvir-se vozes, caso de "Os Cus de Judas", publicado em 1979, era a catarse literária. Maria José Lobo Antunes enumera publicações de toda a ordem, desde livros a trabalhos jornalísticos, edições em fascículos, a guerra voltava ao palco, e com polémica, basta lembrar o inflamado debate sobre o Monumento aos Combatentes do Ultramar em Lisboa, a RTP também se interessou em fazer documentários sobre a guerra colonial, foram os 42 episódios da série "A Guerra", de Joaquim Furtado, apareceram depois filmes e séries de ficção, muitos romances nostálgicos, o contraponto a essa vaga saudosista passa pelos romances de Dulce Maria Cardoso e Isabela Figueiredo.

Prossegue o ritual dos encontros, estamos em Coimbra numa manhã de um sábado de junho de 2012. “No meio das caras conhecidas, sou apresentada a uma pequena comitiva que se estreia nos almoços.
Organizado por Valdemar Mendes, antigo furriel do primeiro pelotão, o almoço de 2012 estendeu os habituais convites à família de outro furriel do mesmo pelotão. Mário Alberto Ferreira morreu há 19 anos e nunca chegou a reencontrar a Companhia com quem esteve em Angola. Convidar a família e homenagear o camarada foi a forma encontrada de prolongar para além da morte a ligação que une todos aqueles que partilharam a mesma guerra. O convite foi recebido, e a família apareceu em peso. A viúva, dois filhos, uma nora e duas netas distribuem sorrisos e cumprimentos”. O ritual dos almoços segue um mesmo guião de sempre: convite com a hora e o ponto de encontro, o restaurante, a ementa, o preço da refeição e do transporte. Começam a chegar e abraçam-se, apresentam a família, trazem filhos e netos, afinal o que está a acontecer ali é uma festa de família. A autora fala de Licínio Macedo, um guardador de memória. “Na garagem do seu apartamento, em Vila Praia de Âncora, montou um pequeno museu da guerra. Dossiês cheios de recortes de jornal, ementas e convites de almoços anuais, crónicas de Lobo Antunes sobre Angola, álbuns fotográficos, livros e séries documentais sobre a guerra colonial, esculturas africanas. Reformado dos estaleiros de Viana do Castelo, este antigo eletricista dedica uma boa parte do seu tempo livre a organizar os vários objetos materiais que começou a colecionar quando regressou de África”.

Este almoço anual é o único contacto social que têm com o passado de guerra. Todos fazem por estar presentes, quem tem dificuldades económicas e não pode ir, sofre muito. Nas conversas, há por vezes azedume por não se dar mais apoio aos antigos combatentes, pensões válidas, ajuda psicológica e muito mais. A autora dedica um capítulo aos livros de Lobo Antunes e assim chegamos às últimas entrevistas que fez para esta investigação. O apaixonante deste trabalho é saber de antemão que é impossível reaver o instante vivido na sua inteireza, o que é possível é compor reproduções aproximadas e imperfeitas, são revisitações narrativas em que os seres humanos tendem a contar histórias sobre si mesmos. Há muitas incomodidades, como observa a antropóloga:
“A memória de guerra não foi apenas alvo do natural desgaste imposto pelo tempo. Nos discursos de alguns entrevistados é possível distinguir uma intervenção pessoal destinada a apagar os aspetos incómodos do passado. Há quem revele não falar sobre a guerra com a família, há quem mencione ter feito um esforço para não se lembrar. Um de entre estes foi apenas três vezes aos almoços e, das suas palavras, depreende-se a improbabilidade de regressar. O incómodo é mais forte do que o prazer de reencontrar os camaradas. O tempo de guerra é, ao mesmo tempo, a dolorosa memória de um desterro hostil e da juventude despreocupada. É precisamente esta ambiguidade que faz regressar estes homens, ano após ano. O passado que ali se celebra não é o da violência: é o da camaradagem, da união que sobrevive ao tempo, da alegria e do riso, da coragem e resistência”.

Estes pontos de encontro, estas encruzilhadas da memória são, como observa Maria José Lobo Antunes, um mapa possível de um mundo que já não existe, evocado pelas narrativas dos homens que nele viveram. Talvez haja tantas guerras quantos os soldados que os combateram.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19817: Antropologia (32): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015 (2) (Mário Beja Santos)